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Desvendando as brechas digitais de gênero e raça

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10 de abril de 2024

Entenda o que significam as brechas digitais de gênero e raça e o porquê de precisarmos denunciar as desigualdades de gênero durante todo o ano, e não somente em março

Desde a década de 80 o mês de março é marcado como o Mês da História da Mulher, sendo o dia 08 de março o grande marco com o Dia Internacional da Mulher. Neste período, as atenções estão voltadas não apenas para a celebração das conquistas e histórias das mulheres, mas também, e sobretudo, para direcionar uma atenção crítica para igualdade e as oportunidades para este grupo social. Mas… a provocação que eu faço com esse texto é sobre a necessidade de jogar luz sobre tais temáticas não somente no mês de março, mas sim durante todo o ano.

É urgente a necessidade de evidenciar o protagonismo e denunciar as violências da cultura cis-sexista e racista que conformam as bases do mundo moderno e, consequentemente, estão enraizadas também na cultura digital. Afinal de contas, conhecimento não existe fora de um contexto social que o concebe. E tudo isso cria uma disparidade digital, onde aqueles que têm acesso e habilidades tecnológicas desfrutam de vantagens significativas em termos de acesso à informação, oportunidades de emprego e participação em atividades sociais e econômicas online, enquanto aqueles que estão excluídos digitalmente enfrentam barreiras profundas para participar plenamente da sociedade digital. Alguns autores nomeiam esse fenômeno de brechas tecnológicas, outros chamam de brechas digitais, alguns até de techno-apartheid. E quando acrescidos os aspectos de desigualdades étnico-raciais e a hegemonia masculina branca na construção, pesquisa e desenvolvimento das tecnologias, tem-se as brechas digitais de gênero e raça

Pesquisadoras ciberfeministas e, também, aquelas que versam com um referencial feminista negro interseccional vão informar que tais brechas não podem ser medidas apenas estatisticamente, pois as hierarquias de gênero e raça operam não somente na construção das tecnologias, mas também na dimensão subjetiva das pessoas. A autora argentina Cecilia Castaño identifica três tipos de divisões ou brechas digitais. A primeira delas se refere ao acesso, a segunda ao uso e a última à produção das tecnologias, e falaremos aqui de cada uma delas.

Brechas no acesso às tecnologias

Mulheres cis e trans podem enfrentar barreiras no acesso a dispositivos digitais, como computadores, smartphones e conexão à Internet, devido a fatores socioeconômicos, culturais ou geográficos. Esse problema é intensificado em algumas comunidades, especialmente aquelas localizadas em áreas rurais, periféricas, ribeirinhas e/ou territórios tradicionais, onde pessoas de grupos étnicos minoritários podem enfrentar desafios adicionais para acessar a tecnologia devido a barreiras socioeconômicas, culturais ou estruturais. 

Mensurável quantitativamente, a brecha no acesso pode ser demonstrada através dos dados obtidos pela pesquisa TIC Domicílios 2023, que evidenciou, por exemplo, que 89% das mulheres e 87% dos homens são usuários de Internet. Mas calma!!! Apesar de neste caso nós estarmos em maior número, o que evidencia a desigualdade é em como se dá esse acesso.

No que se refere ao uso exclusivo da internet pelo celular, entre os homens o número é de 51%, enquanto entre as mulheres a porcentagem é de 64%, e quando acrescido o agrupamento de cor/raça, identificou-se que entre pessoas negras esse número é de 64%, indígenas 83% e brancas 48%. Entre pessoas da classe DE, o percentual chega a 87%, o que evidencia – dentre outras coisas – a maior vulnerabilidade de mulheres cis e trans, pessoas negras e indígenas e pobres à uma grave problemática da democracia brasileira: a desinformação, que atinge com mais intensidade a parcela da população que possui apenas o celular como ferramenta de acesso à informação. Àqueles que utilizam apenas o plano pré-pago estão sujeitos ainda a prática de zero rating (ou tarifa zero), estratégia pela qual as empresas de telefonia oferecem acesso a aplicações como o Whatsapp sem descontar dados da franquia do pacote de Internet contratado pelo usuário, dificultando a circulação e checagem de informações. 

Inclusive, para combater esta prática, o IRIS, junto com o Data Labe e a Coalizão pelos Direitos na Rede lançaram a campanha #LiberaMinhaNet, que propõe o fim do atual sistema de franquia de dados, e a oferta de planos de internet móvel que assegurem uma velocidade mínima para utilização após o consumo dos dados, promovendo a liberdade de acesso sem restrições. Convido você a acessar o site para entender mais!

E no uso das TICs, como a brecha aparece?

O que determinaria verdadeiramente o nível de incorporação na cultura digital, ou de apropriação tecnológica, é ainda mais complexa que a dimensão do acesso, e pode ser identificada ao examinar como as pessoas utilizam as tecnologias. Esta brecha acontece, em grande parte, por não serem ofertadas às mulheres e demais grupos subalternizados as possibilidades de participarem ativamente da construção de uma inteligência coletiva, que só seria possível com a literacia digital, ou seja, a aquisição pelos indivíduos das habilidades técnicas e cognitivas para o uso das TICs

Os estudos ciberfeministas investigam se as relações com os aparatos tecnológicos impactam de maneira subjetiva na escassez de mulheres no desenvolvimento das tecnologias, no ensino superior e nas profissões tecnológicas. Os resultados têm demonstrado os impactos do sexismo desde a infância, quando meninas muitas vezes são direcionadas para brinquedos e atividades que enfatizam habilidades sociais, emocionais e de cuidado, enquanto os meninos são encorajados a explorar campos relacionados à ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM). 

