Ainda mais precário: o trabalho sexual online
Escrito por
Leandro Soares Nunes (Ver todos os posts desta autoria)
3 de maio de 2021
Um debate que tem urgência em ser amplamente difundido é a noção de que a alcunha de “trabalhador autônomo” tem se tornado instrumento ideológico do apagamento da luta de classes. Essa operação parte da lógica liberal do empreendedorismo, do “ser o seu próprio chefe” e do “mito da garagem”, que sublima os interesses da classe dominante a partir de modelos de contratação “flexível” sustentados em plataformas digitais. Enquanto a receita de gigantes bilionárias como a iFood apresentam crescimento, é notável que o trabalho – que já era precarizado – tem se tornado quase insustentável para os trabalhadores durante a pandemia.
Se os efeitos da plataformização são perversos naquilo que tange setores da economia como alimentação e transporte, eles se apresentam menos explícitos – muito devido a falta de discussão em torno do assunto – quando analisamos a questão do trabalho sexual. A análise deste assunto, neste texto, refere-se ao trabalho sexual realizado por pessoas adultas em sua plena capacidade. De nenhuma forma o texto a seguir refere-se à exploração sexual de crianças e adolescentes, que deve ser combatida e denunciada.
Trabalho sexual online também é trabalho
Trabalho sexual é um conceito movido para dar conta da gama diversa de relações econômicas possíveis nas quais um ou mais trabalhadores realizam serviços sexuais – como a prostituição, a venda de fotos de teor erótico, a exibição ao vivo em plataformas digitais, a produção de vídeos adultos, a realização de sessões de BDSM, entre outros – por pessoas adultas, de forma voluntária e consentida mediante pagamento ou salário. Ainda que caibam inúmeras críticas à configuração que esses serviços assumem dentro do modo de produção vigente e à sua função no fortalecimento de relações afetivas, familiares, conjugais e sexuais pautadas na submissão da mulher e das pessoas LGBTQIA+, é necessário atenção para não perpetuar preconceitos que apenas alimentam o estigma sobre sujeitos já marginalizados. A busca de renda por meio do trabalho sexual está historicamente ligada à impossibilidade de sujeitos oprimidos acessarem o mercado de trabalho formal, conformando uma massa de trabalhadores expressivamente racializada, feminina, transgênera e heterodissidente.
A prostituição, especificamente, não constitui um tipo penal no Brasil enquanto o rufianismo, ou seja, “tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça” é uma prática criminalizada. É interessante apontar que a prostituição, enquanto trabalho sexual e assim como toda forma de trabalho, está intrinsecamente ligada à exploração da força do trabalhador em questão e isto é reconhecido em um certo grau pelo Estado (sobre a condição do trabalho sexual como trabalho, recomenda-se a leitura desse texto). Embora seja de extrema importância pensar a legislação em torno da prostituição e de que forma ela (não) dá conta de abarcar as diversas experiências de profissionais do sexo, principalmente no que diz respeito à assimetria de forças entre os trabalhadores e os conchavos de “gestores” do trabalho sexual com as forças policiais, esse texto estará debruçado sobre outra questão que é um fenômeno específico das redes sociais: as plataformas pagas de distribuição de material pornográfico, notadamente o OnlyFans e plataformas semelhantes.
Tumblr, arte NSFW e os queer: uma cruzada moral
No dia 17 de dezembro de 2018, o Tumblr passou a não permitir mais a postagem de conteúdo erótico adulto em vista do escândalo até então recente com pornografia infantil que levou a Apple a remover o aplicativo de sua loja virtual. A rede social era reconhecidamente um espaço de produção e divulgação de conteúdo NSFW (not safe for work, gíria comum na internet para designar nudez e sexo) e contava até então com mais de 400 milhões de páginas criadas, o que dificultava a moderação.
Ainda que não se possa precisar com eficiência o volume de conteúdo relacionado à pedofilia que circulava, o qual estima-se que fosse baixo, há outros apontamentos importantes sobre as estatísticas da rede: de acordo com um estudo realizado por pesquisadores do Istituto di Scienza e Tecnologie dell’Informazione que se propôs a analisar 130 milhões de páginas do Tumblr a fim de identificar quantos usuários produziam pornografia, quantos seguiam esses produtores e quantos eram expostos à pornografia mesmo sem seguir essas páginas, apenas 0,1% produzia pornografia, 21,54% seguiam páginas adultas, 28,46% eram expostos à pornografia e impressionantes 49,9% nem mesmo chegavam a visualizar conteúdos adultos. Além disso, o mesmo estudo aponta que 1,7 milhões dos usuários eram mulheres (cerca de 72% da base de usuários) e a idade média era de 26 anos.
