Blockchain e um futuro descentralizado
Escrito por
Pedro Vilela Resende Gonçalves (Ver todos os posts desta autoria)
28 de julho de 2016
Pode se preparar: os termos blockchain, smart contracts e redes descentralizadas se tornarão cada vez mais falados nos anos por vir. Tanto pelo potencial disruptivo quanto pelos diversos impactos que já vem causando, estas inovações prometem mudar a forma como interagimos com a Internet, com a economia e com a sociedade. Mas o que são exatamente smart contracts e do que se trata a tecnologia de blockchain? De que forma mudarão a Internet e as interações sociais na próxima década?
Blockchain e suas origens
Sem entrar em detalhes técnicos, a tecnologia de blockchain, ou apenas blockchain, é uma espécie de grande planilha pública e descentralizada que permite o registro permanente de informações em cadeia de forma segura e imune a fraudes. Assim, imagine um enorme registro de quem tem o quê, e de quem transferiu para quem qual quantia. Esse registro teria milhares de cópias nas milhares de máquinas distribuídas pelo mundo e interconectadas pela Internet. A tentativa de alterá-lo em apenas uma das máquinas levaria à sua rejeição pelas demais, que continuariam trabalhando para garantir aquele consenso. Para garantir a privacidade de seus usuários, a blockchain utiliza de criptografia e de identificadores que garantem que, apesar de pública, não permite identificar quem são os agentes fazendo trocas através de seu sistema.
Originalmente desenvolvida para possibilitar o funcionamento da primeira moeda digital descentralizada, a Bitcoin, a tecnologia mostrou-se uma ferramenta poderosa para vários outros tipos de aplicação: a plataforma Ethereum, por exemplo, permite que qualquer programa – de redes sociais a sistemas de e-mail – sejam incorporados à blockchain de forma a desfrutar de suas vantagens. O potencial disruptivo da tecnologia é, portanto, enorme.
O funcionamento da blockchain depende de milhares de máquinas processando, validando e alterando sua base de dados de forma descentralizada e não hierárquica. Pense na forma como funcionam os torrents para o compartilhamento de arquivos, onde cada peer contribui para o compartilhamento: a blockchain é capaz de fazer algo semelhante para todo outro tipo de aplicação.
Quais são os impactos dessa tecnologia?
As possibilidades, portanto, são imensas. A blockchain tem um potencial significativo para voltar a descentralizar a Internet, na medida em que distribui certas funcionalidades, que antes dependiam de intermediários centralizados, por toda sua rede de processamento distribuida.
Ao permitir o registro confiável, barato e seguro de transações de valores, a tecnologia da blockchain tem como primeiro beneficiado o setor financeiro. O investimento de bancos e instituições financeiras no desenvolvimento de aplicações em blockchain já é uma realidade: No Brasil, o Banco Itaú já faz parte do R3CEV, um grupo de mais de 50 instituições financeiras internacionais que busca utilizar a tecnologia para otimizar o setor financeiro.
As aplicações financeiras da blockchain não beneficiam apenas os grandes bancos, entretanto. Como já é possível através da Bitcoin, a tecnologia permite que qualquer pessoa transfira valores para qualquer lugar do mundo com custos módicos, virtualmente acabando com os elevados custos e complicações das remessas internacionais. Aplicações mais sofisticadas permitirão expansão e facilitação de microcrédito e consequente democratização do acesso a serviços financeiros.
Redes descentralizadas, DAOs e o Direito
O caráter disruptivo da blockchain é visível também no Direito. Diversos institutos burocráticos podem, num futuro próximo, virem a ser substituído por aplicações em Blockchain. Toda a estrutura estatal de autenticação de documentos, títulos e propriedade pode ser simplificada, otimizada e/ou reduzida através das funcionalidades de autenticação inerentes à tecnologia. Por exemplo, ao invés de ter que recorrer a um cartório para autenticar o documento que estabelece o direito de propriedade sobre um imóvel, pode-se usar a blockchain para atribuir e autenticar a propriedade. Similarmente, um artista que quisesse provar sua autoria sobre uma obra não precisaria mais passar pela burocracia de registrá-la nos órgãos competentes: um registro na blockchain poderia servir como prova quase inquestionável de autenticidade, ou pelo menos de anterioridade, daquele trabalho. A empresa brasileira OriginalMy já oferece esse serviço com uma facilidade não encontrada no no sistema burocrático tradicional.
No âmbito das sociedades, grandes complicações burocráticas também podem ser substituídas ou reduzidas através da tecnologia de blockchain. A plataforma Ethereum permite a criação de Organizações Autônomas Descentralizadas (Em inglês, Decentralized Autonomous Applications – DAOs), que permitem a criação de uma constituição societária, completa com atribuição de poderes sobre funções diversas (Por exemplo sobre as contas atribuídas àquela sociedade), divisão de cotas societárias e mecanismos de interação com terceiros.
A principal forma existente para essa interação e também os blocos edificadores de uma DAO são os smart contracts. Os smart contracts são contratos escritos em código de computador que diferenciam-se de suas contrapartes jurídicas por serem auto-executáveis. Isto é, uma vez aceitos, cumprem automaticamente o acordo estabelecido nas linhas de código, ou garantem que este seja cumprido. Então, por exemplo, um smart contract de compra e venda de um imóvel poderia tornar a transação tão simples quanto a compra de um quilo de carne no açougue: Uma parte concorda em transferir a quantia, a outra concorda em transferir a chave e imediatamente os valores e a propriedade são transferidos de forma autêntica, sem a necessidade de se fazerem alterações de registro em cartório para autenticar aquela transação. Cria-se, assim, o que se chama de trustless trust, um sistema que não depende de confiança entre as partes pois é confiável em si mesmo.
A blockchain garantiria que A transferiu o valor X para B e que em troca B passou sua propriedade sobre o imóvel Z para A. Todos os nódulos da rede olhariam para essa transação para garantir que ela tenha ocorrido de acordo com as regras do código e posteriormente garantiriam sua autenticidade caso um terceiro C tentasse, por exemplo, afirmar que o imóvel Z na verdade é seu.
Código é lei
Essa autonomia do código, que leva a máxima de Lessig (“Code is Law”) a níveis completamente novos, pode facilitar ou mesmo substituir diversos mecanismos organizacionais que hoje dependem da burocracia para sua segurança e autenticidade. Ao mesmo tempo, adiciona uma inflexibilidade que não se tem com a interação humana: por mais engessado que possa ser um determinado procedimento burocrático, o fator humano ainda está presente e pode ser capaz de lidar com minúncias e detalhes que um código muitas vezes não será capaz de prever e solucionar.
O futuro da blockchain dependerá principalmente da velocidade com a qual a maioria dos usuários adquirirá confiança sobre a tecnologia. Para muitos, entregar funções tão importantes relacionadas à propriedade e valores monetários a programas de computador é arriscado demais. Mas, de certa forma, os caixas eletrônicos que hoje utilizamos cotidianamente são alguns dos primeiros smart contracts, embora centralizados. O certo é que a tecnologia veio para ficar e tem potencial para ser tão disruptiva quanto a Internet foi na década de 90.
Escrito por
Pedro Vilela Resende Gonçalves (Ver todos os posts desta autoria)
Fundador do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, é graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. É coordenador e pesquisador do Grupo de Estudos em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual. Alumni da 2a turma da Escola de Governança da Internet do Brasil. Membro do Observatório da Juventude da Internet Society.