Direito ao devido processo: de onde vem a aposta da regulação de plataformas?
Escrito por
Rafaela Ferreira (Ver todos os posts desta autoria)
19 de junho de 2023
O direito ao devido processo é um princípio constitucional que tem ganhado notoriedade no debate sobre regulação de plataformas digitais, principalmente como um mecanismo para controle e legitimação das decisões sobre o quê e como você verá as informações na internet – ou seja, por meio da chamada moderação de conteúdo online. Na última versão do PL 2630 — conhecido como “PL das Fake News” — há um capítulo dedicado a isso, por exemplo. Para entender a sua relevância e alcance, faz-se necessário um rápido lembrete sobre sua origem e os 8 elementos-chave para que chegássemos até aqui. Neste texto, apresento, em três fases, um breve panorama que lança um olhar para trás em busca da compreensão de onde estamos indo.
A origem do que conhecemos como devido processo
Primeiro, registro que a intenção aqui não é fazer uma incursão historiográfica e/ou sociológica sem respeito às especificidades metodológicas e à densidade de informações necessárias para esse fim, em observação às preocupações externadas por Luciano Oliveira. Neste rápido blogpost, destaco algumas questões-chave que conduzem o panorama original do contexto de surgimento da noção do direito ao devido processo até o ponto específico que vivemos agora no contexto brasileiro (mais tecnicamente, da jurisdição brasileira), mas considerando o fenômeno da globalização como plano de fundo.
Feito esse alinhamento de expectativas, destaco que o direito ao devido processo apresenta um longo caminho até aqui. Segundo Fredie Didier Jr., a noção do direito a um devido processo — ou de um processo justo, capaz de conferir proteção contra a tirania — remonta a movimentos sociojurídicos que foram registrados por escrito já em 1.037 d.C., sendo encontrada no Édito de Corado II (espécie de decreto feudal alemão), em que foram estabelecidos limites ao poder do imperador através de leis.
Didier alerta que a Magna Carta inglesa, apesar de ter sido um importante documento para a história do Direito ocidental, não inaugurou a existência dessa cláusula em 1.215 d.C., tendo sido inspirada pelo citado decreto germânico e outros elementos do acúmulo sociojurídico alemão. O termo “due process of law”, por sua vez, só viria a se consolidar em um texto normativo a partir de 1354 d. C., através do reinado de Eduardo III na Inglaterra.
Corta para o Brasil do século XXI: através do art. 5º, inciso LIV da Constituição de 1988, vigente até o momento de redação deste texto, consagrou-se o direito ao devido processo legal — a partir da tradução literal da expressão inglesa — como condição para que se determine a privação de bens jurídicos, tais como a liberdade, o patrimônio ou até a liberdade de expressão. Nesse sentido, o termo “processo” é entendido de maneira ampla, na condição de atos articulados para a produção de um ato final de caráter obrigatório para as partes afetadas.
Observando esse salto histórico e os 34 anos de vigência da Constituição, o que deve ser considerado para entender como chegamos até aqui, nesta fase em que o direito ao devido processo aparece ao lado de expressões recentes, tais como moderação de conteúdo digital e regulação de plataformas?
A trajetória desse direito em 8 pontos
Considero que existem, em resumo, 8 pontos-chave para entender como chegamos no acúmulo histórico-jurídico do direito ao devido processo no Brasil atual, para os fins deste texto:
- O significado de devido processo mudou ao longo do tempo;
- O direito ao devido processo é um princípio, ou seja, é uma norma que possui um sentido mais aberto às interpretações e, assim, permite inferir outras normas (e direitos) a partir dela.
- No Brasil, ele é concretizado a partir de diversos outros direitos — como o direito fundamental ao contraditório e a ampla defesa, à motivação das decisões e à duração razoável do processo — o que gera um núcleo mínimo de garantias em seu conteúdo. Porém, os limites de seu alcance não são consensuais e estão em constante disputa jurídica e política;
- A tradução de “due process of law” mais adequada para o português brasileiro seria “devido processo jurídico ou do Direito”, já que o processo deve estar de acordo não somente com leis, mas com diferentes tipos de normas jurídicas, inclusive a Constituição e os decretos aplicáveis, por exemplo;
- Apesar de ter se originado como forma de proteção contra o poder de governantes, admite-se que o devido processo deve ser respeitado na relação entre indivíduos, sem a necessidade da presença do Estado, o que é reconhecido por juristas como J.J. Calmon de Passos e Fredie Didier Jr.;
- A possibilidade de incidência do devido processo em quaisquer relações privadas, no Brasil, está apoiada na teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas, reconhecida pela 2ª turma do STF, apesar da existência de críticas minoritárias;
- Considerando as demandas da atual sociedade da informação globalizada, o constitucionalismo digital fornece uma lente que permite explicar como o direito ao devido processo é aplicado fora das relações com o Estado e para além da jurisdição brasileira, chegando a iniciativas extraterritoriais como o “tribunal” de moderação de conteúdo criado pelo Comitê de Supervisão da Meta, o que não priva essa concepção teórica de críticas conceituais e operacionais.
- A construção do significado e do alcance normativo do direito ao devido processo está em constante desenvolvimento e disputa.
