Slow Content: quando menos é mais (e melhor) para quem cria e consome conteúdo online
Escrito por
Felipe Duarte (Ver todos os posts desta autoria)
5 de julho de 2021
O que você faz na hora do seu almoço? Eu costumo assistir uma animação enquanto estou comendo. Uma conhecida, pelos stories, disse ontem que resolveu 5 burocracias diferentes enquanto relatava o feito no Instagram e comia, na frente do computador. Um amigo me contou que tira um tempinho do almoço para aprender francês por aplicativo. No geral, todo mundo tenta “aproveitar o tempo” – e esse “tempo bem aproveitado” parece ter padrão de como pode ser medido: pela quantidade de tarefas e informações que conseguimos absorver, resolver ou produzir.
É nesse contexto que surge o Slow Content, um convite a relembrar que lógicas de produção em massa de conteúdo não são coerentes com a manutenção da nossa saúde. A seguir, explico melhor sobre o contexto no qual esse termo aparece, seus principais pilares e como podemos melhorar nossa relação com conteúdo online – seja para consumo ou produção.
O calo apertou na pandemia, mas a infodemia não é de 2020
Lembra de quando, em março de 2020, a internet se tornou uma grande “coach motivacional”? Havia posts de empresas por todo o lado oferecendo cursos de capacitação, influenciadores dizendo o quanto estavam refletindo para serem pessoas melhores e todo mundo fazendo uma live. Tudo isso sem abrir espaço para realmente nos darmos conta da gravidade da situação pelo mundo com o discurso de que “agora que ganhei mais tempo, posso … (insira aqui algo como ser uma pessoa melhor ou aprender uma língua)”.
Que fase, né?
Esse fenômeno revela o quanto atrelamos, enquanto Sociedade da Informação, o consumo e produção de informação (que pode ou não se tornar “conteúdo”), a um aspecto central das nossas vidas, e que por muitas vezes acabamos tomando como parte de nossa própria identidade e existência. E isso não é papo de geração Z ou millennial não. Como eu e minhas colegas de pesquisa apontamos no Glossário da Inclusão Digital,
Na sociedade da informação, a dinâmica social de interações, trabalho e comunicação são inteiramente permeadas por densos fluxos informacionais que ocupam posição central na rotina dos indivíduos. O conhecimento das informações é substrato importante para que a sociedade civil, empresas e governos norteiem suas decisões.
Para você ter uma ideia, só no último minuto foram feitos por volta de 347.222 Stories e cerca de 500 horas de vídeo no YouTube foram assistidas ao redor do mundo, segundo o levantamento Data Never Sleeps. E, como o próprio nome do levantamento sugere, os dados realmente nunca dormem – já que existem até podcasts feitos para quem quer dormir melhor ouvindo alguma coisa.
Nesse contexto em que tudo é demais, seja a quantidade de informação ou a pressão dos algoritmos, para quem cria conteúdo surgem máximas como a de postar algo novo sempre que possível, se não todos os dias. E enquanto isso, para quem lê, assiste ou ouve conteúdo sobra o “FoMO” (Fear of Missing Out): o medo de perder informações que, no fim das contas, podem nem ser tão relevantes assim e que já comentei aqui no blog do IRIS. No fim das contas, essa roda gira impulsionada por algoritmos que baseiam nossa relação com conteúdo em uma perspectiva nada humanizada e o resultado não poderia ser outro senão o adoecimento.
Esse excesso de informação que nos têm adoecido – e que nem sempre podemos chamar de “conteúdo” – tem nome: infoxicação. O neologismo une “informação” e “intoxicação” e foi criado lá em 1996 por Alfons Cornella para dar nome à nossa dificuldade não só de digerir esse excesso de informação que nos é oferecido, mas também de avaliar a qualidade e relevância dessas informações que temos contato. De acordo com as pesquisadoras Anelise Maya, Silvia Bertagnolli e Márcia Villarroel, as consequências desse fenômeno são preocupantes na medida em que se relacionam a níveis altos de estresse, contribuem para a ansiedade e prejudicam áreas importantes da vida: da saúde mental e até física.
Slow Content: ser gente que produz e consome conteúdo exige um tempo de gente, e não de algoritmo
Comentei anteriormente que informações não são necessariamente conteúdos. E é nesse sentido que apresento a ideia do Slow Content, que se apresenta não somente como uma prática capaz de ajudar a combater a intoxicação, mas como uma necessidade que deveria ser uma prioridade já a algum tempo: a de reavaliarmos nossa relação com conteúdo online, seja no lugar de consumidores, de criadores ou dos dois.
Ruth Rodríguez e Manuel Barrio, pesquisadores da Universidad Rey Juan Carlos, apontaram que a infoxicação tem um ciclo de três etapas e envolve todos nós: primeiro aparece a urgência em produzir informação nos meios digitais, que em seguida se transforma em uma postagem superficial e com pouca qualidade que, por fim, resulta em um conteúdo que não contribui quase nada no que diz respeito a sua proposta considerando a avalanche de informações que já existem por aí.
Como profissional de comunicação, vou somar nessa conta também outro fator: quando se fala em marketing, conteúdo produzido nessa lógica de volume e não de qualidade acaba se tornando altamente esquecível. Esse tipo de publicação cumpre, quando falamos em vendas ou engajamento, o objetivo de tornar uma marca forte ou relevante por aquilo que produz. A American Marketing Association fez um levantamento interessante entre os anos de 2012 a 2016. O estudo apontou que a quantidade de posts de profissionais do marketing aumentou em 800% naquele período, mas o volume de compartilhamento desses conteúdos diminuiu em 89%. A partir desse dado é possível inferir uma série de coisas além de uma perda de qualidade no conteúdo (que não é o único fator que levamos em conta quando compartilhamos algo), mas também que esse grande volume de informação pode tornar aquilo que realmente é importante para uma pessoa difícil de ser lido com atenção entre tantas postagens e até mesmo ser menos distribuído pelos algoritmos, e por consequência encontrado e compartilhado. O dado é antigo, mas a lógica não parece ter mudado muito de lá pra cá.
É nesse contexto – e necessidade de saúde e economia – que o Slow Content aparece. O termo, que deriva do Slow Living, prega que a qualidade deve sobrepor a quantidade quando se fala em criação e compartilhamento de conteúdo. O Slow Content apresenta que a criação (e eu diria que também o consumo) de conteúdo deve ser feita com propósito e levar o tempo necessário para haver qualidade. Assim, o resultado é capaz de gerar mais impacto positivo na audiência e realmente fazer a diferença em quem consome o conteúdo.
Para não ficar só no discurso: os pilares do Slow Content
Essa informação realmente faz a diferença ou já existe em outros perfis ou sites nesse mesmo formato? Qual a forma mais adequada de se criar esse conteúdo? Essas preocupações, tipicamente associadas à Comunicação Social fazem parte dessa forma mais humana de produzir conteúdo feito de pessoas e para pessoas (e não algoritmos). O Slow Content nos lembra que a comunicação digital continua sendo, sempre, social.
Entre os pilares do Slow Content estão alguns pontos que dizem respeito principalmente ao processo de criação de conteúdo, mas que acabam também refletindo no consumo de conteúdo online:
- Não é sobre falar, mas sobre impactar: a ideia é que o conteúdo seja produzido não com a intenção de mostrar algo, mas com foco na necessidade das pessoas. Uma pergunta necessária nesse quesito pode ser “em que essa ideia de postagem ajuda quem que quero impactar?”
- Evitar o excesso: criar um conteúdo autêntico exige pesquisa e planejamento, e isso exige tempo e carinho. Assim, privilegiar diversas fontes de pesquisa para além dos primeiros resultados do google (e, quem sabe, até material físico) tornam um conteúdo que pode até já ter sido produzido com outra perspectiva muito mais completo e capaz de realmente fazer a diferença no feed – e na vida – de alguém.
- A venda dá lugar à transformação: a ideia não é publicar algo simplesmente para informar, apresentar seu ponto de vista ou vender uma ideia ou produto. A ideia é transformar a vida ou a forma como alguém faz algo e ser lembrado por isso – seja com uma dica simples, mas eficaz ou com um vídeo de 10 minutos super produzido.
Além disso, vale lembrar que a ideia é que essas diretrizes não sirvam como uma pressão na hora de fazer um simples post no seu perfil pessoal, mas de lembrete para não esquecermos o motivo de gerarmos não somente informação, mas conteúdo. Afinal, em um contexto de tanta informação, é fácil que criadores e consumidores de conteúdo online se façam cobranças incoerentes com nossa saúde e que são normalizadas na Sociedade da Informação.
Não se esqueça: o seu tempo deve ser realmente seu
Para evitar que a avalanche de informações nos soterre, precisamos ter atenção àquilo que realmente nos identifica enquanto pessoas: o nosso próprio tempo e processo. Assim, propostas como a do Slow Content são muito necessárias para que a construção de uma sociedade da informação saudável aconteça e que, de fato, as vantagens da internet e sua velocidade em conectar pessoas se sobreponham aos desafios e adversidades capazes de nos adoecer.
Em tempos de pandemia e de algoritmos, criar conteúdo em um tempo maior, mas na direção certa, também é um ato de saúde e, consequentemente, resistência.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Escrito por
Felipe Duarte (Ver todos os posts desta autoria)
Coordenador de comunicação do IRIS, designer e ilustrador freelancer no mercado editorial e publicitário, com foco em criações vibrantes que mesclam natureza, orgulho LGBT+ e surrealismo. Graduado em Publicidade pela UFMG, é coordenador de comunicação no Instituto de Referência Internet e Sociedade, onde atua pela democratização do conhecimento. Também foi membro do programa Youth no IGF2023 no Japão e pesquisador em temas de inclusão digital, autor dos livros “Glossário da Inclusão Digital” e “Inclusão digital como política pública”. Além disso, também é apresentador do podcast “Lascou!”, sobre as dificuldades de artistas on e offline.