Zero-rating: uma medida de exceção
Escrito por
Luiza Brandão (Ver todos os posts desta autoria)
13 de abril de 2020
Diversos temas integram o debate “pós-pandemia” sobre o que teremos aprendido e que decisões e estratégias se consolidarão. Em tempos de incerteza causados pela pandemia do COVID-19, uma discussão que, sob certo ângulo havia adormecido, volta a fazer parte do dia a dia da internet no mundo. Afinal, o que é zero-rating? Qual sua relação com neutralidade de rede? Por que ele foi, é e sempre será um ponto sensível sobre o funcionamento da internet?
A neutralidade de rede: um princípio e um fim
No Brasil, muito se discutiu sobre a neutralidade de rede durante o processo de elaboração, consulta e votação do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Antes ainda, a neutralidade já tinha sido estabelecida como princípio para a governança da internet no Brasil desde 2009.
“6. Neutralidade da rede: filtragem ou privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento. (Declaração de Princípios para a governança e o uso da internet no Brasil)”
Em 2014, o Brasil assumiu uma posição de destaque nas discussões globais sobre a internet, com a realização do encontro multissetorial NETMundial. É possível perceber que a neutralidade da rede foi um dos temas sensíveis, pois não aparece explicitamente nos princípios elegidos na NETMundial, ainda que possa ser relacionada a outros comandos, como o da abertura e participação significativa. Se o documento internacional optou por não incluir a neutralidade da rede, o Marco Civil da Internet, por sua vez, o fez:
“Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: […] IV – preservação e garantia da neutralidade de rede;”
A Lei 12.965/14 dedica ainda uma seção do Capítulo III (Da provisão de conexão e de aplicações da internet) à neutralidade da rede:
“Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.”
O Decreto 8771/2016 reforça o compromisso brasileiro com a neutralidade da rede:
“Art. 10. As ofertas comerciais e os modelos de cobrança de acesso à internet devem preservar uma internet única, de natureza aberta, plural e diversa, compreendida como um meio para a promoção do desenvolvimento humano, econômico, social e cultural, contribuindo para a construção de uma sociedade inclusiva e não discriminatória.”
É importante assinalar que a neutralidade de rede: 1) É um conceito relacionado ao funcionamento técnico da internet e à operacionalização do sistema de tráfego; 2) Dialoga com a esfera jurídica, na medida em que busca ser ferramenta de garantias como a liberdade de expressão, e também a econômica, em temas relativos à inovação e concorrência, e; 3) Não significa assumir que as formas de utilização da internet são ‘neutras’ ou desprovidas de viés.
O princípio, em termos gerais, se refere ao comando de não discriminação sobre aquilo que trafega na rede, para que não existam “preferidos” em sua utilização. O fim é que a internet seja aberta, que haja oportunidades iguais para diversos atores, serviços e usuários em seu uso. Na prática, contudo, a escassez da estrutura da internet, a demanda crescente sobre as vias de tráfego e as distintas necessidades entre o que se executa na camada de aplicação, entre outros fatores, levam a neutralidade da rede e o zero-rating ao centro das discussões.
A prática do zero-rating e suas controvérsias
Ainda que contemplada em marcos legais e declarações, a neutralidade da rede continua a enfrentar uma das práticas mais desafiadoras ao ideal de um tratamento isonômico do que trafega na rede. Basicamente, o zero-rating consiste em uma oferta de acesso móvel a conteúdos e aplicativos previamente determinados pelo provedor ao usuário, sem que isso implique custos adicionais. Na prática, uma porção do que se utiliza via internet seria separada, isto é, discriminada, no tráfego, para que não fosse descontada da quantidade de dados contratada.
Ao ler essa descrição superficial – que pode e precisa ser aprimorada em outra oportunidade – talvez você se pegue pensando: “Eu já vi isso antes” (ou simplesmente “uai”, se for um interlocutor conterrâneo). E, sim, se você não sabia que o nome é zero-rating, ele corresponde aos tantos outdoors, cartazes e outras propagandas que vemos por aí, prometendo aplicativos “sem descontar da sua internet”.
