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Os vetos presidenciais da LGPD enquanto representação do distanciamento governamental

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9 de setembro de 2019

A atuação do poder legislativo de uma nação, originariamente, é pautada nas demandas e interesses da sociedade, e, como a própria expressão terminológica diz, a função típica desse poder é legislar, ou seja, elaborar normas jurídicas. Entretanto, conforme concepção kelseniana, há uma insuperável separação entre ser e dever-ser. Ou seja, os propósitos iniciais das instituições políticas, incluindo o poder legislativo, são raramente exercidos no mundo concreto. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) é prova deste descompasso.

Neste texto, serão apresentados os processos jurídicos e políticos empreendidos durante a elaboração da LGPD que culminaram no cenário atual: o poder de legislar sendo exercido pelo Poder Executivo e interesses populares afastados dos centros decisórios. Portanto, na prática, a justificação e função inicial do poder legislativo, mencionada no início desta introdução, não são adotadas. O mote desse contexto controverso são os vetos presidenciais ao projeto legislativo vinculado à LGPD. 

Os processos decisórios para a elaboração de uma lei envolvem concessões e aquisições por parte dos atores envolvidos. Nem todas as pautas e demandas adentram a agenda política de um governo. Sendo assim, diante de uma crise ambiental que ataca a maior floresta tropical do mundo, diante de uma crise educacional de abruptas contenções orçamentárias, e outras tantas crises estruturais; resta saber: as demandas da sociedade pelo respeito ao direito fundamental à privacidade e pela garantia da proteção de seus dados pessoais, por ora vetados, continuarão sendo objeto de engajamento de nossos representantes políticos? 

Tramitação legislativa da LGPD e de suas normas correlatas

Em 2009, o Ministério da Cultura lançou um site com objetivo de “agregar em uma plataforma web pessoas e fluxo de conteúdos ligados à construção de políticas públicas e marcos regulatórios para o digital”. Nesta plataforma, em 2010, iniciaram-se os debates institucionalizados pelo governo sobre a elaboração de uma lei brasileira para a proteção de dados pessoais. Nesta plataforma, alguns convidados publicavam textos sobre o tema e, por meio de comentários, os cidadãos manifestavam suas opiniões. Além disso, os participantes poderiam expor suas considerações sobre o Anteprojeto de Lei, por meio de consulta pública coordenada pelo Ministério da Justiça. 

Conforme Bruno Bioni expõe em seu artigo sobre a jornada para elaboração da LGPD, em 2015 foi realizada uma segunda consulta pública, de melhor qualidade e com maior quantidade de contribuições. O resultado foi o PL 5276/2016, construído em cooperação com mais de 40 entidades nacionais e internacionais. A comissão realizada para analisar o PL foi composta por parlamentares de diferentes partidos, corroborando para a aprovação do texto legal por unanimidade na Câmara dos Deputados. Enquanto o PL 5276/2016 tramitava na Câmara dos Deputados, foram realizadas diversas audiências públicas com a participação da sociedade e debates, no âmbito do Senado,  sobre o PLS 330/2013. Este contexto fez com que sociedade civil, Câmara dos Deputados e Senado direcionassem esforços, em conjunto, sobre o tema da proteção de dados.

O cenário político em 2017, marcado pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, não foi favorável ao avanço da pauta da proteção de dados no congresso. Entretanto, após o escândalo da Cambridge Analytics, as propostas legislativas foram compiladas e o PLC 53/2018 foi apresentado como o projeto medular da Lei Geral de Proteção de Dados. Neste momento, o diálogo entre a sociedade civil, Senado e Câmara dos Deputados era notório. Como Bioni coloca:

“Dali em diante, notou-se, pela primeira vez desde 2010, manifestações multissetoriais envolvendo até então setores que se colocavam em lados opostos do debate público”

No dia 14 de agosto de 2018, a LGPD foi sancionada pelo presidente Michel Temer. Dia de celebração pela autodeterminação informativa e pela proteção da identidade do usuário adentrar o ordenamento jurídico brasileiro. Dia em que os diálogos entre a sociedade civil e representantes políticos começaram a ser silenciados. E o silêncio foi imposto com uso de um recurso institucional: o veto presidencial

Michel Temer vetou, total ou parcialmente, os arts. 23, 26, 28, 52 e 55 ao 59 da Lei 13.709/2018 (LGPD). Estes artigos diziam respeito ao compartilhamento de dados de requerentes de informações via Lei de Acesso à Informação, transferência de dados obtidos pelo poder público, sanções por violação à lei e, por fim, foi vetado a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). O texto final da LGPD, aprovado e publicado à época, pode ser acessado aqui.

