E-Sports e o projeto de lei brasileiro: essa regulação é mesmo necessária?
Escrito por
Victor Vieira (Ver todos os posts desta autoria)
20 de agosto de 2018
No dia 24 de abril deste ano, a Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática aprovou o Projeto de Lei (PL) nº 383 de 2017, que segue em tramitação. O intuito do PL é reconhecer os E-Sports (ou esportes eletrônicos) como categoria esportiva válida no país. O intuito deste post é analisar a iniciativa e discutir sobre a necessidade ou não de uma lei que regulamente a prática dos E-Sports no Brasil.
O que exatamente são E-Sports?
E-Sport é o nome atribuído a qualquer competição organizada realizada por meio de jogos eletrônicos. Como se pode perceber, trata-se de um conceito muito amplo, que abarca diversas categorias de videogames.
Alguns exemplos de categorias mais populares são gêneros multiplayer competitivos como Luta – Street Fighter, Mortal Kombat, entre outros -, MOBA (Multiplayer Online Battle Arena) – dos quais DotA (Defense of the Ancients) e LoL (League of Legends) são de longe os mais famosos -, FPS (First Person Shooter ou Tiro em Primeira Pessoa) – como CS:GO (Counter Strike: Global Offensive), Overwatch, Rainbow Six: Siege, entre outros. Além disso, encaixam-se na definição de E-Sports as competições pela melhor pontuação em jogos para um jogador, e até pelo menor tempo necessário para finalizá-los – prática conhecida como speed running.
A necessidade de que a competição seja organizada significa que é preciso algum grau de profissionalização dos torneios. Em outras palavras, uma reunião de amigos para jogar algo em comum para fins de lazer não qualifica a prática de E-Sports, sendo necessário o intuito competitivo e o ranqueamento.
Surgimento e evolução dos E-Sports
O primeiro relato de uma competição organizada envolvendo videogames data de 1972, ano no qual foram realizadas as “Olimpíadas Intergaláticas de Spacewar”. O evento aconteceu na Universidade de Stanford, na Califórnia, e envolveu uma série de partidas competitivas do jogo Spacewar. O prêmio: uma assinatura da revista Rolling Stone.
Foi em 1980, contudo, que ocorreu a primeira competição de E-Sports em larga escala, com o “Campeonato de Space Invaders” – jogo desenvolvido pela Atari que alcançou grande popularidade na época de seu lançamento e que ainda hoje conta com uma fiel base de fãs e entusiastas. O campeonato foi organizado pela própria Atari, que na época era uma das maiores empresas relacionadas a videogames, e contou com cerca de dez mil participantes.
Desse incentivo, passou-se a popularizar cada vez mais a prática competitiva de jogos de videogame, e em 1981 foi fundada a Twin Galaxies, nos Estados Unidos. A entidade, existente e relevante até os dias atuais, é responsável pelos registros de recordes em videogames ao redor do mundo. O trabalho da Twin Galaxies foi, inclusive, utilizado pela Guinness World Records na confecção da Gamer’s Edition do livro, voltada exclusivamente a videogames.
O grande crescimento dos E-Sports se deu a partir dos anos 2000. Foi na primeira década do milênio que surgiram alguns dos mais icônicos jogos voltados para competições, como Counter Strike e Halo. Desde 2010, contudo, a popularização do streaming de conteúdo permitiu que a categoria alcançasse um crescimento nunca antes registrado. A transmissão das partidas por meio de plataformas como Twitch.tv levou os E-Sports para uma posição de destaque, o que resultou na transmissão dos grandes campeonatos de E-Sports até mesmo em canais de televisão dedicados a esportes “tradicionais”.
Hoje, apesar da resistência que se observou no passado, não há mais controvérsias em torno de os E-Sports serem, de fato, categorias esportivas. Os jogadores, assim como qualquer outro tipo de atleta, vêem a necessidade de submeter-se a extensos e rigorosos treinamentos, tanto de habilidades individuais e trabalho em equipe, para manterem-se em sua melhor performance possível.
O que diz a nova lei?
O Brasil é um dos países com maior presença mundial nos E-Sports e, motivado por esse cenário de ascensão dos esportes digitais, o legislador brasileiro achou pertinente criar um Projeto de Lei (PL nº 383/2017) que regulamenta essa prática. O PL, composto por apenas seis artigos, dá, em resumo, as seguintes previsões:
- Define o conceito de esportes eletrônicos como “atividades que, fazendo uso de artefatos eletrônicos, caracterizam a competição de dois ou mais participantes, no sistema de ascenso e descenso misto de competição, com utilização do round-robin tournament system (no qual todos os competidores devem competir entre si, acumulando pontos, sem que haja eliminação instantânea após uma derrota), o knockout system (no qual uma derrota elimina o competidor), ou outra tecnologia similar e com a mesma finalidade”;
- Determina que o praticante de E-Sports passa a receber a nomenclatura de “atleta”;
- Torna livre a prática dos E-Sports, e traça objetivos gerais para a prática dos mesmos. Dentre esses objetivos, constam a promoção da cidadania, do fair play, da cultura, do combate a discriminações, entre outros;
Outorga a competência para regulação dos E-Sports para outras entidades não especificadas.
