Blog

O que a exclusão digital tem a ver com a desinformação no Brasil?

10 de setembro de 2024

A relação entre o contexto de exclusão digital de determinados grupos sociais no Brasil e seus impactos políticos e sociais, especialmente quanto à potencialização da disseminação de desinformação.

 

O cenário do acesso à internet no Brasil ainda é bastante desigual, apesar de tal fato ser mascarado por diversos índices que, aparentemente, dizem o contrário. Conforme evidenciado por diversos estudos ao longo dos últimos anos, as classes mais baixas são as que mais sofrem com problemas técnicos e econômicos para tanto. A ausência de equipamentos para acessar a internet e modelos de franquia de dados e tipos de conexão usados, são alguns desses desafios. 

Ainda que isso reflita em oportunidades digitais desiguais, há também outro problema por trás dessa realidade: a disseminação de desinformação. 

Quer entender a relação entre o contexto de exclusão digital de determinados grupos sociais no Brasil? Neste texto, apresentamos essa questão e seus impactos políticos e sociais, especialmente quanto a potencialização da disseminação de desinformação. 

Chega de exclusão digital. A inclusão é um direito! 

O acesso à internet e a inclusão digital podem ser entendidos como direitos básicos e fundamentais, tanto como direitos per si, como por meios para a efetivação de outros direitos humanos

No Brasil, conforme previsto no art. 7º da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), o acesso à internet é um meio essencial ao exercício da democracia. Também já foi aprovada pelo Senado Federal a PEC 47/2021, que elenca a inclusão digital no rol de garantias fundamentais, o que demonstra o interesse público em evidenciar a importância do acesso ao universo digital na atualidade

Os dados sobre o acesso à internet no Brasil, se analisados superficialmente, evidenciam uma realidade inclusiva que, na prática, não existe. Apesar do índice alto de domicílios que acessam a internet, a qualidade do acesso é discrepante entre classes, regiões e grupos sociais. Parte da população não dispõe de infraestrutura complexa que possibilite, por exemplo, a realização de atividades escolares e o estudo ou trabalho à distância. Nas palavras de Flávio Storino, coordenador da pesquisa da TIC deste ano,

“quando cruzamos os indicadores de atividades realizadas na internet e as habilidades digitais com o dispositivo de acesso, nota-se uma grande diferença de aproveitamento das oportunidades digitais por aqueles que acessam a rede exclusivamente pelo telefone celular”. 

No texto da lei 12.965/2014 é afirmado que a disciplina do uso da internet tem por objetivo a promoção do direito de acesso à internet a todos, assim como do acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos, tendo como fundamento os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais (art. 2º, inciso II, e art. 4º, I e II do Marco Civil). 

Exclusão digital não se resolve apenas com conexão à internet

Conforme levantamento já mencionado da TIC Domicílios, em 2023, 84% dos domicílios brasileiros contavam com acesso à internet. Em 2008, os usuários eram apenas 34% da população. No entanto, a qualidade do acesso não é uniforme nas diversas regiões do país: enquanto na região Sul 72% dos usuários utilizam a internet por cabo ou fibra óptica, na região Norte, 27% da população acessa a internet por dados móveis. 

Além disso, hoje em dia, 58%  da população brasileira realiza o acesso exclusivamente por meio do celular, sendo o plano pré-pago a forma de contratação de 60% desses usuários. Ao utilizá-lo, o usuário paga um valor que o possibilitará usar certa quantidade de créditos durante certo período. Quando o saldo se esgota, o acesso é cortado imediatamente. Segundo dados fornecidos pela campanha #LiberaMinhaNet, articulada pela Coalizão Direitos na Rede (CDR) em parceria com o IRIS e Data_labe, devido à utilização predominante desse modelo de franquia de dados, pessoas das classes C, D e E têm acesso à internet por apenas 23 dias do mês, em média

Além disso, devido à prática do uso de tarifas-zero, ou “zero rating”, parte significativa dos usuários têm o acesso restrito a sites e aplicativos específicos, que mesmo após o esgotamento dos créditos de internet podem ser utilizados.. 

Assim, percebemos que apesar do suposto alto grau de conectividade apresentado pelos dados de domicílios com acesso à internet, os direitos ao uso da rede de forma democrática, inclusiva e eficiente ainda não foram efetivados. 

Mas o que é o “Zero rating”, então? 

