Blog

Lei Anti-Memes: Artigo 17 aprovado na Europa. Diversos parlamentares erraram ao votar?

Escrito por

28 de março de 2019

No dia 26 de março de 2019, foi aprovada pelo Parlamento Europeu a Diretiva Sobre Direitos do Autor no Mercado Único Digital. Popularmente apelidado de “lei anti-memes”, esse documento promete uma série de repercussões preocupantes para a internet, tanto no cenário europeu como no global. Este texto busca realizar uma análise da versão final do documento e abordar as recentes notícias sobre erros de voto por parte de diversos eurodeputados, atualizando nossa análise inicial sobre o projeto.

Em janeiro de 2019, o IRIS publicou um post introdutório a respeito da Diretiva Sobre Direitos do Autor no Mercado Único Digital, normativa proposta em 2016 na União Europeia e que vinha tramitando desde então. Nele, apresentamos o processo legislativo da Diretiva, as principais preocupações relativas ao seu texto, entre outros. À época desse post, o documento caminhava para seus estágios conclusivos de tramitação, mas teve sua votação final adiada devido à resistência de diversos países à Diretiva. Em especial, a resistência voltou-se para os artigos 15 e 17 do documento (antigos artigos 11 e 13).

Percurso temporal dos artigos 15 e 17 e principais críticas à Diretiva

Resumidamente, o artigo 11 previa a implementação de limites ao compartilhamento de links que contivessem qualquer reprodução de seu conteúdo. O compartilhamento de links de notícias, por exemplo, não poderia mencionar uma prévia da referida notícia, nem uma imagem ilustrativa e nem sequer o título da matéria – esses materiais seriam de reprodução exclusiva dos detentores de direitos sobre a notícia.

Mediante discussão, o antigo artigo 11 (renomeado para artigo 15) foi sutilmente alterado para permitir a menção a “palavras individuais” ou “pequenos trechos” do material cujo link foi compartilhado. Dessa forma, o artigo 11 passou a prever uma proteção muito semelhante à que foi adotada na Alemanha em 2013 – e que vem sendo fortemente criticada desde então por sua ineficácia. A versão final do artigo 15 da Diretiva europeia, contudo, é ainda mais abrangente do que o dispositivo alemão, aplicando-se também a serviços mantidos por pessoas individuais, pequenas empresas ou mesmo para fins não lucrativos.

Já o antigo artigo 13 estabelecia limites para a disponibilização de conteúdo de qualquer natureza por meio de qualquer plataforma online de compartilhamento em massa que tenha fins lucrativos. Essas plataformas – como o YouTube, o Facebook, sites de compartilhamento de ‘memes’ que empregam anúncios como fonte de renda, entre outros -, passariam a ser responsáveis pelas infrações a direitos autorais cometidas por seus usuários, ficando, assim, responsáveis por firmar, com os detentores de obras autorais, acordos de licenciamento de todas as obras que potencialmente poderiam ser divulgadas por meio das plataformas. Dessa forma, a previsão foi de inverter o modelo previamente vigente de responsabilização do usuário – e não da plataforma – por meio do  método de “notice and takedown“. Segundo essa técnica, a plataforma somente seria responsabilizada por uma infração cometida pelo usuário caso não obedecesse alguma ordem judicial previamente emanada que determinasse a exclusão de um conteúdo específico.

Como originalmente estava escrita, portanto, a Diretiva europeia impunha que as plataformas de compartilhamento detivessem os direitos de divulgação de, essencialmente, todo o conteúdo autoral existente – o que, por óbvio, é impossível. Foram previstas exceções para a responsabilização dessas plataformas caso as mesmas comprovadamente “se esforçassem ao máximo para impedir as infrações por parte de seus usuários”, o que, em resumo, implicaria na obrigação de que as plataformas realizassem uma filtragem prévia de todo o conteúdo compartilhado em seus bancos de dados – outra exigência praticamente inviável.

