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A eleição de 2020 nos EUA e o debate sobre desmembrar gigantes da tecnologia

29 de maio de 2019

Em 2020, a população dos Estados Unidos votará para eleger seu próximo presidente. Conforme o período eleitoral se aproxima, o futuro das grandes empresas de tecnologia tem sido objeto de debate cada vez mais acentuado sobre concorrência e inovação. Argumenta-se que companhias como Apple, Amazon, Google e Facebook tornaram-se monopólios, absorvendo parcelas demasiadamente grandes de seus mercados e prejudicando a concorrência e a inovação no setor digital. Nesse contexto, algumas pré-candidaturas têm defendido publicamente o uso de leis e medidas de antitruste para desmembrar essas corporações.

No post de hoje, apresentamos o debate sobre a pauta concorrencial e as grandes empresas de tecnologia no contexto pré-eleitoral dos EUA.

A Big Tech e o abuso de poder no mercado tecnológico

Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft. Esse conjunto de grupos empresariais – ocasionalmente designado como GAFAM, Big Tech ou Big Five – é conhecido por sua hegemonia na indústria de tecnologia digital. Nós utilizamos seus sistemas operacionais, fazemos compras e buscas através de suas plataformas, mantemos contas em suas redes sociais e conhecemos os nomes e rostos de seus fundadores. Isso ocorre, muitas vezes, sem que sequer tenhamos consciência: quando mandamos áudios por WhatsApp ou vemos stories no Instagram, não é óbvio que esses serviços pertencem à Facebook Inc. Similarmente, o usuário padrão ignora que o sistema Android é desenvolvido pela Google e que esta pertence ao Alphabet Inc., conglomerado que também é proprietário do Youtube.

Os problemas associados a essa concentração de poder econômico, político e cultural têm sido um foco cada vez maior de atenção pública. Muito se fala sobre como filtros-bolha, bots e desinformação fragilizam a democracia e manchetes sobre violações da privacidade e da liberdade de expressão dos usuários pelas empresas se tornaram comuns nesta década. Em resposta, legisladores têm recorrido à regulação para proteger os usuários, como evidenciado pela aprovação do Regulamento Geral de Proteção de Dados Pessoais na Europa e da Lei Geral Proteção de Dados no Brasil.

Mais recentemente, o debate sobre as Big Tech vem ganhando novos tons.Outro aspecto da problemática em questão atraiu interesse regulatório sobre esses players: o abuso de posições dominantes na indústria de tecnologia para prejudicar concorrentes de modo a impedir que a competição aconteça efetivamente.

A Google, por exemplo, foi multada em março deste ano pela Comissão Europeia (CE) em 1,49 bilhão de euros por abusar de seu domínio no mercado de anúncios de busca online para beneficiar as diversas empresas do conglomerado ao qual pertence em detrimento de companhias rivais. A empresa já havia sido multada pela CE em € 4,34 bilhões no ano passado por utilizar de seu controle sobre o Android para prejudicar competidores e também em € 2,7 bilhões em 2017 por manipular os resultados de seu buscador para favorecer indevidamente seus próprios produtos e serviços.

Similarmente, a Apple foi para o centro dos holofotes recentemente quando, no dia 13/05, a Suprema Corte dos EUA aceitou que uma ação coletiva de antitruste movida por consumidores seja levada adiante no tribunal. Os autores da ação alegam que a companhia utiliza seu poder de monopólio para inflar os preços de aplicativos de iOS ao exigir que todas as compras e vendas de software para iPhone ocorram através da App Store. Uma vez que a Apple fica com até 30% de cada transação realizada pela Store, os consumidores afirmam que os preços dos aplicativos seriam menores se desenvolvedores e usuários pudessem negociar sem o intermédio da plataforma.

O cenário pré-eleitoral estadunidense e a eclosão da pauta concorrencial

Na medida em que essa questão adquire maior projeção pública, os reguladores têm buscado responder a ela através do emprego de diferentes mecanismos. Em fevereiro, por exemplo, a Comissão Federal do Comércio dos Estados Unidos lançou uma força-tarefa voltada a supervisionar competição nos mercados de tecnologia, investigar práticas anticompetitivas e punir infratores quando ordenado. Entre outras coisas, o grupo examinará as fusões entre grandes players no setor, o que incluirá tanto a revisão de integrações já concluídas quanto a análise de fusões futuras.