Tudo isso significa que o Tumblr apresentava um contingente de usuários muito particular cuja natureza demográfica era frequentemente alvo de críticas e piadas preconceituosas.
Quando o Tumblr foi adquirido pela Yahoo!, no início da década de 10, já havia toda uma incerteza sobre como a empresa gerenciaria a rede social. As dúvidas giravam em torno da política de publicidade e da possível investida da Yahoo! para tornar a rede mais “family-friendly”. O redesign não demorou a chegar e lotou o Tumblr de anúncios publicitários. No entanto, as coisas desandaram mais quando uma nova política de postagem para conteúdo NSFW foi consolidada: páginas classificadas como blogs adultos não poderiam mais ser encontradas a partir das tags, ou seja, as postagens dessas páginas só poderiam ser vistas pelos seguidores delas e pelos seguidores de outras páginas que reblogassem o conteúdo em questão. Isso significa que caso alguém quisesse divulgar algo como uma campanha de financiamento coletivo ou mensagem política, ou mesmo sinalizar um pedido pessoal de ajuda (conteúdo bem comum no meio da década de 10, levando em conta o recorte demográfico da base de usuários da rede social), essa postagem ainda não apareceria no mecanismo de busca interno do Tumblr.
Ainda após essa atualização, usuários de iPhone reclamaram que buscas endereçadas com #gay, #lesbian e #bisexual retornavam nenhum resultado, a despeito de uma busca com essas tags não apresentar um “risco” maior de expor o usuário a conteúdo NSFW do que outras tags como #anime ou #girls.
A questão é que o conteúdo NSFW postado no Tumblr estava mais relacionado à produção artística queer e feminista, independente e autoral, que visava representar corpos e sexualidades desviantes da norma cisheterossexual do que estava relacionado àquilo que se entende por pornografia no sentido de indústria pornográfica – a la XVideos ou PornHub. O Tumblr era lar de grandes comunidades LGBTQIA+ e espaço de discussões prolíficas sobre sexo, questões de gênero e representatividade, além de conformar uma grande rede de contato e solidariedade entre trabalhadores sexuais.
O expurgo na rede social significou uma perda material para esses usuários que foram obrigados a migrar para outros espaços para tentar reconstituir suas redes de afeto e de prestação de serviços. A disputa em torno da moderação de conteúdo no Tumblr consonava com algumas conclusões já debatidas por grandes autores da teoria queer: os perigos das políticas antipornográficas, o caráter reincidentemente moral das diferenciações entre “arte” e “pornografia” e a facilidade de aproximação de categorias como “vulgar” e “pornô” das performances e artes de pessoas LGBTQIA+. Desde o começo das atualizações, já eram claras as intenções LGBTfóbicas.
Qual o problema disso tudo, afinal?
O documentário investigativo Pornocracy, dirigido pelo veterano da pornografia francesa Ovidie, explica como esse percurso histórico dos filmes adultos é marcado por uma acentuação do grau de violência no conteúdo e da precaridade de condições de trabalho a partir da entrada da empresa MindGeek, uma multinacional que quase conquistou o monopólio do streaming. A entrada da MindGeek na economia digital dos vídeos pornográficos forçou as produtoras a aumentarem seu volume de produção e diversificarem seu conteúdo em vista da gigantesca oferta de material adulto gratuito para streaming. Os resultados foram atores e principalmente atrizes trabalhando mais, com menos segurança, recebendo menos e filmando cenas mais extremas. Não são poucos os relatos de abuso de drogas para balizar a violência das gravações.
Uma matéria veiculada pela BOL conta um pouco sobre a modelo Marjorie Suicide que conseguiu em seu auge no OnlyFans uma receita de 2.000 dólares (aproximadamente R$11.000,00). Ainda que esse valor esteja definitivamente muito acima do orçamento da maioria das famílias brasileiras, há de se atentar que a criadora está entre os 10% mais acessados do site.
