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Reflexões sobre multissetorialismo na governança da internet

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17 de julho de 2024

Nas discussões sobre governança da internet no Brasil, o multissetorialismo é um tema sempre presente, seja em forma ou matéria. É como a moldura do quadro ou a mesa em que todos se sentam em volta. A questão é que quanto mais falamos sobre ele, mais observamos que um pé da mesa está torto ou que a moldura do quadro precisa ser ajustada. Logo, surge a questão: o multissetorialismo tem funcionado no mundo da governança da internet? 

O que é multissetorialismo?

Para iniciar essa discussão, é preciso antes passar por algumas conceituações, que por sua vez podem parecer repetitivas, mas se fazem necessárias em vista à construção de um referencial. 

Assim, para definir multissetorialismo, no presente contexto, é importante, de forma prévia, conceituar “governança da internet”. Ambos os termos, por sua vez, não apresentam uma definição sólida ou imutável, apesar de existirem referenciais. No caso da última, a mais recorrente é a apresentada pela Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI), em 2003, que diz:

Governança da Internet é o desenvolvimento e a aplicação pelos Governos, pelo setor privado e pela sociedade civil, em seus respectivos papéis, de princípios, normas, regras, procedimentos de tomadas de decisão e programas em comum que definem a evolução e o uso da Internet.

Embora essa definição (aqui você encontra uma revisão sistemática sobre o termo) seja já bastante explorada no meio, ela traz importantes noções e pontos chave para a compreensão do tema, além de um recorte histórico. Um ponto de destaque é que, quando cunhada, houve uma grande discussão quanto ao uso do termo “governança”, que tradicionalmente remete ao governo. Em seu livro “Uma introdução à governança da internet”, o autor Jovan Kurbalija explica como, apesar das confusões iniciais, a interpretação ideal se refere à abrangência de qualquer instituição na estrutura de gerência, inclusive as não governamentais. 

A partir disso, o autor Wolfgang Kleinwaechter reflete sobre como a governança, na sociedade da informação, foi criada diante da noção de que todos os stakeholders devem ser envolvidos. Assim, cada um tem sua função específica, mas nenhum deve atuar sozinho ou substituindo outro. Frente a isso, é introduzido o multissetorialismo na discussão, bem como um conjunto de órgãos, fóruns e estruturas que se inserem no contexto de divisão de funções.

Esse cenário, por sua vez, pode ser ilustrado pelo diagrama abaixo, desenvolvido por Chris Buckridge, membro da ICANN:

Ainda, outro importante elemento a ser abordado na definição de multissetorialismo é a contribuição do documento de Princípios publicado no NetMundial de 2014, o qual traz que, para uma governança multissetorial, deve-se ter uma participação significativa e responsável de todos os intervenientes, de forma que “os respectivos papéis e responsabilidades das partes interessadas devem ser interpretados de modo flexível em relação aos temas em discussão”

Uma vez definido o conceito, é possível avançar na discussão, passando para a parte seguinte: as críticas diante da abordagem multissetorial.

Multissetorialismo, ficção e prática 

De acordo com a autora Jeanette Hofmann, o multissetorialismo é uma ficção, que por sua vez evoca a um momento poético da escrita acadêmica. Ao dizer isso,  a autora destaca que o termo ficção não implica na criação de uma realidade não existente, mas “fornece coerência a uma realidade muitas vezes confusa, incoerente e ambígua”. Nessa linha, o multissetorialismo seria também um conceito performativo, visto que gera expectativas, objetivos e critérios de avaliação.

Essas características, por sua vez, podem ser explicadas diante da sensação de harmonia e equilíbrio que o multissetorialismo descreve, em que todos os setores participam das decisões de forma democrática, significativa e, assim, geram melhores resultados. De fato, práticas multissetoriais implicam em tornar os espaços mais igualitários, permitindo a entrada e presença de representantes de todos os setores envolvidos nos processos. No entanto, é aí que a ficção se depara com a prática, nas palavras de Hofmann, uma vez que existem desigualdades estruturais entre os setores que fazem com que, além de se sentarem à mesa, sejam necessários recursos diversos para que os representantes sejam ouvidos da mesma forma. 

Um exemplo prático diz respeito ao Fórum da Internet no Brasil, o FIB, evento promovido pelo Comitê Gestor da Internet (CGI) e pelo NIC. Br. O CGI, em meio a diversas práticas que são modelo internacionalmente no âmbito de uma boa governança, determina que todos os painéis do evento sejam compostos por um representante de cada setor (sendo eles: academia, governo, privado e sociedade civil). Assim, tendo uma composição igualitária, no eixo ficcional, os painéis já estariam equilibrados e seriam conduzidos democraticamente. 

Em outro eixo, o que se observa são questões que demonstram uma grande desigualdade entre os setores, seja no que tange à representação, disponibilidade de recursos, diversidade e transparência. As relações de poder estruturantes fazem com que, por exemplo, em um ambiente como um painel do FIB, os representantes do setor privado recebam grande parte das perguntas da audiência, mas, frente aos termos de compliance internos, não possam responder às perguntas, tendo que se esquivar. 

Além disso, outras questões surgem em diferentes espaços e momentos, a exemplo das dificuldades em torno do consenso e na própria classificação do que seria cada um dos setores

Considerações finais: garantindo voz e lugar à mesa 

Discutir sobre o multissetorialismo na governança da internet não diz respeito apenas a analisar a atuação de um fórum, ator ou país, mas a de diversos agentes em conjunto. Conforme apresentado anteriormente, existem atualmente muitos órgãos especializados em questões específicas que compõem o ecossistema, de maneira que o sucesso de um não garante o do multissetorialismo como um todo,  aplicando a mesma medida para eventuais fracassos. 

Dito isso, ao retornar à pergunta do subtítulo sobre o bom funcionamento do multissetorialismo, é preciso realizar uma análise cuidadosa, escolhendo os objetos de análise. No Brasil, como já mencionado, o Comitê Gestor da Internet é um exemplo em suas práticas multissetoriais, apresentando o Decálogo como carta de princípios, a qual contempla a “governança democrática e colaborativa”.  

Apesar disso, as estruturas de poder maiores e anteriores continuam existindo e fazendo surgir desigualdades diversas. O que fazer então para garantir não apenas o lugar à mesa, mas o direito de ser ouvido? A constante maturação da abordagem, seus agentes e processos é um passo. Aliar as questões procedimentais às sociais e humanitárias é também uma saída para potencializar os lugares à mesa, criando formas de assegurar, além da igualdade, a equidade. Nada adianta estar à mesa se sua voz não é ouvida. 

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Pesquisadora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e atualmente mestranda em Direito Internacional Privado, pela mesma instituição. Integrante do projeto de pesquisa sobre moderação de conteúdo na internet. É coordenadora do Grupo de Estudos Internacionais em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual (GNet). Tem como áreas de interesse: Direito da internet, Direito Internacional Privado e Direito Político.

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