Em março, a controvérsia adquiriu contornos explicitamente eleitorais devido à publicação de um plano, por parte de Elizabeth Warren – senadora e atual pré-candidata à presidência pelo Partido Democrata – para desmembrar as grandes empresas de tecnologia. A proposta de Warren se baseia em duas medidas fundamentais: 1)  empresas com faturamento anual a partir de US$ 25 bilhões seriam proibidas de ser proprietárias simultaneamente de plataformas digitais (de comércio, troca e/ou conexão entre terceiros) e de atores que participam nessas mesmas plataformas: a Google não poderia possuir o Google Search (plataforma) e o Google Ads (participante) ao mesmo tempo e a Amazon não poderia participar no Amazon Marketplace (plataforma) vendendo produtos da Amazon Basic e Amazon Essentials, por exemplo; 2) fusões entre gigantes da indústria seriam revertidas, como no caso das aquisições do Whatsapp e do Instagram pelo Facebook, do Waze pela Google e da Whole Foods pela Amazon.

Desde sua publicação, a repercussão da proposta foi significativa. Críticos têm disputado sua viabilidade institucional enquanto outros pré-candidatos são repetidamente questionados a respeito de suas posições em relação a esse tipo de medida. Margrethe Vestager, atual Comissária Europeia para a Concorrência, ponderou que a disputa judicial envolvida poderia levar uma década e classificou esse tipo de ação como um “último recurso”. Algumas pré-candidaturas ligadas ao partido Democrata – nominalmente Kamala Harris, Joe Biden e Bernie Sanders -, por outro lado, têm expressado apoio à ideia de que a possibilidade deveria ser, no mínimo, debatida e considerada.

A discussão foi reaquecida recentemente quando Chris Hughes, co-fundador do Facebook, publicou um artigo de opinião defendendo o desmembramento da gigante. Segundo ele, a estratégia do Facebook nos últimos anos foi baseada em derrotar qualquer competidor à vista. Isso seria exemplificado pelas aquisições do WhatsApp e do Instagram, pela duplicação do modelo de compartilhamento do Snapchat e pelo uso do algoritmo do feed de notícias para priorizar vídeos produzidos na própria plataforma, por oposição aos provenientes de competidores (Vine, Youtube). Assim, comenta Hughes:

“Como resultado de tudo isso, competidores potenciais não conseguem levantar o capital necessário para enfrentar o Facebook. Os Investidores percebem que se uma empresa ganha tração, o Facebook copiará suas inovações, a levará à falência ou a comprará por um valor relativamente modesto. Então, apesar de um período estendido de crescimento econômico, de um interesse crescente em startups de alta tecnologia, de uma explosão de capital de risco e da crescente antipatia pública pelo Facebook, nenhuma grande empresa de rede social foi fundada desde o outono de 2011.”

A repercussão do artigo foi significativa e suscitou uma rápida resposta do vice-presidente de assuntos globais e comunicações da empresa, Nick Clegg. Clegg sustenta que o Facebook não é um monopólio, pois enfrenta competição significativa em cada subárea na qual a empresa presta serviços. Segundo ele, o raciocínio de Hughes puniria o Facebook por seu sucesso no mercado, o que não seria o objetivo das leis antitruste, cuja finalidade seria garantir serviços de boa qualidade a baixo custo para consumidores – algo que o Facebook alegadamente faria.

A Defesa da Concorrência de um ponto de vista jurídico

O Direito Concorrencial é a área do conhecimento jurídico que busca regular as relações que ocorrem entre empresas, como os processos de concentração do mercado e a formação de monopólios, bem como a própria disciplina antitruste – que busca promover um ambiente concorrencial justo e prevenir formações monopolísticas.

Na defesa da concorrência, do ponto de vista do Direito, há algumas condutas que são consideradas como infrações à ordem econômica. Dentre essas condutas, pode-se citar as de prejudicar, de qualquer forma, a livre concorrência ou a livre iniciativa, aumentar arbitrariamente os lucros de uma empresa, exercer de forma abusiva posição dominante, impor barreiras à entrada no mercado, entre outras. Da perspectiva da defesa concorrencial nos Estados Unidos (e diversos outros países), portanto, pode-se perceber que ocupar posições dominantes no mercado não é problemático por si só. Isso se torna um problema, todavia, se o poder advindo dessas posições passa a ser utilizado de forma abusiva para impedir que a competição aconteça de fato.

A legislação antitruste dos EUA consiste em um conjunto de leis, federais e estaduais, que visa regular a conduta de corporações, a fim de promover a livre concorrência e o benefício aos consumidores. As principais leis que compõem a legislação concorrencial estadunidense são o Sherman Act de 1890, o Clayton Act de 1914 e o Federal Trade Commission Act de 1914.

