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Clean girl, tradwife e coach de relacionamento: quando o sexismo vira trend

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28 de janeiro de 2025

 O que as tendências que têm tomado conta das redes sociais dizem sobre os papéis de gênero e até que ponto escolhas aparentemente individuais reforçam estereótipos sexistas?

Imagens de mulheres da década de 50 com dizeres chamativos à frente: “Diga SIM para o seu marido”, “Como deixar de ser mandona e autoritária”, “Esposa, seu marido é autoridade no lar”. Estes são apenas alguns dos carrosséis que compõem o feed de uma influencer com quase 200 mil seguidores no instagram. Na bio, um link para comprar o curso da “Escola de Esposas”. Sua transformação em uma mulher “feminina” e do lar está a apenas alguns likes de distância (ou melhor dizendo, a 12 parcelas de R$39,90, se você for realmente dedicada)

As dicas não param por aí. O que vestir no primeiro encontro, como selecionar as músicas que você escuta e como conquistar um bom homem são também conteúdos de outra blogueira deste nicho. Em um post com mais de 1.600 curtidas, ela indica que uma mulher autêntica tem sua identidade baseada em Cristo, e não no salário, casa dos sonhos e empregos. Ficou preocupada com as contas? Não precisa mais: em um reel com quase 10 mil curtidas, ela explica a importância de um homem provedor. 

Sua transformação em uma mulher amada e desejada é garantida por uma assinatura trimestral de R$147,70. Com o plano, você também passa a ter acesso ao direct da influenciadora e tem a oportunidade de passar pela mesma evolução que ela: como revelam as fotos, seus cabelos curtos, blusa que mostrava a barriga e maquiagem forte deram lugar a uma mulher “de alto valor”, com visual meigo, cabelos longos, um vestido “comportado” e, claro, um homem ao lado. 

Tradwife: a estética, o significado e as mensagens por trás da trend

A estética é um pilar importante nesse sentido – e o feed de outra blogueira, “Influenciadora do Reino”, como ela se denomina, não deixa mentir. Com 805 mil seguidores, seus posts em tons pastéis, maquiagem leve e vida fitness ornam milimetricamente com as outras postagens sobre cozinha, religião e maternidade. Em um story de reflexão sobre o ano novo (que parece trazer muita coisa de velho), ela explica que foi um ato de fé renunciar a sua carreira, a qual se dedicava tanto, para servir ao lar e orar pela prosperidade do marido. Ela recomenda que as seguidoras se abram para o mesmo.

Como Silvana Ribeiro explica em seu artigo “Ser Eva e dever ser Maria: paradigmas do feminino no Cristianismo”, as imagens de mulher projetadas pela religião produzem modelos de identidade feminina perpetuados culturalmente, interiorizados pelos sujeitos e reforçados em interações sociais que reiteram desigualdades de gênero. Com uma nova roupagem, o estereótipo de mulher cristã e do lar volta a ser tendência sob o título de “tradwife”’, um neologismo em inglês para “esposa tradicional”

O movimento crescente nas redes, como identificado por uma reportagem do g1, é protagonizado por influencers que compartilham suas rotinas e defendem um estilo de vida feminino voltado a tarefas domésticas. Longe do mérito de avaliar crenças individuais, o que chama atenção na tendência das tradwives é que, em um contexto peculiar, potencializado pela internet, o ato de seguir padres e pastores se alia ao de seguir influencers, e dissemina “a palavra” da feminilidade em meio a likes, views e cursos online. Assim, mais do que uma simples escolha individual, o fenômeno soa como um convite a abrir mão, coletivamente, de conquistas feministas, como a independência, a autonomia financeira, a participação na vida pública e a liberdade para escolher desde a roupa até o exercício ou não da maternidade, longe das determinações masculinas, dos julgamentos ou do sentimento de culpa. 

O encontro entre tradwives, clean girls e coachs de relacionamento

A reiteração de papéis e estereótipos de gênero como conteúdo para as redes sociais não é algo específico do nicho religioso: coachs de relacionamento e blogueiras de moda também têm produzido discursos que, conscientemente ou não, orientam mulheres a adotarem uma postura mais passiva e recatada. Entre algumas dicas para encontrar um bom relacionamento, compartilhadas na internet, estão não se vestir de modo “vulgar”, deixar que o homem tome mais atitudes e evitar expor seus sentimentos de maneira assertiva. Em um canal no youtube com mais de 86 mil inscritos, um youtuber explica que, para conquistar um homem, é preciso deixá-lo “ser masculino” e, para isso, tornar-se mais “feminina”. Essa é uma dica com base na “neurociência”, como ele faz questão de destacar em caixa alta no título do vídeo. O influencer, no entanto, não apresenta fontes do suposto estudo, dando indícios da inveracidade de sua informação. 

Segundo a fala de outro youtuber especialista em relacionamentos, com 363 mil inscritos, os homens não gostam de ouvir críticas e comandos vindos de uma mulher, pois isso faz com que eles as associem a uma figura masculina. Além disso, é melhor que ela evite falar de assuntos técnicos (segundo o influencer, uma habilidade masculina) e fale mais de dinâmicas interpessoais (já que ela teria maior sensibilidade para compreender relacionamentos). Em outro vídeo, com mais de 61 mil visualizações, um criador de conteúdo explica que falar de pautas sociais, ser “ríspida” e “empoderada” são atitudes negativas que afastam os homens. Para ele, é importante ser delicada e deixar o sentimento de conquista nas mãos do homem. 

A estética de “profissionalismo” é compartilhada por todos: com boa iluminação, enquadramento próximo à câmera, roupas em tons sóbrios e falas pensadas, esses criadores de conteúdo também oferecem cursos online e atendimentos individuais para mulheres que buscam um relacionamento amoroso. Por outro lado, são diversos os estudos que, como o de Luize Rosa, apontam a relação entre a idealização de amor romântico, muitas vezes central na vida de mulheres, e sua vulnerabilidade a relacionamentos abusivos. Parece problemático esse conto de fadas em que, para encontrar o príncipe encantado, a princesa precisa ser tola, submissa e inscrita em um canal do youtube. Evidentemente, o narrador dessa história é um homem. 

Embora menos caricatos, nem mesmo os conteúdos de moda fugiram da tendência sexista que tem consumido as redes: o novo estilo que está em alta, das chamadas “clean girls”, reproduz uma série de paradigmas ligados a padrões de gênero e raça. Com maquiagem leve e “natural”, cabelos “minimalistas” e roupas neutras, no padrão do que a elite apresenta como “elegante”, a estética que ganhou blogueiras do instagram e do tiktok tem sido o pretexto ideal para encher as timelines de corpos brancos, magros, com cabelos sem volume e peles sem marcas

São muitos os tutoriais que explicam o passo a passo, com diversos produtos (a maioria inacessível para grande parte da população), para obter a pele “perfeita”, sem acnes, manchas ou marcas de expressão, além de iluminação em regiões estratégicas para aparentar traços finos e joviais. Vendida como uma pele limpa e “natural”, esse é mais um dos padrões inalcançáveis que permeiam o imaginário feminino. Além disso, como era de se esperar, uma busca pelos termos “make” e “cleangirl” no instagram não resulta, em um primeiro momento, em conteúdos de blogueiras negras, demonstrando claramente qual o tom de pele de uma garota “clean”. Os penteados com o cabelo repartido ao meio, sem qualquer frizz ou volume, também dizem algo sobre quem são essas blogueiras. 

Em relação às vestimentas, o estilo clean e elegante compartilhado por muitas influencers inclui blazers, peças de alfaiataria e tudo mais que transmitir um ar de “sofisticação”. Roupas justas, curtas ou decotadas, que mostram muito as formas do corpo, devem ser evitadas, como indica um reel de uma blogueira de moda, com fotos ilustrativas do que não usar. Dessa vez, é “em nome da moda” que as mulheres devem optar por roupas que não mostrem tanto de si. Além disso, cabe salientar que todos os elementos que remetem à cultura periférica ou que tenham se popularizado entre classes mais baixas são considerados de extremo mau gosto, como marcas de bronzeamento, tatuagens, unhas decoradas e extensão de cílios. Não é surpresa que esse nicho é dominado por esquemas mercadológicos: a indústria do bem-estar, que inclui salões de beleza, spas e clínicas de emagrecimento, deve movimentar, até 2027, US$ 8,5 trilhões segundo estudo do Global Wellness Institute

A linha tênue entre escolha pessoal e a perpetuação de ideais sexistas

Evidentemente, não há problema nenhum em não gostar de alguns elementos estéticos ou em se identificar com determinado estilo: a questão que merece atenção é quando isso se torna uma tendência massificada, que toma conta das redes sociais e que passa a influenciar gostos e opiniões populares de maneira acrítica, fazendo reverberar desigualdades estruturais. O mesmo pode ser dito sobre os demais casos mencionados ao longo desse texto: escolhas individuais, como optar por se dedicar às tarefas do lar; traços de personalidade, como ser uma mulher mais meiga; ou interesses românticos por homens que performam mais “masculinidade” não são erros execráveis. Tratam-se, apenas, de fenômenos que, no âmbito coletivo, merecem ser analisados à luz dos estudos de gênero. 

Afinal, como explica Saffioti, “nenhuma relação social se passa fora da estrutura”. Em uma sociedade historicamente marcada por hierarquias de gênero e normas sobre o comportamento feminino, qualquer sinal de ameaça às conquistas de liberdade das mulheres deve ser visto com cuidado. Nas palavras de Debert e Gregori em alusão à Butler, “gênero é uma prática de improvisação em um cenário de constrangimentos”. Cabe a nós pensar quais improvisos resultarão dos constrangimentos que têm enchido nossas timelines.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Estagiária de pesquisa do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS). Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Tem interesse em pesquisas na área de inclusão digital, educação midiática, segurança pública e Direitos Humanos nas redes

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