A redação original do dispositivo, foi inicialmente criticada pela sua generalidade e abrangência, motivo pelo qual o artigo 13 foi rediscutido no Parlamento Europeu. Contudo, a versão final de seu texto – na qual foi transformado no artigo 17 – não atendeu aos protestos de seus críticos. Pelo contrário, a versão do dispositivo que foi aprovada no dia 26 de março é ainda mais severa que a original, obrigando as plataformas, adicionalmente, a disponibilizar mecanismos que, ao mesmo tempo que garantam a filtragem de conteúdo desejada, também possibilitem o uso do conteúdo autoral para fins lícitos, como paródias e outros modelos de criação que se encaixam no conceito de “fair use” – ou uso legítimo.

Essa dupla exigência de garantia de uma filtragem maciça do conteúdo compartilhado sem impedir o upload de trabalhos enquadrados como fair use, contudo, mostra-se, por definição, inalcançável. Isso porque o volume de material compartilhado nessas plataformas digitais é grande demais para que humanos sejam capazes de realizar a filtragem do conteúdo. Os sistemas automatizados, como o Content ID do YouTube, por sua vez, não são capazes de distinguir entre o compartilhamento indevido de conteúdo e o fair use, o que torna inalcançáveis as demandas da Diretiva. Daí vem o apelido de “lei anti-memes”, pois é dentro do fair use que se enquadra grande parte dos memes que produzimos, usando imagens ou excertos de filmes e séries, por exemplo.

O movimento #SaveYourInternet e os protestos contra a Diretiva

Entre a redação do nosso primeiro post sobre a Diretiva europeia, em janeiro de 2019, e a aprovação definitiva do documento, observou-se um aumento expressivo dos apelos pela barragem dessa iniciativa. O movimento #SaveYourInternet, que já existia na época, contava com a participação de diversas figuras relevantes como youtubers conhecidos, membros da comunidade técnico-científica, bem como com o apoio de grandes empresas que atuam na área de tecnologia.

Contudo, conforme a tramitação da Diretiva se aproximava do fim, o movimento cresceu consideravelmente. Cidadãos europeus foram encorajados a escreverem para os parlamentares de seus respectivos países, manifestando descontentamento com o documento; plataformas digitais de grande alcance realizaram ações em prol do fim da proposta – a Wikipedia, como exemplo notório, cessou totalmente suas atividades por um dia em protesto -; e grandes passeatas foram organizadas pelas ruas dos diversos países integrantes da União Europeia, em resposta às acusações de que as críticas à Diretiva estariam sendo compartilhadas por bots.

A parlamentar alemã Julia Reda, do Partido Pirata Alemão, foi uma das principais representantes da resistência à Diretiva. Tendo se destacado na organização dos protestos presenciais pela Europa e na defesa do contraponto à proposta do projeto, a eurodeputada afirmou que essa foi a diretiva da União Europeia contra a qual a população mais se mobilizou até hoje.

Os protestos contra a Diretiva também ganharam força fora da União Europeia. Como a Europa representa um mercado de extrema importância para a economia internacional, os fatos ocorridos no Direito interno da região têm grandes chances de repercutir no restante do mundo, através de regulações semelhantes e mesmo por unificação de condutas das empresas que se verão obrigadas a seguir os comandos da Diretiva. Por isso, a preocupação acerca das repercussões da nova normativa superam as fronteiras europeias e alcançam relevância global.

Diversos eurodeputados alegaram ter votado errado nas emendas aos artigos 15 e 17

Ainda no dia 26, a eurodeputada holandesa Marietje Schaake relatou em seu perfil do Twitter que, segundo as correções dos votos dos parlamentares europeus no relatório final da sessão, as emendas aos artigos 15 e 17 da Diretiva teriam sido aprovadas. Se devidamente contabilizados esses votos, portanto, teriam sido realizadas mais negociações acerca dos textos finais desses dispositivos.

Ao todo, treze membros do Parlamento declararam no relatório votos diferentes dos que pretendiam. Destes, dez votantes alegaram ter votado negativamente enquanto pretendiam votar em favor do prosseguimento das discussões, dois alegaram ter votado em prol da emenda apesar de pretenderem votar em contrário, e um parlamentar que votou, na verdade, pretendia não ter votado.

