A maior mentira da história da Internet
21 de agosto de 2017
O ato da mentira é inerente ao comportamento humano. Em todos os campos sociais, a mentira ocupa um espaço de manipulação da realidade, que pode ser expressado por uma omissão, pela escolha seletiva dos fatos ou pela simples criação dos mesmos. A ética por trás de uma mentira é sempre polêmica: Devemos contar uma verdade dura e cruel para alguém ou mentir para evitar conflitos e sofrimento?
Ainda que seja da vontade dos autores embarcar em um debate filosófico deste tema, falaremos especificamente de uma mentira contada diariamente, dita pela grande maioria dos usuários da Internet. Dita por aqueles que escrevem este texto e pelos que o lêem também. Podemos dizer até que esta seja a maior mentira da história da Internet. Estamos falando aqui dos Termos de Uso.
Ansiosos por utilizar uma aplicação em questão, sempre contamos uma mentira ao assinalar a pequena caixinha ao final do registro ou instalação que diz “Li e Aceito os Termos de Uso”. Não parece, mas estamos assinando assim um pequeno contrato, que explica como nossa interação com aquela plataforma se dará a partir daquele momento. Ele é necessário, em certo sentido, para que se tenha uma segurança jurídica tanto da empresa quanto para o usuário sobre essas interações.
O conceito dos termos de uso é relativamente novo. Antes, não precisávamos assinar algum termo de uso quando usássemos uma geladeira ou uma linha telefônica. Com o advento e a popularização da Internet, entretanto, foi necessário que houvesse maior controle sobre as interações que eram feitas em uma plataforma. Afinal, como na Internet ninguém sabe se você é um cachorro, como garantir que direitos e deveres possam ser aplicados a determinados usuários em uma plataforma?
Dessa necessidade, também surge um novo modelo de negócios, cunhado pela socióloga americana Shoshana Zuboff como “Capitalismo de Vigilância”. Nesse modelo, todo o monitoramento e a coleta de dados por meio de serviços digitalizados são monetizados, geralmente servindo para publicidade direcionada. Entretanto, na lógica deste modelo, quanto mais dados, mais se conhece sobre o usuário, mais conclusões podem ser feitas e mais dinheiro entra em jogo. Dessa forma, o apetite por dados se torna insaciável, colocando em risco a privacidade de seus usuários. Daqui, se valida a grande parte dos problemas que os ativistas em privacidade alertam.
Em um sentido jurídico, um contrato desses é totalmente válido, num modelo chamado “Notice and Consent”, ou seja, notificar ao usuário sobre como se dará a relação e pedir seu consentimento. A não leitura de um contrato antes de sua assinatura é sempre vista como algo perigoso. Logo, nesse modelo, a culpa seria totalmente do usuário por assinar um contrato que não está lendo. Entretanto, são justas as condições que essa arquitetura submete os usuários?
Até a presente data teriam sido necessários, em média, 20 dias inteiros lendo todas as pequenas letras de contratos com os quais nos deparamos em um ano. Temos tempo para isso? Além do mais, os termos de uso muitas vezes possuem uma linguagem vaga e que não esclarece para os usuários exatamente o que será feito com suas informações. Por fim, os usuários são obrigados a assinar os termos de uso para utilizar a aplicação, o que deixa os consumidores em uma relação de desequilíbrio frente às empresas.
Em um cenário em que nossas relações de privacidade com as plataformas digitais são regidas por contratos que não temos tempo para ler, não sabemos exatamente o que dizem e com o que somos obrigados a concordar para utilizar estas plataformas, que soluções se veem no horizonte? Bem, para o Brasil, por se tratar de uma relação estabelecida diretamente entre usuários e empresa, uma solução de grande impacto seria a aprovação de uma Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, a qual estabeleceria direitos e deveres sobre como os dados coletados por essas empresas devem ser tratados, obrigando-as a garantir maior transparência nos Termos de Uso. É importante afirmar que não existe um vácuo normativo no país sobre a matéria. Há diversas leis setoriais tratando sobre o tema, como a Lei do Cadastro Positivo, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei de Acesso à Informação e o próprio Marco Civil da Internet. Contudo, estas leis não oferecem um nível satisfatório de proteção aos dados pessoais implicados nos Termos de Uso.
Temos atualmente na Câmara dos Deputados uma disputa entre diferentes setores para que a Lei de Proteção de Dados Pessoais receba uma redação final. Por um lado, as empresas desejam uma lei mais branda, que permita uma exploração mais profunda dos dados coletados. Por outro lado, ativistas e ONGs se unem para que exista maior fiscalização e controle sobre estas informações, protegendo assim a privacidade dos usuários.
Enquanto esta discussão não avança, permanecemos inseguros sobre o que os termos de uso dizem e sobre qual contrato estamos assinando. Seguimos também inseguros sobre como nossa identidade é moldada e tratada com base em decisões de algoritmos que não entendemos e aos quais não temos acesso, cada vez mais concentrados nas mãos de um pequeno conglomerado de empresas. Enquanto não temos a verdade, seguimos mentindo.
Artigo escrito por Maru Arvigo e Victor Veloso, integrantes do Núcleo de Estudos de Tecnologia e Sociedade da USP.
Marina Arvigo é estudante de direito da USP e estagiário de pesquisa do Internetlab. Atualmente é coordenador do Núcleo de Estudos em Tecnologia e Sociedade (NETS) da USP.
Victor Veloso é estudante de Relações Internacionais da USP e pesquisador em diferentes temas referentes a tecnologia e sociedade. Sua pesquisa envolve principalmente temas como Vigilantismo, Governança de Algoritmos, Liberdade de Expressão na Internet e Cyberwar. Foi representante da juventude brasileira no IGF 2016 e atualmente é estagiário na área de Direitos Digitais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Também é um dos cofundadores e coordenadores do Núcleo de Estudos em Tecnologia e Sociedade da USP, instituição estudantil que tem como objetivo difundir e estimular o debate sobre temas ligados a tecnologia.
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