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Ciência Básica e Inovação Tecnológica: o modelo linear e seus limites

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9 de dezembro de 2019

Embora não tenhamos consciência disso na maior parte do tempo, nosso senso comum sobre ciência é permeado por certas mitos a respeito de como a pesquisa se dá e de como o conhecimento científico interage com a tecnologia. Uma dessas ideias é de que ciência de base e ciência aplicada são pesquisas de naturezas essencialmente distintas, outra afirma que a tecnologia seria resultado da mera aplicação do conhecimento científico. Mas você já se perguntou de onde essas ideias vieram e como elas passaram a ter tanta influência em nossos imaginários coletivos? E será que as relações entre ciência e inovação são realmente tão simples?

No post de hoje, apresentamos a história deste modelo das relações entre ciência e inovação, bem como as críticas a que ele vem sendo submetido nas últimas décadas.

Ciência, a fronteira sem fim: Vannevar Bush e o modelo linear

No final do ano de 1944, meses antes do fim da Segunda Guerra Mundial, o presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, ordenou a produção de relatório apresentando uma perspectiva para a política científica do país em tempos de paz. O responsável pelo documento, um engenheiro chamado Vannevar Bush, era alguém especialmente bem situado para a tarefa: ele chefiara o Escritório de Desenvolvimento e Pesquisa Científica do governo federal durante a guerra, tendo desempenhado um papel importante no desenvolvimento de inovações como a bomba atômica.

Com o título Science, the Endless Frontier (Ciência, a fronteira sem fim), o texto examinava as relações entre pesquisa básica – um termo cunhado por Bush -, ciência aplicada, inovação tecnológica e desenvolvimento. A visão de Bush se tornaria profundamente influente no período pós-guerra, quando o impacto cultural da explosão atômica e o protagonismo dos EUA na pesquisa científica favoreceram a circulação e legitimação de suas ideias. Sua teorização influenciou imensamente os discursos midiáticos e institucionais de diversos países, se tornando parte do imaginário social sobre a ciência.

O relatório trazia duas teses principais, ambas com implicações decisivas para o debate sobre qual política científica e tecnológica deveria ser adotada pelos países:

A primeira delas consiste na máxima de que “a pesquisa básica é realizada sem se pensar em fins práticos”. Segundo essa tese, haveria uma oposição essencial entre os fins da ciência básica e os da ciência aplicada. Enquanto a pesquisa básica se destina a ampliar a compreensão dos fenômenos de um certo campo sem se preocupar com as aplicações do saber gerado, a ciência aplicada se volta a solucionar algum problema ou demanda concreta de indivíduos ou coletivos. Para Bush, aproximar-se de uma implica em afastar-se da outra, de modo que um empreendimento científico jamais poderia aspirar a ser ambos, pois “a pesquisa aplicada invariavelmente expulsa a pesquisa pura”.

 

primeira etapa

representação da primeira tese

 

A segunda tese, conhecida como modelo linear, afirma que “a pesquisa básica é precursora do progresso tecnológico”. Nesse modelo, a fonte principal da inovação é a ciência básica, pois ao mapear o funcionamento da realidade, ela amplia o escopo do que é tecnicamente possível. A seguir, a ciência aplicada realizaria tais possibilidades visando alguma finalidade prática, gerando inovações. Por fim, a sociedade implementaria sistematicamente tais soluções para aumentar sua eficiência produtiva. Assim, cada estágio seria sucessivo e condicionado pelo anterior.

 

representação do modelo linear

representação do modelo linear

 

A pesquisa científica na prática

A despeito do imenso sucesso de que as teses de Bush gozaram durante a guerra fria, suas premissas se tornaram alvo de diversas críticas no fim do século XX. Historiadores da ciência e economistas da inovação se tornaram céticos sobre a eficácia dessas ideias em representar de fato a realidade empírica da pesquisa científica, de suas relações com o progresso tecnológico e de seus efeitos sobre o desenvolvimento. Examinemos melhor algumas dessas objeções.

Na obra “O Quadrante de Pasteur”, o cientista político Donald Stokes considera diversos estudos de caso históricos que demonstram como avanços na história da ciência decorreram de pesquisas em que não é possível distinguir nitidamente entre fins teóricos e práticos ao longo da pesquisa. O mais conhecido deles é o de Louis Pasteur, biólogo conhecido por trabalhos que fundamentaram o desenvolvimento posterior da técnica de pasteurização. Seus estudos sobre a fermentação alcoólica do suco de beterraba almejavam tanto ampliar a produtividade dos fabricantes dessa bebida quanto compreender o impacto da presença ou ausência de ar sobre certas categorias de microorganismos. Igualmente, seus achados contribuíram significativamente tanto para a indústria de suco de beterraba quanto para a consolidação da microbiologia teórica no século XIX.

Stokes aponta diversos outros exemplos de contextos de pesquisa cujos fins não seriam facilmente classificáveis em uma ou outra categoria, pois preocupações epistemológicas se misturavam a considerações de uso e interesses práticos. Os estudos do físico Lord Kelvin buscavam a um só tempo avançar na compreensão das leis da termodinâmica e favorecer o domínio industrial do Império Britânico. As pesquisas dos químicos alemães do século XIX almejavam o entendimento da estrutura e das propriedades fundamentais dos compostos orgânicos tanto quanto o favorecimento da indústria nacional de anilinas e, posteriormente, do setor farmacológico. O surgimento das geociências foi parcialmente inspirado por preocupações com possíveis catástrofes naturais, e sua agenda de pesquisa contemporânea se relaciona intimamente aos efeitos socioambientais das mudanças climáticas causadas pela ação humana.