A jurisprudência, por sua vez, constitui a principal fonte do sistema jurídico da Common Law, da qual os Estados Unidos fazem parte. Há uma vasta gama de precedentes de cortes estadunidenses que dizem respeito a diversas práticas anticoncorrenciais realizadas por empresas. Dentre as infrações à ordem econômica constantes em decisões judiciais das cortes estadunidenses, pode-se citar, entre diversas outras, as práticas de:

  1. a) Monopólio: domínio de um setor de mercado por uma empresa ou corporação;
  2. b) Venda exclusiva: disponibilização de algum produto específico unicamente através de um único distribuidor;
  3. c) Venda casada: venda de um produto ou serviço específico unicamente se comprado juntamente com outro produto específico;
  4. d) Preços predatórios: atribuição de preços irrazoavelmente baixos a um produto ou serviço, a fim de prejudicar as vendas de uma empresa concorrente de menor poder econômico e causar sua falência.

As práticas anticoncorrenciais realizadas pelas empresas tendem a repercutir em prejuízos não apenas para as empresas concorrentes, mas também para os consumidores em geral. Dentre os danos causados por essas práticas, constam a inibição da inovação, a redução da competitividade e, consequentemente, do leque de opções disponíveis para os consumidores, a elevação dos preços e a redução da qualidade dos serviços. As empresas concorrentes, por sua vez, observam prejuízos econômicos significativos – em especial no caso de empresas de pequeno porte, incapazes de competir com a flexibilidade operacional das gigantes do mercado –, bem como barreiras à entrada de novas empresas em um setor do mercado, entre outros.

A insuficiência do atual modelo jurídico de Defesa da Concorrência

O modelo de defesa da concorrência vigente nos dias atuais – pautado na proteção apenas contra condutas que possam gerar danos à concorrência ou ao mercado consumidor – é objeto de intensos debates. Qual o escopo de aplicação das legislações antitruste? Até que ponto essas regulações devem interferir na atividade empresarial das sociedades que compõem cada setor do mercado? Essas são algumas das questões levantadas nessa discussão.

Uma importante corrente que faz contraponto ao atual modelo antitruste defende a necessidade de que o alcance da regulação anticoncorrencial não se limite apenas aos abusos de poder por parte das empresas, levando em consideração também, por exemplo, a possibilidade de controle do poder econômico de empresas para defesa do interesse público. Essa teoria ganha força, principalmente, quando se tem em mente o mundo em que vivemos hoje e, mais especificamente, a existência da Big Tech.

Isso porque essas gigantes do mercado ascenderam à posição na qual hoje estão, em geral, não por via de práticas concorrenciais abusivas, mas sim por terem inventado um modelo de negócios, de uma forma ou outra, inovador, tendo introduzido no mercado serviços e produtos novos e que foram bem recebidos pelo público. Contudo, não se pode negar que, do ponto de vista do anteriormente mencionado interesse público, a mera existência de empresas com tamanho poder econômico, político e cultural representa um risco considerável tanto para os direitos dos consumidores quanto para os valores democráticos de forma mais ampla.

É inegável, por exemplo, que todas as empresas integrantes do GAFAM detêm quantidades imensuráveis de dados provenientes de seus usuários. Esses dados, por sua vez, são empregados, por diversas vezes, para fins irregulares – seja pela “mera” falta do consentimento do usuário detentor, no caso de dados pessoais, ou até por motivos manifestamente ilícitos. Além disso, todas as integrantes do Big Tech possuem poderes suficientes para confrontar fortemente os comandos estatais – o que se evidencia pelo poder de resistência que exercem nas diversas disputas judiciais. Nesses casos, elas em geral permanecem relativamente impunes a ordens judiciais e sanções impostas em decorrência de condutas irregulares.

Uma ampliação do escopo de aplicação das leis anticoncorrenciais, portanto, parece adequar-se bem ao modelo de dominação de parcelas significativas do mercado por parte da Big Tech.  Isso porque o poder de mercado exorbitante exercido por essas empresas, apesar de não necessariamente constituir uma conduta anticoncorrencial por si só (embora as práticas anticoncorrenciais também sejam frequentes na Big Tech), representa um risco inquestionável aos consumidores e ao próprio interesse público – e os prejuízos resultantes desse desequilíbrio de poder são palpáveis.

Conclusão

O enfoque nas discussões acerca da concentração de poder nas mãos das empresas que compõem a Big Tech, portanto, constitui importante ponto de partida para uma regulação do mercado que tenha em vista a devida proteção dos direitos e interesses do mercado consumidor. Essa discussão, contudo, não é o bastante para que seja garantido, de fato, um mercado tecnológico saudável. Cada vez mais, medidas visando evitar a concentração do mercado pelas gigantes da tecnologia mostram-se imprescindíveis para a defesa da competitividade no mercado, bem como dos próprios direitos dos usuários da internet.

Quer saber mais sobre os problemas decorrentes da concentração de poder no mercado tecnológico? Confira nosso post sobre bots, fake news e outras ameaças à democracia.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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