Clubhouse e LGPD: o que a rede social mais badalada do momento sabe sobre você
Escrito por
Juliana Roman (Ver todos os posts desta autoria)
17 de março de 2021
É isso mesmo, ainda que você não tenha uma conta ativa na plataforma Clubhouse – ou que você nunca tenha, ao menos, se cadastrado na nova rede social ou descarregado o aplicativo, a empresa norte-americana Alpha Exploration Co. pode possuir informações suas. Imagino que você deva estar se questionando como isso pode acontecer. Então siga a leitura deste artigo, onde eu vou explicar um pouco sobre o que é o Clubhouse, a sua política de privacidade e os seus termos de serviço. Além disso, vou fazer um paralelo entre os serviços oferecidos pela plataforma e a sua (in)compatibilidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
“Nunca vi, nem comi, eu só ouço falar”
Você gostaria de ter a oportunidade de conversar ou ouvir a opinião de pessoas que você admira, mas nunca teve a oportunidade de encontrar pessoalmente? Você gostaria de partilhar o mesmo ambiente (virtual) que celebridades? A ideia de fazer parte de um espaço onde estudiosos e profissionais renomados discutem sobre assuntos variados agrada a você? Estas são algumas das facilidades que oferece o Clubhouse.
Lançada em abril de 2020, em plena pandemia de covid-19, a plataforma pertence à Alpha Exploration Co. e foi desenvolvida por Rohan Seth, ex-funcionário do Google, e por Paul Davison, empresário do Vale do Silício. Diferente da maioria das redes sociais, o Clubhouse não visa a exposição da imagem e a construção do selfie a partir de símbolos visuais. Isso é, ali não se postam fotos, nem vídeos; o aplicativo é composto por salas de bate-papo e mensagens de áudio em tempo real.
A rede social do momento é baseada em conversas de áudio e permite ouvir conteúdo trocado entre pessoas, sejam anônimos ou famosos. Além disso, qualquer usuário pode participar do bate-papo. Sendo assim, o que vale é o conteúdo que você tem a compartilhar e quem se interessa em escutá-lo. No aplicativo, os usuários podem criar ou acessar salas, com até cinco mil participantes, as quais são divididas por diferentes temas (desde tecnologia e marketing até política e empreendedorismo). Além das conversas em grupo, é possível criar chats privados. Se algum usuário da plataforma se sentir invadido ou ofendido por outro usuário, além de denunciar, poderá bloqueá-lo. Aqueles usuários bloqueados por você não poderão ver nem interagir com suas salas de conversa.
Várias personalidades têm sido vistas na plataforma, como Elon Musk, Mark Zuckerberg, Luciano Huck, Boninho e Oprah Winfrey.
Por enquanto, o aplicativo está disponível somente para usuários de iOS (sistema operacional fornecido pela empresa Apple Inc.). Para ingressar como usuário, é necessário ser convidado por alguém que já faça parte da rede social (o que torna cada convite muito valorizado). Ao ingressar, cada usuário recebe dois convites apenas. Quando o usuário convida alguém para entrar no aplicativo, o seu nome passa a constar no perfil dessa pessoa, ou seja, o novo usuário fica marcado como tendo sido “nominated by” (indicado por).
O Clubhouse tem alcançado grandes números de downloads pelo mundo. O aplicativo de chats de áudio é, no momento, o campeão de downloads nos Estados Unidos da América (EUA) com 2.8 milhões de downloads, sendo 10 milhões acumulados globalmente. No Brasil, o número já ultrapassou 308 mil.
A plataforma é considerada uma startup unicórnio, assim como Airbnb e Uber. Em 2020, o Clubhouse foi avaliado em 100 milhões de dólares; já nos primeiros meses de 2021 a avaliação atingiu cerca de 1 bilhão de dólares. Entre 30 de janeiro e 6 de fevereiro de 2021, as buscas pelo termo Clubhouse cresceram 525% na internet. A excitação das pessoas para ingressar na rede social é tanto que algumas estão comprando convites para ter acesso à plataforma!
As regras básicas para o usar o Clubhouse são (i) ter pelo menos 18 anos, (ii) não utilizar foto ou nome falsos, (iii) não reproduzir os áudios ouvidos na plataforma sem permissão, (iv) não fazer spam, entre outras. Além disso, o uso comercial do aplicativo não é permitido.
