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Conectividade Significativa: Contribuições do IRIS no evento da Anatel e do Banco Interamericano de Desenvolvimento

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2 de maio de 2023

Há 5 anos, quando eu comecei a estudar de forma aprofundada o tema da inclusão digital, já existiam comentários satíricos de que essa pauta era “a prima pobre” dos direitos digitais. Em época de inteligência artificial, big data, moderação de conteúdo etc, inclusão digital não tinha nem apelo midiático nem popular (ainda que fosse um problema profundo no Brasil). Vários fatores somados mudaram essa conjuntura e nós tivemos praticamente um rebranding da tão abatida “inclusão digital”. 

Sob o termo “conectividade significativa”, a agenda entrou em espaços de poder, como na Organização das Nações Unidas, e em 2023, o Brasil passou a colocar essa pauta também em posição de destaque. Em abril de 2023, a Anatel e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) realizaram um seminário de dois dias em Brasília para discutir o tema. Eu, como representante do IRIS e da Coalizão Direitos na Rede, palestrei no primeiro painel do evento e esse texto é uma transcrição da minha apresentação.

Rebranding geralmente não dá muito certo (vide recentes casos de certas Big Techs), mas nesse caso, precisa dar, porque não é admissível que a desigualdade digital continue sendo ignorada em um país que há menos de 10 anos atrás era referência internacional em políticas públicas e regulação pró direitos humanos no contexto digital.

Conectividade significativa como uma questão de equidade – A insuficiência do Smartphone

“Direitos Humanos não são Direitos Mínimos”. Essa é uma frase forte porque ao mesmo tempo que ela parece óbvia ela também gera um incômodo. Uma das razões do incômodo, e da gente precisar destacar a frase, é que a forma com que tratamos os direitos humanos vem de um arcabouço teórico que bebe de John Rawls com a ideia de “mínimo existencial” e Pontes de Miranda com “mínimo vital”. Entretanto, acompanhado da ideia de justiça e de mínimo existencial está a ideia de equidade, a qual garante que a ideia de mínimo seja aquilo que é necessário para que o ser humano tenha as condições que seus pares possuem para orientar sua própria vida da forma que lhe convém. Assim, direitos humanos não são direitos mínimos, e sim o conjunto de direitos que determinada sociedade considera essencial para vida coletiva e individual. 

Me parece que o conceito atual de conectividade significativa se apoia nessa ideia lacunosa de direito humano como direito mínimo quando estabelece que o Smartphone é um equipamento razoável para o uso da internet. Será que a sociedade brasileira considera que um smartphone é suficiente para acesso à internet? A resposta é não, uma vez que a pesquisa TIC Domicílios 2021 aponta que as classes A e B consideram que o computador é sim um item valioso e necessário, enquanto que as classes CDE têm muito menos presença de domicílios com computadores. Se escolhermos seguir nivelando direitos por patamares tão baixos a desigualdade digital vai continuar existindo de forma assombrosa porque nós mesmos estaremos falando que certos grupos de pessoas não precisam de certos equipamentos. 

Comentário preliminar importante: antes de ler o próximo parágrafo tente visualizar o público desse evento: servidores públicos engravatados da Anatel, lobistas e advogados de empresas de telecomunicação e mais engravatados do governo. Exatamente, um público extremamente elitista.

Se retomarmos a ideia de que direitos humanos são aqueles que determinada sociedade considera essencial, eu pergunto: vocês consideram que computador é um equipamento essencial? Vocês viveriam a vida que vocês possuem hoje, em termos de trabalho, entretenimento, relacionamentos, sem um computador?

Dito isso, eu gostaria de fazer uma ressalva muito importante porque quando eu estou falando em igualdade material e em estabelecermos o patamar da equidade não estou dizendo de maneira alguma que nós tenhamos que decidir quais são os modos de vida, ou de forma menos abstrata, os usos da internet que cada pessoa deve fazer. Muitas vezes, universalizar direitos pode ser uma forma de violência na medida que coloca o ser humano em uma categoria única. Então precisamos incluir outro elemento neste debate: autonomia do usuário. 

Conectividade significativa como uma questão de autonomia – A importância de superação do modelo de franquia móvel de acesso à internet.

Um dos maiores acertos do conceito de conectividade significativa que foi construído é a posição central da necessidade de acesso ilimitado à banda. Pesquisa do IDEC com o Instituto Locomotiva apresenta dados concretos sobre a navegação na rede por parte das classes com menos recursos econômicos do país e tem como resultado o seguinte dado: em média, pessoas dessas classes ficam sem acesso à internet móvel 7 dias durante o mês. Isso, somado a outros dados da pesquisa é uma prova que o modelo de acesso à internet baseado em franquia restringe a liberdade da população das classes CDE, as quais ficam restritas às aplicações do pacote de zero rating.

Em 2022 o IRIS entrevistou diversos líderes comunitários de quilombos, assentamentos, ocupações e tantos outros grupos vulnerabilizados. No relatório “Conectividade significativa entre comunidades vulnerabilizadas no Brasil” trazemos os resultados sistematizados sobre como essas pessoas usam a internet e quais são os desafios encontrados. Para dialogar com os dados chocantes da pesquisa do IDEC, eu gostaria de trazer algumas frases que escutamos ao longo das entrevistas 

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A Anatel como protagonista na efetivação da conectividade significativa no Brasil

Em um contexto de intensa transformação digital, as instituições têm se questionado qual o seu novo papel e a Anatel também tem feito isso. O Brasil tem muitas dificuldades para seguir com políticas públicas ao longo das mudanças de mandatos e, para que realmente avancemos em termos de conectividade significativa, nós precisamos de ampliação da fiscalização das políticas públicas e expansão da articulação com outras instituições governamentais de forma que tenhamos perenidade das políticas. A Anatel tem diversas condições que a colocam em posição de protagonismo na pauta, seja por seu corpo técnico bem qualificado, pelo trânsito interministerial e com outros atores estratégicos e também pelo mandato legal de universalização do acesso à internet. 

O IRIS e a Coalizão Direitos na Rede estão prontos a sermos parceiros do governo para o avanço na pauta e esperamos que essa nova fase de direitos humanos em contexto digital venha acompanhada de maior efetividade e concretude das políticas públicas.

Eu tinha apenas 15 minutos para abordar tantos assuntos e muita coisa ficou de fora (apropriação tecnológica, indicadores de acesso, conceito de usuário de internet etc), mas se você tem interesse pela pauta, confira o livro “Inclusão Digital como Política Pública: Brasil e América do Sul em perspectiva”onde analisando todas as políticas federais que pretendiam endereçar a questão. 

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Diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Representante do IRIS no Grupo de Trabalho sobre Acesso à Internet e na Força-Tarefa sobre eleições na Coalizão Direito nas Redes (CDR). Membro suplente no Comitê de Defesa dos Usuários dos Serviços de Telecomunicações (CDUST) da ANATEL. Co-autora dos livros “Inclusão digital como política pública: Brasil e América do Sul em perspectiva” (IRIS – 2020) e “Transparência na moderação de conteúdo: Tendências regulatórias nacionais” (IRIS – 2021).

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