Redes comunitárias: a subversão como forma de democratização do acesso à Internet
Escrito por
Nathan Paschoalini (Ver todos os posts desta autoria)
11 de abril de 2022
Foi em 2018 que soube da existência de redes comunitárias de Internet. Essa descoberta ocorreu ao mesmo tempo em que, assistindo ao documentário Freenet, fui confrontado com o fato de que o acesso à rede das redes não é uma realidade para todos os brasileiros, o qual é corroborado, anualmente, pelas pesquisas TIC Domicílios e TIC Educação, produzidas pelo Núcleo de Informação e Comunicação do Ponto BR. (NIC.br). De acordo com os índices produzidos pela última edição da pesquisa TIC Domicílios, cerca de 20% da população brasileira ainda não possui qualquer acesso à Internet, apesar de os dados históricos da pesquisa indicarem que houve melhoras nos últimos anos.
Da desigualdade digital às redes comunitárias
Segundo a pesquisa mencionada acima, em 2020, era estimado que somente 64% dos domicílios de classes sociais menos abastadas (D e E) possuíam acesso à Internet. Esses mesmos dados revelam que o acesso à Internet pela população negra não se dá de forma plena, em especial para as mulheres negras, que acessaram a Internet, exclusivamente pelo telefone celular, em maiores proporções que homens brancos. Assim, é possível afirmar que a desigualdade no acesso à Internet no Brasil possui raça, gênero e classe social.
Tal desigualdade é ainda mais agravada quando se considera as regiões do país e quando se leva em conta as diferenças entre áreas urbanas e rurais. As regiões norte – sobre as dificuldades para a conectividade nessa região, é válida a leitura da pesquisa realizada recentemente pelo Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) em conjunto com a organização Derechos Digitales – e nordeste apresentam os piores índices de acesso à Internet e a computadores, quando comparados com os dados de outras regiões do país. Para além da dimensão regional, os dados sobre o acesso à Internet em áreas rurais revelam a desproporcionalidade no acesso entre populações de áreas urbanas e rurais, uma vez que cerca de 30% da população que vive em áreas rurais não possui acesso à Internet.
O contexto de desigualdades no acesso à Internet emerge, portanto, como uma das razões para que sejam criadas redes comunitárias, como uma forma de subverter a lógica econômica que determina como será distribuído o acesso à Internet, visando tornar tal acesso de fato democrático. Vale dizer, contudo, que a desigualdade no acesso à Internet não é o único motivo que orienta a criação de redes comunitárias, é possível, também, identificar outras motivações, como as de ordem política, que se relacionam com a busca por autonomia dos usuários.
Redes comunitárias: a subversão como método para o acesso à Internet
De acordo com a definição trazida pela I Cúpula Latino Americana de Redes Comunitárias, as redes comunitárias se constituem como uma propriedade coletiva, cuja gestão é feita pela comunidade local, para fins comunitários e sem fins lucrativos. Isso significa que se trata de um movimento que se apoia na participação ativa de comunidades locais em todas as etapas do processo, desde a sua concepção até a gestão democrática de sua infraestrutura, a qual é compreendida como um recurso comum e pertencente a todas as pessoas da comunidade.
Nesse mesmo sentido, a Declaração sobre Conectividade Comunitária, publicada em 2017 pela Coalizão Dinâmica sobre Conectividade Comunitária (DC3), afirma que as redes comunitárias são estruturadas para serem abertas, gratuitas e para respeitarem o princípio da neutralidade da rede. Tais redes, segundo a Declaração, podem ser operacionalizadas somente pela própria comunidade ou em conjunto com outros setores da sociedade, como o setor público, setor privado e a sociedade civil.
Desse modo, é possível verificar que a existência de redes comunitárias subverte a lógica econômica que orienta o atual desenvolvimento da Internet. Originalmente criada como uma forma descentralizada de comunicação, a Internet tem sido direcionada cada vez mais para um ambiente centralizado e que dialoga com a própria economia política da Internet. Segundo o professor César Bolaño, em seu livro Economia Política da Internet, essa forma de comunicação, inicialmente, revolucionária pode ser caracterizada, atualmente, como um ambiente formado por uma complexa teia de atores assimétricos, o que resulta num processo de concentração de poder na Internet, operado por grandes empresas de tecnologia e de telecomunicação.
Bolaño argumenta que essa mudança de paradigma na constituição da Internet está relacionada com o deslocamento da lógica que subsidiava o desenvolvimento da Internet, passando de uma lógica estatal-militar-acadêmica, com intensos investimentos públicos – presente na origem do desenvolvimento daquilo que viria a ser a Internet nos anos 1960 – para uma lógica de mercado, nos anos de 1990, momento em que houve a abertura da Internet e a privatização tanto da infraestrutura quanto do oferecimento de serviço de conexão à Internet.
Nesse sentido, ao posicionar as pessoas frente aos interesses de mercado que norteiam a distribuição dos serviços de Internet, as redes comunitárias usam da subversão como um método para a democratização do acesso pleno à Internet. Contudo, a implementação de tais redes possui diversos desafios.
As redes comunitárias e a insuficiência
Em recente pesquisa desenvolvida pelo IDEC, em parceria com o Instituto Nupef e Artigo 19, sobre as redes comunitárias para acesso à Internet, foram mapeados alguns dos desafios regulatórios que se impõem à constituição de redes comunitárias. Dos quais destaca-se o fato de que o contexto brasileiro de redes comunitárias sofreu uma mudança regulatória significativa, em que se passou de um ambiente de total insegurança jurídica, para um ambiente de insuficiência regulatória, em que há o reconhecimento, pela Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), da possibilidade de sua constituição
Alguns casos brasileiros de sucesso
Apesar dos desafios enfrentados pelas redes comunitárias, especialmente os desafios regulatórios, o Brasil possui três grandes exemplos de como as redes comunitárias podem auxiliar as comunidades locais a se conectarem à Internet. Nesse ponto, me refiro às redes comunitárias implementadas em Taquaritiua, Pifeiros e Penalva, três comunidades indígenas e quilombolas localizadas na região nordeste, no estado do Maranhão.
A implementação se deu com o apoio do Capítulo Brasileiro da Internet Society, que ganhou auxílio financeiro por meio do programa Beyond the Net, conduzido pela Internet Society Foundation. O projeto executado conjuntamente pelo Instituto Nupef e o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, atende a uma população de aproximadamente 500 pessoas.
Políticas públicas e redes comunitárias
Vale destacar, no entanto, que as soluções comunitárias surgem em um contexto em que há um vácuo de políticas públicas que promovam a conexão à Internet em localidades que podem não despertar o interesse econômico de grandes empresas de telecomunicação. Nesse sentido, parafraseando e reiterando o que disse Carlos Afonso, diretor do Instituto Nupef e um dos fundadores da Association for Progressive Communications (APC), nós, ativistas pelos direitos digitais, devemos lutar por políticas públicas que universalizem o acesso à Internet, não só em termos de acesso pleno e de qualidade à rede, mas políticas que se debrucem sobre iniciativas de letramento digital, que nos auxiliarão a lidar com os dilemas impostos por esse (não tão) novo mundo. Enquanto isso, é nosso dever incentivar e auxiliar no processo de expansão das redes comunitárias.
Escrito por
Nathan Paschoalini (Ver todos os posts desta autoria)
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e mestrando pela mesma instituição. Atualmente está pesquisador na Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa e me interesso pelas interseções entre Direito, Economia Política e tecnologias.