De acordo com a política de privacidade, que faz parte dos termos de serviço da plataforma, o conteúdo compartilhado por meio do Clubhouse é efêmero. As conversas não podem ser gravadas e também não ficam armazenadas na plataforma.
Termos de Serviço, política de privacidade e shadow profile
Em entrevista à Vanity Fair, a empresa responsável afirmou que condena todas as formas de racismo, discurso de ódio e abuso, conforme observado em nas Diretrizes da comunidade e termos de serviço, além disso, afirmou ter procedimentos de confiança e segurança em vigor para investigar e resolver qualquer violação dessas regras.
A Alpha Exploration Co. afirma que as mensagens de áudio de seus usuários são gravadas e criptografadas temporariamente, apenas durante a duração da sala e exclusivamente para o caso de ocorrer algum incidente de confiança e segurança (Trust and Safety violation). A política de privacidade do aplicativo informa que caso a sala encerre sem nenhuma denúncia as conversas, temporariamente gravadas, são imediatamente excluídas. No entanto, se existir algum incidente o Clubhouse mantém o áudio sob o seu armazenamento até que “a investigação seja finalizada”. Nesses casos, o áudio será acessado para investigação, mas não fica disponível para outros usuários ouvirem.
O primeiro ponto obscuro quanto à proteção de dados pessoais está no fato de que a política de privacidade da rede social só está disponível para leitura depois que o usuário passar todas as fases do cadastro. Outro ponto controverso está diante da correção e modificação de informações pessoais do usuário que estejam armazenadas na plataforma. Para conseguir alterar, corrigir ou deletar qualquer dado, deve-se enviar um e-mail para support@alphaexplorationco.com. Caso o usuário opte por não fazer mais parte da rede social, também deverá entrar em contato com a empresa através do mesmo e-mail, sendo impossível excluir a conta imediatamente.
Ainda de acordo com a política de privacidade, cada novo usuário que se cadastre no Clubhouse será solicitado para conceder acesso aos contatos telefônicos armazenados no seu celular. O usuário poderá aceitar ou não, sem que haja prejuízos na sua interação com outros usuários da plataforma. No entanto, fica subentendido que a partilha da agenda de contatos torna a experiência mais dinâmica e produtiva, tendo em vista que a rede social poderá avisar (i) se algum amigo seu deseja entrar na plataforma; (ii) criou perfil na plataforma ou, ainda, (iii) indicar o seu perfil para potenciais seguidores.
A partir de usuários que compartilham sua agenda telefônica, é possível que o Clubhouse armazene informações de pessoas que não estão na plataforma. Isso é, mesmo que você não tenha uma conta na rede social, caso algum amigo seu compartilhe a agenda de contatos com a plataforma, a empresa terá armazenado determinados dados pessoais sobre você.
Surge a pergunta: pode uma empresa coletar e tratar dados pessoais de quem nunca interagiu com ela?
Esta prática comercial é conhecida como “shadow profile”. Acontece toda vez que uma empresa, através de uma atividade de seu usuário ou cliente (como postar uma foto, um vídeo ou compartilhar a agenda de contatos), passa a tratar dados de outras pessoas que não tem conta ou qualquer relação com a mesma. Importante ressaltar que essa prática não é exclusiva do Clubhouse, outros aplicativos, como WhatsApp e Facebook, também se utilizam dela. No entanto, o crescimento exponencial da plataforma, em um curto período de tempo, chamou atenção para as suas políticas de privacidade.
Como fica a proteção dos dados pessoais no Clubhouse?
Em tempos de amadurecimento da cultura de privacidade e proteção de dados, diante de tantos episódios de vazamento de informações pessoais, é inevitável questionar como o Clubhouse lida com os dados e a privacidade dos seus usuários. Isso é, o que acontece depois que a sala de bate-papo encerra? Onde ficam armazenados ou como são excluídos os áudios dos usuários? De que forma e para que propósitos os dados dos usuários são tratados?
De acordo com o Tek Deeps, o Clubhouse está de acordo com a California Consumer Privacy Act (CCPA), lei de proteção de dados da Califórnia. No entanto, a plataforma não está em conformidade com o General Data Protection Regulation (GPDR), regulamento europeu sobre a proteção de dados pessoais. Inclusive, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados de Hamburgo, na Alemanha, iniciou uma investigação sobre a modalidade de compartilhamento de agendas de contatos da empresa.
No Brasil, a LGPD, fortemente inspirada no regulamento europeu, está em vigor desde 18 de setembro de 2020. A lei impacta diretamente na captação, tratamento e processamento de dados pessoais. Sendo assim, é necessário questionar em que medida o Clubhouse está de acordo com a legislação brasileira.
De acordo com a LGPD, a coleta de dados sempre deverá ser informada ao usuário, assim como as razões pelas quais será feita e de que forma a informação será utilizada. Na mesma direção, a lei destaca que o acesso aos dados poderá ser revogado a qualquer momento, pois a vontade do titular dos dados deve ser respeitada. Quanto a isso, importa ressaltar que o Clubhouse não fornece informações de como os dados dos usuários da plataforma são tratados e também não permite a saída imediata dos usuários da plataforma.
Apesar de prestar seus serviços no Brasil, para indivíduos e dados localizados no território nacional, os termos de serviço e a política de privacidade não estão disponíveis em português. Além disso, não há menção sobre o encarregado e a forma como os titulares de dados poderão exigir seus direitos, conforme previsto na LGPD.
Outro objeto de discussão é a menção, nos termos de serviço, em relação à proibição da utilização do aplicativo por menores de 18 anos e, em sua política de privacidade, em relação à solicitação de que os usuários denunciem caso saibam de menores de idade que tenham fornecido dados pessoais no aplicativo. Dessa forma, a plataforma se isenta da responsabilidade de fiscalizar e terceiriza ao usuário a garantia de cumprimento do artigo 14 da LGPD, o qual limita o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes.
Seja moda passageira ou não, ter atenção é fundamental
Ainda é muito cedo para presumir se o Clubhouse é uma moda ou se veio para ficar. No entanto, não devemos esperar a resposta para estar atentos à proteção dos nossos dados pessoais e privacidade. Por enquanto, a plataforma não tem um concorrente com a mesma proposta, que é a de conversas por áudio em tempo real, então pode não sentir prejuízos imediatos ao não ajustar suas políticas.
Os pontos abordados neste texto não inviabilizam a utilização do Clubhouse nem o tornam mais inseguro do que outras redes sociais. Na imensa maioria de termos de serviço e políticas de privacidade de aplicativos, há pontos obscuros em relação à privacidade e proteção de dados.
As políticas de privacidade do Clubhouse estão de acordo com a CCPA, no entanto estão em desacordo com o GDPR e a LGPD. De toda forma, o aplicativo ainda está em tempo de rever sua atuação e adaptá-la à legislação e necessidades dos usuários europeus e brasileiros.
Enquanto isso não acontece, são recomendáveis os cuidados essenciais para a utilização de redes sociais, ou seja, a leitura atenta dos termos de serviço e da política de privacidade antes de utilizar a plataforma. Importa destacar que, no caso do Clubhouse, é preocupante que não haja documentos disponíveis em língua portuguesa. Isso pode causar prejuízo a diversos brasileiros que não detém conhecimentos em inglês e desejam aderir à rede social.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Escrito por
Juliana Roman (Ver todos os posts desta autoria)
Líder de pesquisa em proteção de dados pessoais e pesquisadora no Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS). Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS 2022), vinculado ao Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA). Realizou pesquisa de campo em Amsterdam, Holanda, durante o Mestrado para fundamentar estudo comparado realizado na dissertação. Especialização em Direito do Consumidor pelo Centro de Direito do Consumo (CDC) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (UC 2021). Pós-graduação (lato sensu) em Direito Digital na Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP 2021). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS 2019). Colaboradora no projeto de pesquisa “Proteção de Dados Pessoais nas Américas”, idealizado em parceria pelo Grupo de Pesquisa CNPq “Observatórios da Lei Geral de Proteção de Dados e do Marco Civil da Internet”, vinculado a Universidade de São Paulo (USP), e pelo Grupo de Pesquisa CNPq “Mercosul, Direito do Consumidor e Globalização”, vinculado a UFRGS. Realizou período de mobilidade internacional na Universidad Internacional de Cataluña, Barcelona, Espanha (UIC 2017). Durante a graduação, realizou período de estudo de língua estrangeira em Vancouver, Canadá. Foi bolsista de iniciação científica do Programa de Bolsa Pesquisa – BPA (PUCRS 2016-2018). Prestou serviços de assessoria jurídica voluntária no Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU UFRGS) – Direito do Consumidor (G7) – durante os anos de 2019 e 2022. Atua e pesquisa nas áreas de proteção de dados pessoais e privacidade, Direito da Informática, criptografia, Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) e Direito do Consumidor.