Aí já se encontra um problema: do montante pago pela empresa aos criadores, 33% está concentrado em 1% das contas. 72% desse valor é distribuído apenas aos 10% de criadores mais acessados, ou seja, cerca de 90% dos criadores alcançam uma renda média de apenas 133 dólares. A empresa, a despeito da concentração dos valores, segue acumulando lucros de nove dígitos.
É muito improvável que esse equilíbrio se transforme rapidamente. Há de se adicionar a essa reflexão que esses criadores desfrutam de nenhum direito trabalhista ou de alguma forma de seguridade social, assim como trabalhadores de outras plataformas como a Uber ou iFood. Seu vínculo empregatício é inexistente: ainda que explorados pela OnlyFans, que abocanha cerca de 20% do valor gerado pelos criadores, esses trabalhadores não são reconhecidos enquanto empregados da empresa e, muito menos, como prestadores de serviços aos consumidores. Esse limbo legal no qual se encontram favorece a ocorrência de diversas formas de abuso e exploração.
Os criadores ainda incorrem ao perigo da pirataria dada a situação de monopólio do streaming de pornografia assegurado pela MindGeek e, não raramente, muitos de seus trabalhos são encontrados circulando em sites como XVideos ou PornHub. Um outro perigo ao qual estão sujeitos os trabalhadores dessa plataforma é a “higienização” do site, uma vez que é de interesse da empresa se apresentar como uma possibilidade viável de investimento aos grandes capitalistas de Wall Street. Hélène, uma dessas trabalhadoras sexuais, também conhecida como EnMarcheNoire, conta em entrevista:
“sempre existe essa preocupação, e é por isso que estou colocando meu conteúdo em todos os lugares, em todas as plataformas. Em tese, gosto que a plataforma seja democratizada e aberta a um tipo diferente de conteúdo. Isso mostra que você não é um pária só porque tem uma conta OnlyFans. Mas, na verdade, as trabalhadoras do sexo são sempre as primeiras a sofrer com as novas regras quando uma plataforma se torna popular o suficiente. Se OnlyFans conseguir prosperar graças ao conteúdo não sexual, ficaria preocupado que a plataforma fechasse o acesso ao conteúdo sexual”.
Essa preocupação tem se tornado cada vez mais uma realidade, como aponta a Folha de Pernambuco.
O sucesso da plataforma, longe de estar ligado a suas inovações enquanto uma rede social, está muito mais atrelado à ilusão do empreendedorismo e noções extremamente vagas e liberais como “empoderamento” e “representatividade”. Numa sociedade em que se equaciona a possibilidade de sucesso na vida profissional com o entendimento que se tem de empresas que surgiram em garagens do subúrbio estadunidense, é esquecido que possuir uma garagem implica possuir um espaço livre à disposição dos empreendedores com todas a facilidades de estar próximo a sua moradia; implica que essa garagem provavelmente está localizada em um bairro seguro onde se desenvolve uma atividade sem riscos à vida e à integridade do empreendedor; implica que não há barreiras legais para a atividade desse empreendedor; implica que esse empreendedor tem tempo livre no qual ele não se concentra em garantir a subsistência sua e de sua família; implica na disposição de capital para investir em publicidade e marketing desse empreendimento; implica na possibilidade de acessar conhecimentos específicos relacionados a esse empreendimento; enfim, implica em direitos fundamentais que têm sido chamados de privilégios. Direitos esses que ainda não estão garantidos para sujeitos marginalizados como os trabalhadores sexuais em sua condição feminina, transgênera, heterodissidente e/ou racializada.
Para entender mais sobre uberização, recomenda-se a leitura desse texto escrito pela pesquisadora Ana Bárbara Gomes e para entender melhor o fenômeno da plataformização, leia esse texto escrito pela jornalista Lorena Tárcia, ambos disponíveis no blog do IRIS.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração de capa: Storyset
Escrito por
Leandro Soares Nunes (Ver todos os posts desta autoria)
Aluno de graduação em ciências sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais e integrante do projeto de pesquisa voltado a investigação da inclusão digital. Já esteve envolvido com projetos referentes a comunicação política, educação e patrimônio cultural imaterial. Atualmente se dedica aos estudos culturais.