Porque a Reforma Política pode impedir que você xingue muito no Twitter (ou Facebook)
11 de outubro de 2017
Recentemente, em relatório da Freedom House sobre liberdade de expressão online, o Freedom on the Net Report de 2016, o Brasil teve sua nota rebaixada no cenário internacional de proteção a esse direito individual dos usuários. O rebaixamento é resultado de diversas ações que visam a restringir os direitos dos usuários online, especialmente sua liberdade para postar críticas, notícias investigativas e utilizar livremente aplicações de comunicação.
Em meio à reforma política em curso no Congresso Nacional, o plenário da Câmara dos Deputados e do Senado aprovou mais uma medida que pode vir a ameaçar ainda mais a liberdade de expressão nas redes. A partir do relatório do deputado Vicente Cândido sobre a Reforma Política, aceitou-se a inclusão no texto da Emenda 6, que obriga as plataformas removerem, em até 24 horas, postagens anônimas consideradas “ofensivas” aos candidatos, candidatas e partidos políticos durante o período de campanha eleitoral. Na prática, isso daria suporte legal para remoção dos seus comentários, postagens e compartilhamentos, usuários de redes sociais como Twitter e Facebook.
O que diz o § 6º do art. 57-B
“A denúncia de discurso de ódio, disseminação de informações falsas ou ofensa em desfavor de partido ou candidato, feita pelo usuário de aplicativo ou rede social na internet, por meio do canal disponibilizado para esse fim no próprio provedor, implicará suspensão, em no máximo vinte e quatro horas, da publicação denunciada até que o provedor certifique-se da identificação pessoal do usuário que a publicou, sem fornecimento de qualquer dado do denunciado ao denunciante, salvo por ordem judicial.”
O PL 110/2017, encaminhado para sanção presidencial depois de aprovado com imensa celeridade, contraria diretamente disposições do Marco Civil da Internet, lei que define o uso da Internet no Brasil, bem como o decálogo dos princípios definidos pelo Comitê Gestor da Internet para a governança das redes no país.
Nesse contexto, o dispositivo atenta contra a Inimputabilidade da Rede, uma vez que não se destina aos possíveis autores de atos ilícitos, mas aos provedores de aplicação da Internet, aos “intermediários”. Além disso, de forma clara, atinge a Liberdade de expressão, na medida em que propõe mecanismo de censura privada, a ser perpetrada pelas empresas que operem aplicativos ou redes sociais, de forma sumária, em prazo exíguo e que, em termos práticos, também ignora direitos de defesa e contraditório.
O objetivo desta disposição seria garantir que os provedores de aplicação de internet possam identificar os usuários responsáveis por discursos de ódio, por informações falsas ou até mesmo ofensas a partidos ou candidatos, de forma a viabilizar posterior adoção de medidas judiciais cabíveis. Assim, o dispositivo impõe aos provedores de aplicação a suspensão, no prazo máximo de vinte e quatro horas, contados do recebimento da denúncia, dos conteúdos denunciados, até que possa se certificar da identificação pessoal do usuário.
Esse dispositivo, no entanto, é absolutamente desnecessário. A norma prevista no artigo 15, do Marco Civil da Internet, já obriga os provedores de aplicação de internet a guardar, pelo prazo de 6 meses, os registros de acesso às aplicações de internet, que são suficientes para garantir a possibilidade de identificação dos seus usuários. O Marco Civil ainda criou, por meio de seu artigo 22, requisitos legais e um procedimento específico para requisição judicial desses registros.
O Superior Tribunal de Justiça reconhece que cabe aos provedores de aplicação de internet a obrigação de coletar e armazenar apenas os registros de aplicação de internet e mais nenhum outro dado ou informação de seus usuários. Tanto assim que o artigo 11, § 1º, do Decreto 8771/2016, que regulamentou o Marco Civil da Internet, expressamente desobrigou os provedores de aplicação de internet de coletar e armazenar os dados cadastrais (qualificação pessoal, endereço e filiação) de seus usuários.
Outro ponto que merece crítica pela ausência de tecnicismo é a ausência de clareza do termo “identificação pessoal do usuário”, que não possui definição legal precisa. A excessiva amplitude e vagueza da linguagem adotada na disposição traria excessiva insegurança jurídica, que não deve ter espaço no ordenamento jurídico. Nos termos da legislação específica (Marco Civil da Internet e respectivo Decreto), os provedores de aplicação de Internet não estão obrigados a coletar e guardar “dados cadastrais” (art. 11, § 1º, do Decreto nº. 8.771/2016), mas apenas “registros de acesso a aplicações de Internet”, que não se enquadram no conceito de “identificação pessoal do usuário”. Ou seja, a emenda demonstra ainda mais desconhecimento sobre o atual contexto normativo brasileiro sobre o tema.
O objetivo dessa disposição já é plenamente alcançado pelas obrigações impostas aos provedores de aplicação de internet, seja pelo Marco Civil da Internet, seja pelo decreto que o regulamentou. Ou seja, não há qualquer justificativa para se determinar a suspensão sumária de qualquer conteúdo até que os provedores possam identificar os seus usuários, nos termos e nos limites do Marco Civil da Internet e do entendimento do STJ.
O dispositivo também atenta contra a liberdade de expressão (art. 5º, IX, da Constituição), uma vez que impõe a suspensão sumária e privada de conteúdo na internet, independentemente do crivo judicial, em linguagem subjetiva e vaga, e em exíguo e irrazoável prazo. Apesar de recentes atentados por segmentos menos democráticos da população a liberdade de expressão é reconhecida como direito humano fundamental por tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Decreto nº 592/1992), mas também fundamento da disciplina do uso da internet no Brasil, nos termos da Lei Federal nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), além de direito fundamental assegurado na Constituição.
Segundo apontou o relator especial da ONU para a liberdade de expressão, em declaração conjunta com a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, a Organização dos Estados Americanos e a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, “proibições gerais à disseminação de informação baseadas em ideias vagas e ambíguas, como ‘notícias falsas’ ou ‘informação não objetiva’, são incompatíveis com os padrões internacionais”.
A exigência legal de suspensão sumária de conteúdo, mediante mera denúncia, violaria não apenas o exercício da cidadania e a liberdade de expressão, mas a estrutura e dinâmica da internet no Brasil. Essa previsão na prática estabelece uma “privatização” da análise da legalidade de conteúdos, transferindo aos provedores de aplicação a delicada responsabilidade de analisar se o conteúdo de alguma postagem realizada por meio de suas redes configura ou não informação falsa ou discurso de ódio — o que ainda contraria o princípio constitucional da inafastabilidade da apreciação do poder judiciário (art. 5º, XXXV, da Constituição).
Não caberia ao Poder Judiciário determinar o que é ilícito ou não, já que se trata de sua função típica e indelegável? Essa é uma importante garantia, justamente para evitar abusos, que não por acaso foi refletida no art. 19 do Marco Civil da Internet, após extenso debate, e vem sendo consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça, a corte responsável pela uniformização da legislação federal brasileira. Caso o dispositivo não seja vetado, haverá claro estímulo à prática de censura durante o período eleitoral, o que causará sérios prejuízos ao debate democrático no país.
A Justiça Eleitoral deve atuar com a menor interferência possível no debate democrático. Além disso, as limitações impostas aos conteúdos veiculados na Internet são voltadas aos candidatos, partidos políticos e coligações, não devendo atingir a livre expressão do pensamento do eleitor. Se até mesmo a Justiça Eleitoral entende que deve haver mínima interferência nos conteúdos veiculados na Internet, não há qualquer fundamento para se obrigar os provedores de aplicação de Internet a suspenderem todo e qualquer conteúdo mediante mera denúncia que o qualifique como “discurso de ódio, disseminação de informações falsas ou ofensa em desfavor de partido ou candidato”, sob a justificativa de identificação pessoal do usuário e não por se verificar qualquer efetiva ilicitude no conteúdo, o que somente pode ser feito pela apreciação do Poder Judiciário.
Não há, na legislação, qualquer critério para a determinação do que seja discurso de ódio ou informação falsa. Mesmo quem compartilhe informação falsa de boa-fé, por exemplo, teria o conteúdo sumariamente suspenso, sem a garantia do crivo judicial. Mais ainda, essa disposição tem elevado potencial de suprimir qualquer discurso crítico, o que não deveria ter espaço em nenhum regime democrático, sobretudo durante o período eleitoral.
Mais uma vez, a internet está sendo percebida como uma ameaça e um risco, sendo que ela é, na verdade, uma ferramenta eficaz e capaz de ampliar o acesso à informação e ao conhecimento, de conectar pessoas e interesses, de ampliar o acesso a serviços públicos, de gerar oportunidades de inovação e empreendedorismo, de ampliar e aprimorar o exercício da cidadania. A medida, conforme aprovada no Congresso, funcionaria como uma forma de censura virtual, o que é especialmente preocupante em períodos eleitorais, nos quais os debates, busca por informações e formação de opinião ocorrem, em grande parte, online. O exercício de participação política dos cidadãos e cidadãs no futuro do país, hoje em dia, também ocorre nas redes sociais, em sites pessoais e outras plataformas de divulgação de conteúdo pessoal.
Infelizmente, o projeto de lei da reforma política já foi aprovado pelo Senado Federal. Agora basta a sanção presidencial para que a lei seja aplicada já em 2018. Ou seja, é hora de se mobilizar. Há várias razões para que seja vetado um dispositivo tão prejudicial às liberdades individuais online e ao exercício da cidadania na Internet. Por isso, o Instituto de Referência em Internet & Sociedade recomenda o veto integral do §6º do art. 57-B do PLC nº 110/2017.
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