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Como remunerar o jornalismo na era das gigantes da tecnologia?

19 de abril de 2021

Após muitas controvérsias e a retirada de conteúdos jornalísticos divulgados no Facebook pela própria plataforma na Austrália, o parlamento australiano aprovou em fevereiro o News Media Bargaining Code, lei que exige que conteúdo jornalístico seja pago por empresas de tecnologia que o incluírem em suas plataformas. Apesar dessa discussão se localizar no outro lado do mundo, ela abre os olhos de todos que consomem conteúdo online para reflexões cada vez mais necessárias e urgentes: a forma como o jornalismo sobrevive hoje, na internet, não é a mesma de décadas atrás, assim como o conteúdo online tem valor não somente social, mas também financeiro.

Nesse texto, explicamos melhor como o jornalismo funciona enquanto negócio na internet, as alternativas encontradas para financiá-lo e as implicações dos investimentos feitos pelas big techs (como o Facebook e a Google) em relação às empresas de jornalismo.

O jornalismo enquanto negócio

  • retomada aos conceitos básicos do jornalismo

Mesmo a origem do jornalismo tendo ligação à origem do capitalismo, é consensual a ideia de que por mais que haja uma lógica comercial  a partir de sua origem privada, a atividade jornalística também se apresenta como serviço de interesse público, que, segundo Genro Filho, é a própria prática de uma forma social de conhecimento.  Ainda assim, é importante não deixar de lado o contexto socioeconômico no qual essa forma social de conhecimento se insere.

“o modelo de organização noticiosa que se apresenta de forma dominante na atualidade ainda é aquele que, em termos de estrutura e financiamento, se caracteriza por: propriedade privada, frequentemente com controle de agentes externos ao campo – empresários, investidores e outros –, receitas a partir de financiamento proveniente da venda de espaços publicitários e hierarquia nos processos internos de tomada de decisão.” – Mariana Silva

Considerando essa discussão, cabe trazer para o debate o que pode ser entendido como conteúdo jornalístico ou não. É crescente o estudo comunicacional que avalia a possibilidade de se caracterizar um produto como jornalístico não pelo seu resultado final, mas pelo processo de produção adotado, que caracteriza-se como jornalístico a partir de habilidades específicas, como apuração, checagem, produção de pauta, etc. E essas habilidades são executáveis em qualquer editoria jornalística, e não apenas nos conteúdos que recebem o selo de factual ou de interesse público.  Afinal, o que as empresas têm entendido como conteúdo jornalístico?

Crise do jornalismo? Como remunerar o jornalismo online?

O jornalismo tem em sua essência a característica de ser volátil e adaptável conforme as novas mídias. Mas é interessante que essa necessidade de adaptação, seja do impresso para o rádio, do rádio para a televisão, sempre existiu.

Entretanto, as pessoas começaram a falar em crise do jornalismo a partir do advento da internet. Isso se deve, em grande medida, pelo entendimento do funcionamento econômico do jornalismo, e não exclusivamente de seu ofício. Isso porque o modelo de negócio do jornalismo sempre foi ancorado em “financiamento proveniente da venda de espaços publicitários e hierarquia nos processos internos de tomada de decisão.” Esse último, consiste em pensar o jornalismo como um negócio e que por isso, segue a lógica privada de tomadas de decisões.  – o que se torna dificultado em um contexto onde se escreve para a internet e se desenvolve novas tendências, como o corporativismo e jornalismo independente.  

É interessante perceber também que o modelo corporativista das instituições jornalísticas, algo comum na Europa e que ganha ênfase justamente no período de apogeu da internet, tende a estabelecer “limites para a receita publicitária dentre o total de recursos recebidos e, em alguns, há restrição quanto à entrada de recursos comerciais ou de origem privada (por exemplo, doações vindas de empresas).” Como a contribuição monetária por parte das big techs seria aceita frente esse contexto, é algo que vem sendo discutido e, como apontamos nesse texto, ainda traz mais perguntas do que respostas. 

O que as gigantes da tecnologia consideram como “jornalismo de qualidade”?

Atualmente existem diversas opções de agregadores de notícias. Para aqueles que desejam fazer a própria curadoria, há diversos aplicativos nos quais você mesmo pode “cadastrar” sites e portais de seu próprio interesse, e para outros que desejam uma editoria já realizada por profissionais – ou algoritmos – existem ferramentas específicas, como os “Destaques Jornalísticos” da Google. Lançada no fim de 2020 inicialmente no Brasil e na Alemanha, a previsão de investimento da big tech na ferramenta é de US$ 1 bilhão em seus três primeiros anos de uso ao redor do mundo.