Houve grande descontentamento com relação a esses fatos nas redes sociais. Isso porque a retratação dos votos tem validade apenas documental: não afeta o resultado oficial da votação, que segue inalterado.

Os eurodeputados que declararam os erros alegaram que isso foi motivado por uma confusão no procedimento como foi realizada a votação. A proposta de votação sobre as emendas aos artigos 15 e 17 foi proposta de maneira oral e às pressas durante a sessão parlamentar, e, segundo eles, a questão não ficou muito clara. Magnus Andersson, do Partido Pirata Alemão, alegou, contudo, que esses alegados erros podem ter sido propositais, e relatados nesse sentido para não comprometer a reputação política desses parlamentares.

A verdade é que, na prática, não se pode saber ao certo o que motivou os erros de voto, nem qual o resultado que se poderia esperar caso tudo tivesse ocorrido dentro dos conformes da votação do Parlamento Europeu sobre a Diretiva. Em qualquer hipótese, fica registrado esse lamentável episódio, capaz de resultar em sérias consequências.

Perspectivas futuras com a aprovação da Diretiva

Com a aprovação da Diretiva no Parlamento Europeu, falta apenas a adoção do projeto pelo Conselho Europeu, o que deve ocorrer no início de abril. A partir daí, os países da União Europeia têm dois anos para implementar legislações internas específicas que concretizem o que foi disposto na Diretiva.

Contudo, em uma postagem em seu site, Julia Reda afirmou que ainda há alguma esperança de que sua aplicação seja barrada, ao menos por ora. Isso se deve ao recente posicionamento em oposição ao emprego de filtros de upload por parte de Katarina Barley, Primeira Ministra da Alemanha, é possível que o país retire seu apoio à normativa. Se essa hipótese se concretizar, Reda afirmou que seria improvável que a Diretiva obtivesse maioria de aprovação no Conselho, o que poderia levar a mais negociações acerca do texto final do documento após as eleições da União Europeia, que ocorrerão em maio deste ano.

Segundo Marietje Schaake, os diversos erros de parlamentares constatados no relatório oficial da votação também podem influenciar um pouco para que as discussões sejam continuadas. Isso porque a rejeição às emendas dos artigos 15 e 17 da Diretiva se deu por uma margem muito pequena e que, teoricamente, não teria ocorrido caso os votos relatados fossem de fato contabilizados. Segundo Schaake, portanto, essa incerteza pode ser o suficiente para motivar uma opção do Conselho no sentido de estender a tramitação da Diretiva – apesar de que, segundo ela, essa possibilidade é pequena.

De qualquer forma, apesar da aprovação no Parlamento, aparentemente ainda há possíveis discussões e reviravoltas na tramitação da Diretiva europeia. Enquanto o processo legislativo ainda não chega ao seu ponto final, nos resta a esperança de alguma mudança ainda seja feita no documento.

Caso isso não aconteça, podemos esperar consequências potencialmente severas para o funcionamento da internet como a conhecemos atualmente. Por depender da confecção de leis internas pelos países da União Europeia, não se sabe ao certo a maneira como serão abordadas as previsões da Diretiva em cada sistema jurídico. As determinações da nova normativa, contudo, são severamente perigosas para a garantia do direito de expressão online.

Tem interesse por temas relacionados ao Direito europeu e suas consequências para os sistemas jurídicos dos diversos países ao redor do mundo? No ano passado, passou a vigorar o Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia, com grande repercussão no funcionamento da internet em âmbito global. Clique aqui para se informar mais sobre o assunto!

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Escrito por

Victor Vieira é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-graduando em Proteção de Dados Pessoais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). É pesquisador e encarregado de proteção de dados pessoais no Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) e advogado. Membro e certificado pela International Assosciation of Privacy Professionals (IAPP) como Certified Information Privacy Professional – Europe (CIPP/E).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *