Por que sua vida online não é virtual na sociedade da informação?
Escrito por
Felipe Duarte (Ver todos os posts desta autoria)
19 de outubro de 2020
“O mundo online e offline não são separados”. Para quem acompanha o trabalho do IRIS e de outras organizações da sociedade civil que estudam internet e sociedade, essa frase deve soar bem repetitiva. De uma forma ou outra, sempre acabamos tocando nesse assunto em eventos, seminários acadêmicos, entrevistas para jornais ou na redação de um estudo novo. Por mais que essa pauta esteja longe de ser uma novidade e soe repetitiva, ela sempre vem à tona justamente pela a necessidade de relembrar que nossas vidas on e offline não se desvinculam.
Este texto busca explicar de forma direta os motivos dessa constatação tão repetida e necessária para se entender qualquer fenômeno que envolva a participação social na internet.
Exemplos não faltam
Se, por um lado, durante os meses de 2020 marcados pela pandemia do novo coronavírus, o caráter real das relações que estabelecemos e nutrimos por meio das tecnologias ficou mais evidente na prática, ainda é necessário expandir o horizonte de como a vivência online afeta não apenas a nossa vida pessoal — com as videochamadas com amigos e familiares, cursos online e novas formas de trabalho —, mas também nosso convívio na sociedade como um todo.
O recente (até o lançamento desse texto) documentário “Dilema das Redes”, da Netflix, evidencia os aspectos mais negativos, principalmente relacionados à manipulação que resulta do grande poder que as grandes empresas de tecnologia (as Big Techs) têm conquistado nos últimos anos. A violação da privacidade e a forma como isso afeta tanto a vida em rede quanto a saúde mental da população também é uma questão que se reflete amplamente na sociedade e é abordada no filme. Apesar de existirem muitas discussões sobre pontos problemáticos do próprio documentário, essas questões são reais e vividas tanto on quanto offline em escala global.
Mas, ainda que existam muitos desafios difíceis quando a internet amplia tanto as dimensões da sociedade, existem outros fatores — e que não são poucos — importantes para um desenvolvimento social positivo. O uso de plataformas de código aberto por cientistas, engenheiros, e programadores do mundo todo, por exemplo, demonstra a dinâmica social proporcionada pela internet e como esses esforços resultaram na criação de respiradores baratos para o tratamento de pessoas internadas com covid-19 — os quais ajudaram a salvar muitas vidas. Vidas reais.
Na sociedade da informação o meio ainda é a mensagem
O ser humano vive em sociedade e estabelece conexões que resultam em redes há muito tempo. Conforme aponta o doutor em antropologia Jair Ramos, essa história é antiga, mas, até antes da ascensão da rede mundial de computadores, as “redes analógicas” tinham como principal ponto (muito relacionado aos processos de colonização) a materialidade: o território, o estar presente. Com as possibilidades que surgem com a internet, essa lógica acaba sendo alterada — uma vez que o que estabelecemos online são conexões que não se vinculam, necessariamente, a um tempo e a uma materialidade que até então seriam “pré-requisitos” para a convivência social.
“Logo, o que é chamado um tanto equivocadamente de virtual – e o equívoco – reside na oposição entre real e virtual – é essa experiência de existir e agir em um espaço cuja matéria é informação.” – Jair Ramos
Dessa forma, é possível considerar que o que existe na internet é uma extensão de todas as nossas relações sociais: as pessoas com as quais convivemos, as atividades que realizamos e as movimentações nas quais nos envolvemos, só que acontecendo em uma outra dinâmica própria da rede mundial de computadores, tanto no que diz respeito a sua infraestrutura quanto de suas potencialidades como meio de comunicação. Tomando um dos jargões mais citados na Comunicação Social de que “o meio é a mensagem”, é possível dizer com base nessa citação de Marshall McLuhan que na internet convivemos na mesma sociedade em que também estamos fisicamente, portanto nos relacionamos online de acordo com as possibilidades que a internet nos traz.
O tempo na internet parece se dissolver em um feed infinito de postagens e informações que ganham e perdem rapidamente a relevância — como é o caso do Twitter, rede social que é um prato cheio para jornalistas, em que tudo aparece primeiro e já dá lugar a outra questão com a mesma rapidez com que a anterior surgiu. Já a ausência da presença física, por muitas vezes, pode nos permitir estar em dois ou mais “lugares” simultaneamente, e ao mesmo tempo em que nos abre espaço para cumprir nossa responsabilidade social de ficar em casa, também nos possibilita participar de espaços de discussão e aprendizado, como o R Design Contornos, evento que participei recentemente e mostrou que movimentos sociais — como o estudantil — continuam reais e vivos também online. Por outro lado, essa “não-materialidade” também nos faz pensar se realmente estamos vivendo experiências pela rede ou apenas acumulando abas no navegador e em nossas cabeças — as quais não foram desenhadas exatamente para ser tão “multitarefas” assim.
Outro ponto importante e que, por muitas vezes, acaba por colaborar com a visão de um mundo “dentro” e “fora” da internet é a falsa sensação de anonimato. Acreditar que a criação de um perfil — seja real ou fake — legitima a propagação de discurso de ódio em comentários ou possibilita a divulgação de conteúdo sem possível identificação é uma questão que ainda exige maior conscientização. Soa básico, mas ainda assim é fundamental entender: da mesma forma como pensamos em nossas palavras e atitudes com as pessoas ao nosso redor (conhecidas ou não), na internet os perfis continuam sendo pessoas.
“Essa sensação de anonimato dá margem ao crescimento da intolerância e do discurso de ódio, cujos alvos principais são mulheres, LGBTs, negros e minorias. ‘Na internet valem todas as leis. Pena que tem gente que acha que é a terra da impunidade absoluta’, diz [Rodrigo] Nejm.” – Estadão
Os direitos sociais desenvolvidos até então não deixam de valer porque a internet passou a existir. Afinal, a internet é um (não tão) novo ambiente de exercício da cidadania construído por pessoas e mediado por tecnologias. O que se observa é a necessidade de adequação de alguns direitos, deveres e atitudes às novas dinâmicas sociais que a rede mundial de computadores nos possibilita. A Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente e muitas outras normativas que dizem respeito a nossos direitos fundamentais são bases para leis como o Marco Civil da Internet, por exemplo.
A sua vida é real e é uma só
Por fim, repito aqui pela última vez neste texto: é preciso pensar na internet como uma extensão, e não como um outro lugar. Pensar na internet de forma separada de nosso convívio social que até décadas atrás acontecia limitado à materialidade é reforçar uma ideia de que o ambiente online é “terra de ninguém” (o que está bem longe de ser verdade), e que práticas de discurso de ódio são legítimas. Devemos ser responsáveis por nossos atos em sociedade. Uma vez que a sociedade também acontece na internet, não há motivo para não ser responsável online também. Seja na internet ou fora dela, sua vida é real e é uma só.
* Os pontos de vista e opiniões expressos nesta postagem do blog são de responsabilidade do autor. As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração por Freepik Stories
Escrito por
Felipe Duarte (Ver todos os posts desta autoria)
Coordenador de comunicação do IRIS, designer e ilustrador freelancer no mercado editorial e publicitário, com foco em criações vibrantes que mesclam natureza, orgulho LGBT+ e surrealismo. Graduado em Publicidade pela UFMG, é coordenador de comunicação no Instituto de Referência Internet e Sociedade, onde atua pela democratização do conhecimento. Também foi membro do programa Youth no IGF2023 no Japão e pesquisador em temas de inclusão digital, autor dos livros “Glossário da Inclusão Digital” e “Inclusão digital como política pública”. Além disso, também é apresentador do podcast “Lascou!”, sobre as dificuldades de artistas on e offline.