A prática ocorre abertamente no Brasil, onde a neutralidade de rede está sedimentada em lei, e em outros países do mundo. Por isso, possivelmente, não cria tanto estranhamento. Causa, contudo, preocupação, não apenas do ponto de vista do cumprimento da lei, mas também sobre a abertura da internet, suas distintas possibilidades, o acesso livre à informação e ao conhecimento.
Com grande parte da população conectada por aparelhos móveis no Brasil, a cautela sobre práticas contrárias à neutralidade da rede deveria ser ainda maior. Isso porque, em muitos casos, o acesso dessas pessoas não é aberto a toda aplicação ou conteúdo da internet. Na verdade, uma vez esgotados pacotes de dados cada vez mais caros e menores, o uso fica restrito aos serviços ou plataformas que “não gastam a sua internet”/ “não são descontadas do pacote de dados”.
Uma forma de enxergar o zero-rating é como uma oportunidade de que pessoas que não teriam acesso a nenhuma conexão, ainda teriam algumas opções. Essa visão parece bastante prática, mas contraria muitos outros aspectos fundamentais que fizeram a internet evoluir. Apesar de viabilizar algumas soluções, deixa de lado todas as outras e tira do usuário a autonomia de escolher o que pode e quer acessar, de navegar por uma internet aberta e global, procurar e checar informação, explorar o conteúdo de outras plataformas e aplicações e de usufruir das potencialidades da rede.
A prática do zero-rating e seu desafio para a efetivação da neutralidade da rede no Brasil ainda parecem estar longe de acabar, mesmo que, em alguma medida, essa discussão tenha ficado adormecida. Propostas relativas ao enfrentamento da pandemia do coronavírus, contudo, parecem ter lançado luz, mais uma vez, sobre essa prática.
Zero-rating e saúde pública: uma exceção
Diversas medidas estão sendo tomadas no contexto da calamidade pública instaurada pelo coronavírus. Muitas delas guardam relação com a apreensão de ferramentas tecnológicas e serviços digitais pelos brasileiros. Nesse contexto, passamos a depender ainda mais de uma internet robusta e resiliente, sobre a qual já se manifestou o Comitê Gestor da Internet no Brasil.
O cenário da pandemia levou provedores a ofertarem aplicativos vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS), como o Coronavirus, que oferece funcionalidades no combate à pandemia, sem depender do pacote de dados contratado pelo usuário. A iniciativa, portanto, é zero-rating e permite que as pessoas tenham acesso ao aplicativo, independente da situação de seu plano de dados junto à prestadora de conexão. Isso quer dizer que esses provedores separarão, no tráfego, o que se relaciona ao aplicativo, para que ele chegue até o usuário, sem que faça parte da quantidade de dados contratada. Por definição, a medida é uma exceção à neutralidade da rede.
Distintamente das outras situações de zero-rating, esse caso está amparado também pelo sistema legal. Como um princípio, a neutralidade da rede não é absoluta e os instrumentos legais abordam hipóteses em que essa discriminação do tráfego não corresponde ao descumprimento da lei. Entre elas, se encontram as situações de calamidade pública, que já está declarada no Brasil. É preciso perceber que, nesse caso, a prática do zero-rating está respaldada pelo ordenamento e serve ao enfrentamento de questões de saúde pública.
Assim como outras medidas de tecnologia no combate ao COVID-19, o zero-rating para essa finalidade deve ser compreendido como uma exceção e não como a regra, que continua sendo a neutralidade da rede. Esse caso é a demonstração de uma medida paliativa, para que o acesso de boa parte da população às ferramentas de enfrentamento da pandemia esteja garantido. Não deve tirar de nossos horizontes, contudo, a necessidade de que o pleno acesso à internet seja garantido, enquanto direito fundamental que é, para além das situações emergenciais.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração por Freepik Stories
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Luiza Brandão (Ver todos os posts desta autoria)
Fundadora e Diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, é mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Fundadora do Grupo de Estudos em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual – GNet (2015). Fellow da Escola de Verão em Direito e Internet da Universidade de Genebra (2017), da ISOC – Internet and Society (2019) e da EuroSSIG – Escola Europeia em Governança da Internet (2019). Interessa-se pelas áreas de Direito Internacional Privado, Governança da Internet, Jurisdição e direitos fundamentais.