Na justificativa para o veto à criação da ANPD, Temer afirmou que apenas o Executivo Federal teria competência para legislar sobre cargos e gastos no Poder Executivo, o que seria o caso da ANPD. Uma vez que a LGPD só é aplicável na existência de uma Autoridade, sua criação era (e ainda é) necessária. Portanto, no final do seu mandato, Temer editou uma Medida Provisória (MP), MP nº 869/2018, para alterar o texto da LGPD e criar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Assim como disposto no art. 62 da Constituição da República de 1988, as medidas provisórias produzem efeitos imediatos após a adoção pelo Presidente, mas os efeitos apenas são mantidos após apreciação da MP pelo Congresso Nacional. Durante este período de apreciação pelo Congresso, diversas emendas foram propostas à MP nº 869/2018. Portanto, foi apresentado um Projeto de Lei de Conversão (PLV), PLV nº 3, de 2019, com as emendas parlamentares à MP. O Projeto foi aprovado pelo Congresso Nacional e encaminhado à presidência da república para sanção. 

O presidente da república, Jair Bolsonaro, vetou 9 dispositivos do PLV nº 7, de 2019, desconsiderando cerca de 80 emendas de parlamentares, ou seja, manifestações dos nossos representantes políticos; desconsiderando as opiniões e demandas apresentadas nas 4 audiências públicas realizadas durante a apreciação da MP.

Autoritarismo e democracia – Para que serve o veto presidencial?

O veto presidencial pode ser um daqueles instrumentos jurídicos que, de início, associamos ao despotismo. Entretanto, as origens deste instrumento estão diretamente associada à manutenção da democracia. O caráter autoritário, por sua vez, está relacionado à falta de justificativas satisfatórias e pautadas na preservação dos direitos humanos.

Voltemos ao século XVIII, época que em que Montesquieu concebeu a teoria da separação dos poderes. Para o filósofo, o Estado deveria ser forte o suficiente para conseguir suprir as demandas dos cidadãos, mas não poderia ser demasiadamente poderoso para que não mantivesse seus cidadãos totalmente submissos. Para estabelecer um equilíbrio, era necessário que o exercício das funções e poderes do Estado fossem divididos entre diferentes atores. Assim, a função de legislar foi concedida a um grupo denominado Poder Legislativo, a função de executar as decisões ficou a cargo do Poder Executivo e a função de resolver conflitos ao Poder Judiciário. Para evitar que os grupos cresçam desproporcionalmente, foi estabelecido instrumentos de fiscalização e balanceamentos entre os poderes. Este modelo de formação política, denominado sistema de freios e contrapesos, foi adotado pela Constituição Brasileira de 1988.

Por exemplo, o caput do art. 101 da Constituição determina que os Ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) são escolhidos pelo Presidente da República, ou seja, uma ingerência do Executivo no Judiciário. Por sua vez, é de competência do Senado, julgar o Presidente da República em crimes de responsabilidade, art. 52, I da Constituição, ou seja, ingerência do Legislativo no Executivo. Assim, os Poderes que formam o Estado brasileiro se interferem dentro de um “complexo de delegações cruzadas”.

O veto presidencial é uma das peça desse sistema de freios e contra pesos, conforme afirmado por Hetsper. Originário de Roma, no século V a. c., o veto é uma limitação do Executivo à hegemonia do Legislativo expressa a partir de uma discordância do Presidente da República para com uma lei elaborada pelo Congresso Nacional. Entretanto, o poder de veto não é indeterminado: para que o presidente vete qualquer lei, devem ser apresentadas razões fundadas na inconstitucionalidade ou contrariedade ao interesse público, conforme art. 66, §1º da Constituição. Além disso, todos os vetos do presidente devem ser, um a um, aceitos pelo Congresso Nacional. Esta obrigação garante que as leis sejam aprovadas em consonância com os interesses da sociedade, visto que é necessária a aprovação do texto final da lei pelos representantes diretos da população, o Poder Legislativo.

Entretanto, dois pontos devem ser considerados na análise dos recentes vetos de Jair Bolsonaro ao Projeto de Lei de Conversão nº 7, de 2019:

  • Em estudos sobre presidencialismo de coalizão e processo decisório, Limongi demonstra que os atos normativos (vetos, elaboração de medidas provisórias e leis) do Presidente são quase sempre aprovados pelo Congresso. Isto porque o “plenário é extremamente previsível”, ou seja, os parlamentares efetivamente seguem as diretrizes dos líderes de governo. Após a vigência da Constituição de 1988, todos os presidentes (com uma menor relevância de Collor) dispunham de massivo apoio da maioria dos parlamentares. Ou seja, o que é vetado pelo presidente possui extraordinárias chances de ser aprovado pelo Congresso. Assim ocorreu com os vetos de Temer à LGPD: todos aprovados pelo Congresso Nacional. Estamos diante de uma explícita violação ao sistema de freios e contrapesos, base de regimes democráticos, devido à usurpação de competências legislativas por parte do Executivo.