Não à toa, são os homens a maioria dos usuários de internet que adotou medidas de segurança, como senhas fortes e verificação de duas etapas, para proteger os dispositivos e contas online (55% – M / 46% – F) e que mudou configurações de privacidade no dispositivo, conta ou aplicativo para limitar o compartilhamento de dados pessoais como nome, contato ou foto (40% – M / 37% – F), indicando uma maior incorporação masculina à estratégias de segurança digital do que entre o sexo feminino (dados da TIC Domicílios 2023). Isso é resultado de estereótipos de gênero, acesso desigual à educação e oportunidades de treinamento em tecnologia e, considerando que as mulheres podem enfrentar ameaças específicas de segurança e privacidade online, como assédio, stalking e violência de gênero digital, isso pode levar à auto-censura e à limitação da participação no debate público online.

A brecha na produção, desenho e governança da tecnologia digital

A predominância massiva de mulheres nos cursos superiores das áreas de pedagogia, serviço social e enfermagem, é apenas um dos sintomas de como este grupo é empurrado para profissões de “cuidado”, enquanto os homens são a maioria nos cursos de engenharias e sistemas de informação, um contraste que deixa perceptível o quanto os estereótipos de gênero desde a infância podem influenciar nas escolhas educacionais e de carreira mais tarde. Para as mulheres negras pesa ainda a dificuldade do ingresso e permanência no ensino superior. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2022, o percentual de mulheres brancas com ensino superior completo é de 29%, porcentagem muito superior à de mulheres negras (14,7%). 

A  pesquisa #QUEMCODABR também auxiliou na construção do perfil daqueles que trabalham com tecnologia no Brasil. Não surpreendentemente, é de homem, branco, jovem de classe média alta, que começou a trajetória em centros formais de ensino. A sub-representação de mulheres na indústria de tecnologia pode ser explicada por diversos fatores, além dos já mencionados. Muitas empresas de tecnologia têm culturas organizacionais dominadas por homens, o que pode criar ambientes de trabalho hostis ou não inclusivos para mulheres. A falta de modelos femininos em posições de liderança também pode desencorajar as mulheres a buscar carreiras na indústria de tecnologia

Há um viés discriminatório evidente quando mulheres são preteridas em vagas de emprego ou enfrentam dificuldade em avançar em suas carreiras na indústria de tecnologia, além de muitas delas enfrentarem desafios adicionais ao equilibrar suas carreiras na indústria de tecnologia com responsabilidades familiares e outras demandas de vida pessoal. A falta de políticas de licença parental equitativas e de apoio à flexibilidade no local de trabalho são obstáculos significativos.

Tem-se ainda um apagamento intencional do protagonismo feminino no desenvolvimento tecnológico e, de modo concomitante, o epistemicídio, que acarretou no apagamento da contribuição afrodiaspórica, africana e indígena nas mais diversas áreas, incluindo a de ciências e tecnologias. 

Caminhos para o amanhã

Existe um movimento de resgate da memória de mulheres – das mais diversas nacionalidades – que revolucionaram os rumos do desenvolvimento tecnológico graças às mais inteligentes invenções. Desde a inglesa Ada Lovelace, reconhecida mundialmente por ter escrito o primeiro algoritmo para ser processado por uma máquina, até a afro-estadunidense Gladys Mae West, responsável pela invenção do sistema de navegação GPS, elas despontam não somente como protagonistas no desenvolvimento de diversos aparatos tecnológicos, como são, também, as responsáveis pela manutenção e reprodução da vida em harmonia com valores contra-coloniais, as “tecnologias ancestrais de produção de infinitos”, título homônimo do livro da escritora brasileira Cidinha da Silva.

É imprescindível que a gente entenda que a ausência de representatividade é uma questão que afeta não apenas o ecossistema de tecnologia e inovação, mas também os direitos humanos e a liberdade de expressão. A sub-representação de mulheres na indústria de tecnologia deve ser enfrentada com medidas que visem desafiar estereótipos de gênero e raça desde cedo, de modo a promover uma cultura inclusiva nas empresas de tecnologia, combater o viés de gênero e a discriminação racial, fornecer oportunidades de mentoria e redes de apoio para mulheres, em geral, e para mulheres negras, indígenas e transexuais, em específico, e implementar políticas que apoiem um equilíbrio saudável entre trabalho e vida pessoal. 

Para reduzir essas brechas digitais, é necessário adotar abordagens inclusivas e equitativas que reconheçam e abordem as disparidades relacionadas ao gênero e à raça. Isso pode envolver políticas públicas, programas de capacitação, iniciativas educacionais, esforços para promover a diversidade e a inclusão na indústria de tecnologia, e o desenvolvimento de tecnologias sensíveis ao gênero e à diversidade racial. Urge a necessidade de promover a igualdade de acesso, capacitar as mulheres com habilidades digitais, proteger a segurança online de meninas e mulheres e criar políticas e programas que promovam o empoderamento econômico e social na era digital.

Por fim, convido todas as pessoas a conhecerem a 2ª edição da cartilha #PorMaisMulheresNaGovernança, que apresenta mais de 130 mulheres e coletivos de referência que reforçam o compromisso por uma Governança da Internet mais equitativa, diversa e democrática.

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Comunicadora Social e Jornalista pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e mestranda em Comunicação e Culturas Contemporâneas na Facom/UFBA, onde está vinculada ao GIG@, Grupo de Pesquisa em Gênero, Tecnologias Digitais e Cultura. É especialista em Comunicação Estratégica e Gestão de Marcas e membra voluntária do Laboratório de Identidades Digitais e Diversidade (LIDD/UFRJ). Co-criadora da plataforma Conexão Malunga.

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