A Google apresenta os Destaques como um programa de licenciamento de conteúdo, e no Brasil contava com mais de 20 empresas de jornalismo na data de seu lançamento. Entre elas estão Band, Estadão, Folha de S.Paulo, Jovem Pan, Revista Piauí, SBT News, UOL e Veja. A Gazeta, Correio Braziliense, Estado de Minas, Folha de Boa Vista, Folha de Pernambuco, Gazeta do Povo, GZH, Jornal Correio (BA), Jornal do Comércio (RS), NSC Total, O Dia, O Tempo, e Portal Correio. De acordo com a empresa, o programa busca “mais contexto e perspectiva jornalística sobre as notícias”. No entanto, ainda existem questões nessa e em outras plataformas de licenciamento de conteúdo que estão em aberto considerando esse objetivo.

No caso da Austrália, onde agora está previsto em lei que as empresas de tecnologia precisam pagar pelo conteúdo jornalístico veiculado em suas plataformas, o que se observa é a falta de critérios transparentes para a seleção das empresas de jornalismo que terão espaço nessas plataformas. Esse problema também pode ser apontado aqui no Brasil, uma vez que, até então, não têm sido divulgados de forma direta e completa quais fatores são considerados para determinar empresas e portais de notícias como produtoras de “jornalismo responsável e de qualidade”.

E o que o jornalismo considera como notícia? 

Vale lembrar que o próprio jornalismo possui parâmetros para a produção de notícias e também critérios para noticiá-las. Como já mencionado, caracterizar um produto como jornalístico leva em consideração muito mais seu processo de produção do que o seu resultado final. Ainda assim, uma “roupagem” característica ainda é mais facilmente aceita como definição do que é jornalismo – e essa roupagem, damos o nome de “notícia”.

 Uma notícia é sustentada por três principais fatores: sua periodicidade, factualidade e novidade. A partir desse “tripé”, também existe uma rede de critérios que influenciam na seleção, tratamento e propagação dessa notícia, como a coletividade (número de pessoas afetadas pelo fato); serviço público, proximidade geográfica, entre outros –  critérios comumente chamados de “macro valores-notícia”. Ainda existem valores-notícia mais específicos que se adequam conforme a especificidade editorial, como polêmica, cultura, proeminência, entretenimento, etc. Ao que parece, a lei Australiana e os acordos firmados pelas big techs se atentam apenas aos macro valores-notícia, reduzindo a complexidade da questão. 

As interrogações desses acordos

A falta de transparência dos critérios adotados por plataformas e agregadores de notícia que têm parcerias – remuneradas ou não – com portais se apresenta como um problema tanto de confiança dos usuários sobre as linhas editoriais das próprias plataformas e agregadores quanto de possibilidade da repetição de vieses ou temas noticiosos de forma a se privilegiar uma perspectiva a respeito de determinado tema – e assim, restringir o acesso à informação de forma amplificada. Além disso, em relação aos pequenos produtores de jornalismo, também fica pouco claro de que forma eles entrariam nessas negociações, ou ainda, se essas negociações se empenhariam como uma nova maneira de reforçar hierarquias e discrepância entre a  grande mídia e o jornalismo independente. Afinal, os grandes portais continuariam sendo alvo monetário, e a mudança se apresentaria de onde vem parte dos investimentos – das bigtechs

Conforme aponta Marc Cheong, pesquisador de ética digital na Universidade de Melbourne, as big techs “são as guardiãs das notícias para consumo público. Dessa forma, pensar no posicionamento e nas formas de investimento das gigantes da tecnologia em editorias de jornalismo e na curadoria de quais portais ou empresas têm espaço em suas plataformas – usadas por milhões de pessoas ao redor do mundo – é também pensar sobre acesso à informação. Essa discussão também foi tema de um debate recente promovido pelo Intervozes, InternetLab e Nurep.

Transparência para confiança, liberdade de expressão e de imprensa

Entre tantas pontas soltas nesse novelo de lã, uma coisa é certa: a necessidade de se valorizar a produção jornalística responsável e criteriosa com um valor social e também financeiro é urgente. O fato da produção de conteúdo ter se tornado tão mais acessível e difundida por meio da internet não é sinônimo de que a produção profissionalizada de conteúdos jornalísticos deva ser tomada como garantida sem o devido reconhecimento e remuneração dos profissionais por trás desses conteúdos.

No cenário atual, os acordos entre empresas de tecnologia e conglomerados de imprensa tem o potencial de ampliar as alternativas para o financiamento do jornalismo online, no entanto, sem a devida transparência esses acordos também apresentam riscos no que diz respeito ao acesso à informação, liberdade de imprensa e diversidade de fontes jornalísticas sobre determinado assunto.

É importante destacar que pelo fato de as plataformas muitas vezes também serem um espaço usado para a propagação de desinformação – você pode ler mais sobre nesse post – o incentivo financeiro à informação de qualidade nesse mesmo ambiente deve ser visto como um reforço à essencialidade do jornalismo na era da pós-verdade, mesmo que com todas as ressalvas já apresentadas.  

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração de capa: Storyset

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