“A fim de que exista um governo equilibrado (…), aquele que tenha a faculdade de vetar deve estar impedido de estatuir”. (MOYA,2006)

“O governo controla a produção legislativa e esse controle é resultado da interação entre poder de agenda e apoio da maioria”(LIMONGI, 2006)

  • Conforme mencionado, os vetos devem ser apresentadas junto com razões fundadas na inconstitucionalidade ou contrariedade ao interesse público, conforme art. 66, §1º da Constituição. Analisemos  ponto a ponto algumas das justificativas apresentadas, considerando os contrapontos divulgados pela Coalizão Direitos na Rede em Nota ao Parlamento contra os vetos:
  1. Desobrigação das decisões automatizadas: O poder executivo afirma que o art. 20, §3º da LGPD é contrário ao interesse público, pois seria excessivamente custoso ao setor empresarial disponibilizar ao cidadão uma revisão, por pessoa natural, das decisões que foram previamente feitas por robôs. Entretanto, como Kate Raworth aponta, o crescimento econômico, como cunhado em 1960 e persistente até os dias de hoje, está frequentemente desassociado de prosperidade econômica. Portanto, ainda que gastos adicionais sejam necessários para garantir que uma pessoa natural revise uma decisão algorítmica, tais gastos trazem impulsos sociais, como empatia e percepções de peculiaridades, que são únicos de seres humanos, e diminuem as discriminações algorítmicas tão frequentes. Processos e tecnologias que tem como base direitos humanos (no caso, direito ao tratamento igualitário e transparência das decisões) são processos e tecnologias que incluem pessoas,  maximiza participação de consumidores, portanto, resulta em prosperidade econômica alinhada ao interesse público.
  2. Possibilidade de compartilhamento de dados pessoais dos requerentes da Lei de Acesso à Informação (LAI): A justificativas para o veto afirmar que a proteção dos dados pessoais dos requerentes da LAI geram insegurança jurídica por impedir o exercício de diversas políticas públicas. Entretanto, a justificativa é completamente incoerente, pois o inciso IV, art. 23 da LGPD (veto em questão) apenas mencionava a ocultação dos dados pessoais dos requerentes em relação ao pedido da LAI. Portanto, qualquer dado que o poder público tivesse sobre o requerente (informações sobre cadastro no SUS, Previdência etc) não seriam objeto do sigilo. Este dispositivo é necessário para garantia da liberdade de expressão e efetivação de um governo transparente e aberto à fiscalização dos cidadãos.

A utopia de Eduardo Galeano e os vetos de Jair Bolsonaro

No início desta postagem, mencionei que os propósitos iniciais das instituições políticas, incluindo o poder legislativo, são raramente exercidos no mundo concreto. Após a análise dos suscetíveis vetos presidenciais (aprovados pelo Congresso) que retiraram da LGPD importantes garantias para os usuários, percebemos que a participação popular, por audiências e representação parlamentar, foi muitas vezes afastada da construção da lei

O Brasil, país de dimensões, marcado por uma colonização europeia e recente abolição da escravidão, tem muitas preocupações. O uso excessivo e discriminatório de força policial ainda precisam adentrar a agenda legislativa, assim como políticas de redistribuição de renda e territórios. Entretanto, o Brasil sendo um dos maiores consumidores de tecnologia final do mundo, com 62% da população com contas em redes sociais, também deve acompanhar e exigir que a pauta pelos direito à privacidade seja observada pelos representantes eleitos

Os vetos de Temer e Bolsonaro representam distanciamento dos diálogos e manifestações da sociedade civil. Sabemos que nem todas as demandas da sociedade serão atendidas pelo Estado, mas isso não será motivo de desistência. Conforme Eduardo Galeano afirma, o propósito das utopias, é manter a sociedade e os representante da sociedade nas diversas linhas de frente pela construção de uma sociedade mais inclusiva, democrática e igualitária.

Se você tem interesse em saber mais sobre as implicações da LGPD no cotidiano dos cidadãos, acompanhe o painel que o IRIS propôs para o Fórum da Internet no Brasil, “Proteção de dados e segurança pública no Brasil: contexto regulatório atual e perspectivas futuras”, a ser realizado dia 04/10 e transmitido pelo canal do NIC.br.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

 

Escrito por

Diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Representante do IRIS no Grupo de Trabalho sobre Acesso à Internet e na Força-Tarefa sobre eleições na Coalizão Direito nas Redes (CDR). Membro suplente no Comitê de Defesa dos Usuários dos Serviços de Telecomunicações (CDUST) da ANATEL. Co-autora dos livros “Inclusão digital como política pública: Brasil e América do Sul em perspectiva” (IRIS – 2020) e “Transparência na moderação de conteúdo: Tendências regulatórias nacionais” (IRIS – 2021).

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