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Nem tudo vai online

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1 de julho de 2020

Em tempos de relações limitadas, os limites das interações virtuais ficam ainda mais óbvios. 

Quem nunca usou a frase – ora com entusiasmo, ora com certa melancolia – “agora tudo é pela internet”? Na verdade, sabíamos que nem tudo e especialmente nem todos estão, efetivamente, online. Essa foi uma das motivações de um dos projetos de pesquisa do IRIS, que resultou em três livros sobre inclusão digital. Todos disponíveis aqui. Quando falamos em tornar “digitais”nossas tarefas, relações de trabalho e familiares, consumir, prestar e receber serviços, vender e comprar, entre tantas outras dimensões, falamos para uma parte da população no Brasil e no mundo que tem essas opções. Isso leva nos leva a um pressuposto importante, na verdade, imprescindível: existe uma desigualdade avassaladora nesse “novo normal”, que reforça os desequilíbrios econômicos, sociais, culturais e históricos. Esses, por sua vez, nada de novo têm.  

Mesmo para quem tem esse (e outros) privilégios, a extensão do período recomendado de distanciamento social mostra as limitações da migração para as interfaces digitais. Passamos a entender que “tudo pela internet” está mais para panfleto do que para uma vida em sociedade. A importância da internet cresce, sem dúvidas. Trabalhar para que ela chegue a mais pessoas, de forma segura, cidadã e positiva se torna um compromisso cada vez mais essencial. E reconhecer as outras camadas e intersecções de nossas interações humanas é urgente

Toda solução tem um problema

Você pode ter a melhor formação, ter lido as principais referências em gestão, gerenciamento de projetos, recursos humanos, crises e estratégia. Você pode até ter anos de experiência em liderança e enfrentar qualquer desastre. Mas se você me disser que está totalmente preparado para os cenários da pandemia do COVID-19, só posso concluir que ainda não está vivendo 2020 (se estiver no futuro, aceito spoilers da temporada atual, por favor).

Há um tempo temos falado em cultura organizacional, valores, empatia e vulnerabilidade também no ambiente profissional. A medida que mais automatizações acontecem em diversos setores da economia, mais espaço requer nossa humanidade. Medo, ansiedade, luto, confiança, esperança e superação não passam por plataformas e ferramentas conectadas à internet. A dimensão emocional precisa entrar na equação para a tomada de decisões, para que elas possam efetivamente enfrentar as dificuldades do contexto exterior. É preciso sentir para fazer sentido.

É muito mais difícil prestar atenção a essa dimensão à distância. Impossível? Não. Descobrimos uma variedade de serviços de chamada e até otimizamos diversas atividades. Temos a chance de participar remotamente de oportunidades que, de forma presencial, não estariam ao alcance. Mas o home office também nos deixa sem os apertos de mão, os abraços, as reações espontâneas, a convivência com outras formas de viver. É por isso que, apesar de tanto só ser possível porque temos o privilégio de atuar a partir de nossas casas, pelos serviços e aplicações que operam sobre a internet, muito do que precisamos – mais  que nunca – não é digital. 

Não podemos assumir a lógica de que basta transferir nossas atividades, objetivos e metas para a  plataforma, o aplicativo ou a página da web. Daí vem um segundo ponto: a convivência – e o que ela constrói em nós diuturnamente – não se transmite por cabos, fibras, servidores e dispositivos. Enquanto não reconhecermos isso e entendermos as limitações das tantas promessas que “soluções digitais” oferecem, elas se tornarão o problema. Ou pelo menos grande parte dele, porque ignorar o que nos une enquanto sentimento é minar nossas potencialidades enquanto ação

Crer para ver

Agir, por sua vez, começa por admitir a complexidade dessa equação: existe exaustão, há saturação com interfaces tecnológicas, espaços compartilhados, demandas de crianças e idosos, preocupações com a segurança, conhecidos infectados por uma doença que avassalou o mundo. Esse novelo de demandas ganha camadas de complexidade à medida que o tempo passa, aumenta em dimensão, dificulta nossa visão. 

Nesse contexto, migrar as atividades, serviços, relações e significados para as interfaces digitais parece uma solução. Talvez a única possível, quando e para quem é possível. É preciso admitir, contudo, que nem tudo vai funcionar. Então, é preciso também um exercício complexo de analisar se deveríamos seguir na linha da migração para o digital ou, na verdade, desenhar arranjos específicos para essas interfaces. É novo, é complexo e pode até ser repleto de boas intenções. Acontece que nem tudo vai online e precisamos considerar as limitações, para além das estruturais e sociais, representadas por uma dinâmica que insiste em negar suas próprias fragilidades.

É preciso ver que algumas coisas, sistemas, metodologias e processos perderam sentido. Pode ser que tenham perdido há muito tempo e a situação atual tenha apenas evidenciado isso. Ou não, pode ser que voltem a ter, algum dia. Por intermédio das tecnologias ou não, estamos nos transformando para sempre. Nessa estrada, que a gente possa reconhecer o que não pode ser mantido, se comover com o que nos rodeia, ter coragem para admitir a mudança. O essencial, nesse caso, é visível aos olhos e está do outro lado dessa tela: somos, humanamente, nós.

Sobre esse desafio de centrar nossos esforços nas pessoas, muitas reflexões importantes foram apresentadas na edição de junho do Café e Chat do IRIS, transmitido dia 30/06. Confira a gravação aqui.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Ilustração por Freepik Stories

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Fundadora e Diretora  do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, é mestre e bacharel  em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Fundadora do Grupo de Estudos em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual – GNet (2015). Fellow da Escola de Verão em Direito e Internet da Universidade de Genebra (2017), da ISOC – Internet and Society (2019) e da EuroSSIG – Escola Europeia em Governança da Internet (2019). Interessa-se pelas áreas de Direito Internacional Privado, Governança da Internet, Jurisdição e direitos fundamentais.

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