Opinião dos principais afetados
O Projeto de Lei foi muito criticado desde sua concepção. Alguns dos principais críticos foram os próprios praticantes de E-Sports e empresas responsáveis pela criação e manutenção dos jogos não foram devidamente consultados durante a confecção do texto legal. Na verdade, a CBDEL (Confederação Brasileira de Desportos Eletrônicos) mencionou aos veículos de mídia que os únicos envolvidos na redação do PL foram o presidente da Confederação e o senador que o propôs ao Legislativo.
Cabe informar que a própria existência da CBDEL já representa um ponto controverso no cenário de E-Sports nacional. Isso porque a Confederação surgiu apesar de já ter sido criada, em momento anterior, a ABCDE (Associação Brasileira de Clubes de E-Sports), por parte das próprias empresas nacionais de videogames. Dessa forma, a CBDEL sempre foi considerada pela maioria dos jogadores como uma entidade não representativa da modalidade – o que tornou-se ainda mais evidente com a maneira como foi tratado o PL.
A sociedade como um todo, inclusive, também parece não ter aprovado em grande escala o projeto de lei. No site oficial do Senado, consta um medidor que aponta meros 43% de aprovação do PL pela população, dentre aproximadamente 11.200 votantes (dados do dia 17/08/2018).
A questão é: “Pra quê?”
Tendo-se em vista todos esses fatores, não é surpresa que o resultado final do projeto deixa muito a desejar. No estado atual do documento, e considerando que não houve alterações no texto original do PL, o que se pode esperar é uma lei genérica e essencialmente desprovida de real utilidade.
Primeiramente, tem-se que o tamanho reduzido do projeto de lei não permite grande elaboração acerca de nenhum dos temas abordados. O artigo que trata dos objetivos dos esportes eletrônicos, por exemplo, nada faz além de elencar metas genéricas que poderiam ser apontadas frente a qualquer outro tema, e não aponta um meio sequer pelo qual tais metas serão alcançadas.
O reconhecimento legal de que os praticantes da modalidade são, de fato, atletas, também não apresenta novidade alguma, visto que esse título já havia sido conquistado por meio do costume e da aceitação popular – a inclusão disso no texto legal não torna esse fato mais ou menos válido, a situação fática permanece praticamente a mesma. Algum progresso poderia ter sido observado caso o legislador tivesse produzido uma regulação mais extensa, que englobasse previsões mais específicas, ao invés de outorgar totalmente essa responsabilidade para outras entidades.
A outorga de qualquer legislação específica para essas outras entidades, por sua vez, demonstra ainda mais o teor duvidoso do PL. Como se sabe, E-Sports são uma prática já relativamente antiga e que tem sido regulada dessa maneira independente desde o início. Não seria necessária uma nova lei apenas para reafirmar a validade das federações, ligas e associações já existentes e aceitas internacionalmente. A aceitação desse modelo regulatório descentralizado tem, sim, alguma importância, mas apenas isso não parece suficiente para motivar toda a tramitação de uma lei. Isso porque a própria Constituição Federal de 1988, em seu Art. 217, I, prevê “a autonomia das entidades desportivas dirigentes e das associações, quanto a sua organização e funcionamento”.
É verdade também que a União, os Estados e o Distrito Federal detêm a competência para legislar sobre a prática esportiva no geral, conforme enuncia o Art. 217 da Constituição. Contudo, fica evidente que o PL 383/2017 nada faz para efetivamente fomentar a prática esportiva relativa aos E-Sports, o que representa a maior falha do projeto.
Conclusão
Em resumo, pode-se dizer que, por mais que o intuito do legislador brasileiro possa ter sido o melhor possível ao confeccionar o PL 383/2017, não se pode afirmar que a aprovação do mesmo trará qualquer benefício – ou mesmo mudança – para os praticantes de E-Sports. Talvez a falha não esteja especificamente no intuito de positivar no regulamento jurídico os E-Sports, mas sim no fato de que o nosso projeto de lei sobre o tema não conta nem com previsões relevantes e nem mesmo com apoio popular.
A aprovação ou não do projeto, em resumo, pode ser considerada insignificante, e meramente um gasto desnecessário de recursos estatais. Infelizmente, o objetivo principal do PL, que seria o fomento da prática de esportes digitais, mostra-se inalcançável por meio de uma legislação tão anêmica e alheia à realidade e aos anseios daqueles que serão, de fato, atingidos por ela. Caso o projeto tivesse contado com auditoria de jogadores, bem como com uma consulta pública à população, talvez tivéssemos em mãos uma futura lei muito mais madura e condizente com os interesses da sociedade brasileira no que diz respeito à prática de esportes digitais.
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As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
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Victor Vieira (Ver todos os posts desta autoria)
Victor Vieira é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-graduando em Proteção de Dados Pessoais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). É pesquisador e encarregado de proteção de dados pessoais no Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) e advogado. Membro e certificado pela International Assosciation of Privacy Professionals (IAPP) como Certified Information Privacy Professional – Europe (CIPP/E).