Nas ciências humanas também é frequente que grandes contribuições teóricas sejam informadas por interesses práticos. Stokes cita o caso do keynesianismo, que almejava tanto reduzir desigualdades quanto explicar dinâmicas econômicas fundamentais. Ele também menciona o economista caribenho Arthur Lewis, primeira pessoa negra a vencer o Nobel de Economia, cuja principal contribuição científica foi desenvolvida, em parte, a fim de favorecer o desenvolvimento dos países periféricos na economia global. Podemos pensar em outros exemplos: os impactos das pesquisas de Michel Foucault sobre a história da loucura para as lutas antimanicomiais, as implicações das reflexões de Simone de Beauvoir para os direitos das mulheres, as contribuições teóricas e os efeitos práticos da obra de Karl Marx para a análise das relações trabalhistas. 

A inovação tecnológica é ciência aplicada?

Outro aspecto bastante questionado na abordagem de Bush é a sua segunda tese, o modelo linear em que a ciência de base figura como fonte principal do avanço tecnológico. O trabalho do historiador da ciência e da tecnologia Robert P. Muthaulf é citado com frequência como contraponto a essa ideia. Em seu clássico artigo The Scientist and the “Improver” of Technology’ (O cientista e o “melhorador” de tecnologia), ele demonstra que durante a maior parte da história, a inovação tecnológica não proveio de cientistas, mas de “melhoradores” de tecnologia, indivíduos que pouco ou nada sabiam sobre ciência. Com maior frequência, é precisamente a transferência de saber no sentido oposto que se observa, como relata Stokes ao comentar a obra:

‘Houve, na verdade, um notável fluxo inverso, da tecnologia para a ciência, desde a época de Bacon até a Segunda Revolução Industrial, com os cientistas modelando a tecnologia bem-sucedida, mas contribuindo muito pouco para melhorá-la. Multhauf observa que os físicos do século XVIII estavam “com mais frequência tentando explicar o funcionamento de alguma máquina já existente do que sugerindo melhoramentos para ela”. Essa influência em sentido oposto é considerada, por Thomas S. Kuhn, a mais antiga forma de interação entre a ciência e a tecnologia. Kuhn observa nesse contexto que Johannes Kepler ajudou a criar o cálculo variacional estudando as dimensões de garrafas de vinho, sem contudo ser capaz de ensinar a seus fabricantes como melhorar o seu desenho, já ótimo e que Sadi Carnot deu um importante passo em direção à termodinâmica por meio do estudo das máquinas a vapor, mas descobriu que a prática da engenharia já havia antecipado as prescrições da teoria por ele desenvolvida.’

Embora a profissionalização da engenharia durante a Segunda Revolução Industrial tenha instituído um papel evidentemente maior da ciência no desenvolvimento tecnológico, esse papel não corresponde ao modo como foi teorizado no modelo linear. O economista Chris Freeman, coordenador de um dos principais estudos sistemáticos contemporâneos sobre o tema  – o qual avaliou 58 tentativas de inovação em produtos químicos e instrumentos científicos no século XX – , considera que “[…] continua existindo, nos modernos ramos industriais de base científica, uma forte interação recíproca entre todas essas atividades (Soete & Arundel, 1993) e, particularmente, uma poderosa influência da tecnologia nas ciências”.

Em seu influente artigo “Quão exógena é a ciência?”, o economista da inovação Nathan Rosenberg também critica a concepção de Bush da ciência como exógena à tecnologia, analisando os diferentes modos como o desenvolvimento tecnológico influencia o científico. Em primeiro lugar, os elevados custos operacionais da ciência no século XX comumente condicionam a continuidade de uma agenda de pesquisa ao sucesso comercial prévio de alguma tecnologia associada a ela, sendo esta inovação muitas vezes apenas parcialmente explicada pela ciência que amparou sua fabricação. Além disso, é somente mediante um longo tempo de uso que certos problemas e aspectos de um material (fratura, degradação, contaminação, corrosão, etc.) se tornam exploráveis. Ademais, conforme o material é exposto a novos ambientes, comportamentos não observados e problemas teóricos correlatos de teor inédito surgem. 

Conclusão

Conforme exposto previamente, o sucesso de que o modelo linear desfrutou durante o período da guerra fria esteve relacionado à centralidade da ciência estadunidense nesse contexto, bem como ao impacto cultural da explosão das bombas atômicas em reforçar a autoridade epistemológica do país em matéria de política científica. A força cultural dessas premissas não implica, porém, que elas sejam consistentes com a realidade empírica, apenas que se impuseram com sucesso como ideologia dominante em nosso imaginário científico. Reavaliações mais recentes das teses de Bush tem consistentemente demonstrado seus equívocos em caracterizar tanto a realidade da pesquisa científica em si mesma quanto a das relações entre ciência básica e inovação tecnológica

Isso não implica no abandono das noções de ciência básica ou ciência aplicada, mas no reconhecimento de que esses conceitos são exatamente isso: conceitos, instrumentos teóricos que nos ajudam a analisar e intervir sobre a realidade. Como tais, eles podem ser questionados, reformulados e aprimorados. Similarmente, não se trata de desconsiderar o papel do conhecimento científico no processo inovativo, mas de compreender a complexidade objetiva das relações entre eles para além do reducionismo que o modelo linear estabelece entre ciência e tecnologia. Desse modo, podemos produzir análises mais precisas e embasar intervenções mais eficazes na realidade.

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As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
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É diretor do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Mestrando em Divulgação Científica e Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bacharel em Antropologia, com habilitação em Antropologia Social, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do núcleo de coordenação da Rede de Pesquisa em Governança da Internet e alumni da Escola de Governança da Internet no Brasil (EGI). Seus interesses temáticos são antropologia do Estado, privacidade e proteção de dados pessoais, sociologia da ciência e da tecnologia, governança de plataformas e políticas de criptografia e cibersegurança.

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