Assim, o direito ao devido processo tornou-se uma aposta para a complexa missão de aprimorar os modelos regulatórios para o funcionamento de plataformas digitais e promover o respeito aos direitos humanos, já que “não há um direito independente do processo de sua enunciação, o que eqüivale a dizer-se que o direito pensado e o processo do seu enunciar fazem um”, como afirmou Calmon de Passos.
A aposta da regulação de plataformas
No momento de redação deste texto, a regulação de plataformas está sob os holofotes, conforme já tratamos em outra postagem deste blog. A importância do aprimoramento da regulação de plataformas digitais convive com a complexidade da escolha política de qual seria a melhor forma de disciplinar as suas atividades, o que gera implicações jurídicas nítidas no campo dos direitos digitais, desde o combate às notícias falsas até a proibição da censura.
Nesse cenário, as decisões de moderação de conteúdo — ou seja, as escolhas feitas através de “mecanismos de governança que estruturam a participação em uma comunidade para facilitar a cooperação e prevenir o abuso” — tornam-se parte importante da definição desse escopo regulatório.
Em vista disso, Bowers e Zittrain publicaram um artigo, em janeiro de 2020, em que afirmam que o que se vê atualmente são os primeiros contornos de uma era da governança de conteúdo que transcende o reconhecimento de direitos, buscando estabelecer procedimentos capazes de legitimar as decisões sobre direitos já reconhecidos.
Exemplos concretos dessa aposta já existem. O Digital Services Act (DSA) é uma experiência jurídica relevante neste ponto. Esse regulamento, vinculante na União Europeia desde 2022, prevê regras que buscam deixar nítido os contornos da garantia do direito ao devido processo durante os procedimentos de moderação de conteúdo em plataformas digitais, tais como os mecanismos de notificação e ação sobre conteúdo potencialmente ilegal (art. 16) e as normas sobre fundamentação e publicidade das decisões relativas a restrições que podem ser impostas a certos conteúdos (art. 17). Contudo, os efeitos práticos desse diploma normativo ainda são pouco conhecidos e sua aplicabilidade (e obrigatoriedade) integral está prevista para o início de 2024. Precisamos aguardar as cenas dos próximos capítulos.
Enquanto isso, o PL 2630/2020 avança no Congresso Nacional. Conhecido como PL das Fake News, essa proposta busca instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet e conta,, com uma última versão, apresentada pelo Deputado Federal Orlando Silva em abril de 2023, em que se consideram aspectos que ilustram essa “era do processo”, para utilizar a terminologia apresentada por Bowers e Zittrain: além de definir um vocabulário sobre o que se entende por “conteúdo” e “moderação de conteúdo” (art. 5º, incisos III e V, respectivamente), apresenta-se um capítulo inteiro sobre ferramentas para garantia do devido processo nessa atividade de moderação (capítulo III), tais como o a garantia do direito à revisão (art. 17 e ss.) e o dever de tornar pública as atividades de moderação de conteúdo (art. 19).
Apesar das críticas, o PL 2630/2020 segue sob tramitação e representa uma oportunidade de discussão sobre a implementação efetiva dessas ferramentas. Além disso, este momento de construção coletiva de soluções normativas viabiliza que reflitamos sobre o alcance do direito ao devido processo nas relações privadas geradas pelas demandas reais de uma sociedade da informação, sob o cenário brasileiro.
Por outro lado, há estudos que indicam os malefícios da imposição de regras procedimentais ao funcionamento de plataformas tão díspares, o que poderia causar, por exemplo, o engessamento da operação desses espaços de intermediação ativa, já que revisões individualizadas repressivas podem ignorar questões que são sistêmicas e que, logicamente, devem ser tratadas como tal.
Nesse sentido, buscam-se soluções que atendam às nuances do problema em pauta (inclusive técnicas) e às necessidades específicas do Brasil, de modo que não impliquem em traduções literais inadequadas para o nosso contexto ou em processos meramente teatrais.
O tempo da resposta e o cultivo de soluções à brasileira
Como visto, o direito ao devido processo tem origem antiga e apresenta uma longa trajetória para que chegássemos até aqui. Os contornos desse direito se originam de um contexto de disputa política de limitação a poderes tirânicos e sua flexibilidade e abertura principiológica permitem atualizá-lo em diferentes contextos.
Atualmente, essa aposta normativa se mostra como uma promessa para uma regulação de plataformas mais legítima, em uma tentativa de “disciplinamento de atividades sociais” desses atores importantíssimos na sociedade da informação que vivemos.
Contudo, concretizar essa aposta ainda é um desafio e carece de amadurecimento, sobretudo considerando o cuidado para não importar soluções jurídicas que desconsideram as especificidades brasileiras.
Nesse sentido, o tempo é pré-requisito para respostas conclusivas e mais precisas. No IRIS, seguimos acompanhando o desenrolar desse movimento normativo aquecido e eu te convido a seguir conosco através das nossas redes sociais e, especificamente, através das atividades e produtos desenvolvidos no projeto sobre Devido Processo na Moderação de Conteúdo.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Escrito por
Rafaela Ferreira (Ver todos os posts desta autoria)
Pesquisadora e líder de projetos de Moderação de Conteúdo no IRIS. Mestranda em Direito da Regulação na FGV Rio e graduada em Direito pela UFBA. É advogada e se interessa por temas regulatórios que envolvam regulação de plataformas digitais, inteligência artificial e discussões sobre neurodireitos.