Com os pacotes de dados móveis, criou-se uma grande estratégia comercial: a concessão de acesso gratuito a determinados aplicativos, ou seja, a uma “tarifa zero”, após o esgotamento dos créditos adquiridos. Assim, os consumidores de determinados planos telefônicos não observariam a diminuição do pacote de dados móveis para utilização pelo plano ao utilizarem aplicativos pré-determinados. Contudo, ainda que essa pareça uma forma de ampliar esse acesso, na verdade, a existência desse modelo de comercialização é extremamente prejudicial, tanto que até a União Europeia proibiu esse modelo em seus países

Para trazer isso para o Brasil, vale ressaltar que mais da metade dos brasileiros acessa a internet exclusivamente pelo celular – razão pela qual a internet móvel é o cerne desse acesso. Desde 2016, as operadoras brasileiras realizam cortes no acesso do usuário quando o pacote (limitado) de dados acaba. No entanto, aí que fica o pulo do gato: os aplicativos “zero rated” permanecem disponíveis para uso. 

O problema está justamente nos aplicativos que participam desses acordos comerciais: a maioria esmagadora é de aplicações da Meta, onde tem acontecido a  maior propagação de desinformação nos últimos tempos. A relação é, na verdade, bastante simples:

“quando acessamos uma informação nessas redes sociais sem termos como confirmar se é verdade, por vezes, o objetivo de quem cria e dissemina desinformação é alcançado.” 

Essa prática vai contra o princípio da neutralidade da rede, positivado, dentre outros, nos arts. 3º, IV e art. 9º do Marco Civil da Internet:

 

IV – preservação e garantia da neutralidade de rede; 

Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por 

conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. (destaques acrescidos) 

Dessa forma, a discussão sobre esse problema e elaboração de meios de assegurar o equilíbrio entre a oferta de acesso à internet de maneira sustentável tanto às operadoras quanto à população – que precisa do serviço até mesmo para a realização de atividades básicas, como comunicação com parentes – e o acesso à informação confiável é urgente. 

O Zero Rating como obstáculo ao combate às fake news

Existem múltiplos fatores intrinsecamente associados ao uso de plataformas digitais e da internet, no geral, que propiciam a disseminação de desinformação: o sistema de recomendação de conteúdos, a utilização de publicidade política paga por partidos e movimentos políticos, o uso estruturado de “bots”, dentre outros. A violação à neutralidade de rede, que o zero rating discutido nesse artigo propicia, que discutimos é um desses fatores.

Ao não conseguirem acessar navegadores de web, os usuários não conseguem pesquisar livremente sobre o conteúdo que acessam nas redes sociais, inclusive verificando a veracidade das informações recebidas. Observando o grande número de brasileiros que vivem essa realidade, percebe-se que esse cenário cria graves entraves ao exercício da democracia, uma vez que parte importante do eleitorado (aproximadamente 80 milhões de pessoas), fica sujeita ao poder de mercado de gigantes do mundo das BigTechs, especialmente dos aplicativos grupo Meta (Facebook, Whatsapp e Instagram) e às informações veiculadas por eles.

Dessa forma, a discussão sobre esse problema e a elaboração de meios de assegurar o equilíbrio entre a oferta de acesso à internet de maneira sustentável tanto às operadoras quanto à população  – que precisa do serviço até mesmo para a realização de atividades básicas, como comunicação com familiares – e o acesso à informação confiável se faz de extrema urgência. 

O caminho para a inclusão: como chegar lá?

Hoje, a internet é não apenas um meio de comunicação, mas também ferramenta de pagamentos e utilização de bancos digitais, promoção do trabalho remoto, educação à distância e para o oferecimento de serviços públicos. Também é crucial para o acesso a informações midiáticas e jornalísticas e promoção do conhecimento. Nesse cenário, urge a necessidade de políticas públicas que efetivamente combatam as desigualdades regionais e sociais que permeiam esse acesso, para que o uso da internet possa se concretizar como meio para exercício de direitos fundamentais e como direito fundamental por si só. 

Além disso, o combate às práticas do zero-rating é essencial para a garantia da neutralidade de rede e consequente mitigação de seus impactos políticos negativos, como a disseminação de desinformação e a restrição à capacidade do usuário de realizar pesquisas. Isso deverá se dar por meio de normas regulatórias e fiscalizadoras que, até a atualidade, não foram propostas.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *