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Reflexões sobre o direito à inclusão digital

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22 de dezembro de 2021

Diversas correntes teóricas explicam as origens dos direitos humanos e quais são os parâmetros que tornam certos direitos preponderantes a outros. A inclusão digital é percebida principalmente sob duas perspectivas diferentes: como um direito humano per si ou como uma condição para efetivação e alcance de outros direitos fundamentais. Considerando a inserção de chamados “direitos digitais” no ordenamento jurídico brasileiro -como ocorrido recentemente com o direito à proteção de dados- este texto pretende apresentar algumas correntes de classificação da inclusão digital como direito humano (ou fundamental) como um convite à reflexão sobre os caminhos desejáveis deste fenômeno.

Inclusão digital como direito humano próprio

A primeira perspectiva, que considera a inclusão digital -e principalmente o acesso à internet- como um direito humano ou fundamental próprio se aporta no reconhecimento deste direito legalmente por alguns países como França, Estônia e Finlândia e em relatórios oficiais da ONU. Dentre os argumentos mobilizados para o estabelecimento desta linha de raciocínio, se destaca aquele trazido por Tim Berners-Lee, segundo o qual “a internet não é apenas tecnologia. É conhecimento, é oportunidade, é empoderamento. É essencial para a vida nos dias de hoje”. Ou seja, considerando o desenvolvimento da sociedade da informação, o acesso à internet passa a ser considerado como uma condição essencial para o desenvolvimento pleno da pessoa enquanto sujeito de direito. 

Entretanto, observa-se certa zona cinzenta em relação aos argumentos que envolvem o reconhecimento ou não do acesso à internet como direito. Por exemplo, em 2011, o relator da ONU para liberdade de expressão publicou um relatório reconhecendo o acesso à internet como direito humano. Entretanto, este reconhecimento não foi devido ao caráter fundamental intrínseco da internet, e sim por ser um meio para o alcance de outros direitos fundamentais.

Abaixo destaca-se algumas passagens do relatório que exemplificam esta linha argumentativa. 

A Internet, como meio pelo qual o direito à liberdade de expressão pode ser exercido, só pode cumprir seu propósito se os Estados assumirem seu compromisso de desenvolver políticas eficazes para alcançar o acesso universal à Internet.

O Relator Especial está, portanto, preocupado com o fato de que, sem o acesso à Internet, que facilita o desenvolvimento econômico e o gozo de uma série de direitos humanos, os grupos marginalizados e os Estados em desenvolvimento continuem presos em uma situação de desvantagem, perpetuando assim a desigualdade dentro e entre os Estados.

(…) o Relator Especial lembra a todos os Estados sua obrigação positiva de promover ou facilitar o gozo do direito à liberdade de expressão e os meios necessários para exercer esse direito, incluindo a Internet.

 Um segundo ponto de atenção é que o reconhecimento do acesso à internet como direito humano ocorre sob uma perspectiva diferente de outros tipos de direitos humanos. La Rue considera que “cortar o acesso dos usuários à Internet, independentemente de a justificativa fornecida, inclusive com base na violação de propriedade intelectual lei de direitos, a ser desproporcional e, portanto, uma violação do artigo 19, parágrafo 3, do o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos”. Sendo assim, o raciocínio é de que uma vez que a restrição (feita a partir de uma ação ativa de algum ente, ou seja, uma restrição positiva) ao acesso à internet é uma violação de direitos humanos, o acesso à internet adentra o rol desta categoria jurídica. Ou seja, uma vez conectado, caso um Estado desconecte um cidadão, existe uma violação de direitos humanos, mas caso, desde o início, o cidadão não esteja conectado, não se mobilizar para oferecer o acesso à internet não constitui violação estatal. 

Dando continuidade a este raciocínio, a ONU aprovou em 2016 a Resolução A/HRC/32/L.20, demarcando a importância de diversos debates sobre o acesso à internet e traçando recomendações para os Estados promoverem este direito, posto que é essencial. Na mesma linha do que proposto em 2011, apesar de recomendar aos Estados que concentrem esforços para a promoção do acesso à internet, o que efetivamente a ONU propõe é que, quando elaboradas, as políticas públicas de conectividade sejam desenvolvidas com base em uma abordagem centrada nos direitos humanos. Sendo assim, observa-se que, apesar do reconhecimento do acesso à internet em sentido amplo enquanto direito humano, existe um maior destaque para a não interferência dos Estados e agentes privados quando a situação de conectividade já houver sido alcançada ou então um estímulo a, quando elaboradas, políticas públicas de acesso à internet sejam baseadas em direitos humanos. 

Inclusão digital como meio

A segunda linha argumentativa considera que a inclusão digital não é um direito per si, mas um meio para o alcance de direitos fundamentais e humanos. O argumento principal percebido nesta corrente é baseado na consideração de que a internet é uma tecnologia e colocar o acesso à uma tecnologia associado diretamente a um direito humano seria categorizar erroneamente o fenômeno. Vint Cerf é um dos defensores desta corrente e exemplifica sua proposta: 

Por exemplo, houve um tempo no qual se você não tivesse um cavalo, era difícil ganhar a vida. Mas o direito importante nesse caso era o direito de ganhar a vida, não o direito a um cavalo. Hoje, se eu tivesse o direito de ter um cavalo, não tenho certeza onde o colocaria.

Entretanto, um contraponto ao pertinente argumento de que vincular direitos a tecnologias específicas tem o potencial de torná-los anacrônicos é aquele que direciona os holofotes para as tecnologias da comunicação em geral. Desta forma, ainda que o tipo de tecnologia mude, ainda que a internet se torne ultrapassada, a filosofia e justificativa dos direitos dos cidadãos às TICs continua aplicável. Este raciocínio reflete a ideia do liberalismo igualitário, segundo a qual a igualdade no acesso à comunicação é essencial para as democracias, considerando a importância dos cidadãos tomarem decisões informadas. 

E no Brasil… um direito esvaziado

Apesar das zonas cinzentas e da falta de consonância sobre as bases que justificam a classificação da inclusão digital como um direito, existe certo consenso sobre a inclusão dessa pauta no campo das políticas públicas. No Brasil, o art. 4º, I, do MCI expressamente menciona o direito ao acesso à internet, sendo portanto, direito positivado no Brasil. Entretanto, o acesso à internet seria apenas um dos elementos da inclusão digital. Desta forma, apesar do aparato regulatório de telecomunicações, a inexistência de uma política nacional que estabeleça procedimentos, objetivos e compreensões sobre inclusão digital, faz com que este direito, no Brasil, ainda siga esvaziado e de difícil efetivação. No livro Inclusão Digital como Política Pública: Brasil e América do Sul em perspectiva, alguns pontos mencionados neste texto são aprofundados, então se você se interessou pelo assunto confira o livro lançado pelo IRIS.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Representante do IRIS no Grupo de Trabalho sobre Acesso à Internet e na Força-Tarefa sobre eleições na Coalizão Direito nas Redes (CDR). Membro suplente no Comitê de Defesa dos Usuários dos Serviços de Telecomunicações (CDUST) da ANATEL. Co-autora dos livros “Inclusão digital como política pública: Brasil e América do Sul em perspectiva” (IRIS – 2020) e “Transparência na moderação de conteúdo: Tendências regulatórias nacionais” (IRIS – 2021).

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