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O Instagram está mudando a arte?

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16 de agosto de 2021

O Instagram é uma rede social que dispensa apresentações. Focada no compartilhamento de imagens, a plataforma possui mais de 1 bilhão de usuários ativos mensais e cerca de 500 milhões de usuários ativos diários. Dada a natureza imagética da rede social, diversos artistas a utilizaram e utilizam como forma de divulgação do seu trabalho, de interação entre eles e sua audiência e até mesmo como meio de venda. A ideia desse breve artigo de opinião é pensar de quais formas essa relação quase simbiótica entre Instagram e o mundo da arte acarreta transformações nas obras de uma forma geral.

O mercado da arte nas redes sociais

Há algumas vantagens autoevidentes em expor sua produção artística nas redes sociais, principalmente no Instagram. Primeiramente, como já exposto, é uma ótima oportunidade para que artistas possam interagir “diretamente” com sua audiência ou público. Esse engajamento permite ao artista não só o acesso às críticas hipoteticamente mais espontâneas (em vista de um mercado tradicional que conhecidamente lida com diversos interesses econômicos e políticos muitas vezes departados da avaliação crítica), como também a exibição do processo de confecção ou construção da obra. No caso das instalações de arte ou até mesmo da arte performática, as redes sociais são um canal não só de amplificação do alcance, como também de ampliação das possibilidades de diálogo e entrosamento do leitor com a obra via mensagens, comentários e, até mesmo, uso das funções específicas aos meios digitais.

Ainda sobre a amplificação do alcance, a exposição de obras artísticas por meios ortodoxos está geralmente limitada espacial e temporalmente: são necessários uma galeria ou museu dispostos a sediar por um tempo finito a exposição às vistas dos críticos e potenciais compradores. Artistas que vivem distantes das grandes “Mecas culturais” – basicamente as capitais – estão inevitavelmente menos propensos a serem enxergados e descobertos. Não estar preso aos interesses de grandes galerias e museus concebe uma liberdade maior sobre o objeto da arte em si: não é necessário se render às pressões estéticas e temáticas do ciclo seleto de curadores com contatos distintos e privilegiados.

Quem decide a interpretação certa?

Artistas são pessoas e estão suscetíveis às mesmas armadilhas que todos. O documentário disponível para streaming na Netflix, “O Dilema das Redes Sociais” – sobre o qual já escrevi em outra oportunidade -, acertadamente aponta toda ciência, design e engenharia cognitivo-comportamental que está envolvida na construção das diversas funcionalidades presentes nas diferentes redes sociais. O sistema de recompensa por meio dos likes aciona a mesma onda de dopamina em artistas, no entanto ao invés de estar relacionada especificamente à exposição do corpo ou de um modo de vida, está intrinsecamente ligada ao produto do trabalho artístico. A arte é transformada em um simples commodity entre as diversas propagandas direcionadas e os impulsionamentos meticulosamente calculados para prender o usuário à plataforma.

Sobre a interação entre artistas e seu público ou audiência, vale dizer que a organização e disposição de conteúdo nas redes sociais não é aleatória e muito menos neutra. As redes de conexões que os posts configuram tendem a estar emparelhadas entre pares, ou seja, entre pessoas que “fazem parte da mesma bolha”. Isso porque as redes sociais entendem engajamento, positivo ou negativo, como a ação de comentar, salvar e curtir. O que isso acarreta é que as opiniões entendidas enquanto diálogo espontâneo entre autor e audiência costumam se concentrar entre parabenizações efusivas e críticas duras e nada construtivas. Não há tanto diálogo quanto há uma retroalimentação algorítmica.

Ainda sobre a questão dos artistas, também é observável um fenômeno de pessoalização: a arte vale pela celebridade que a expõe. Naquilo que tange a posição da celebridade dentro do modo de produção capitalista, é interessante acompanhar a discussão feita pelo Senhorita Bira, dono do canal “O Algoritmo da Imagem”, no qual ele destrincha de forma didática como valores, ideias e, principalmente, produtos são vendidos a partir dessas personas. No entanto, na discussão proposta nesse texto, interessa de que forma essa pessoalização influi diretamente sobre a capacidade interpretativa do público. Quando o autor se torna celebridade, ou seja, reifica (transforma em mercadoria) a si mesmo, sua capacidade de fixar uma interpretação única em torno da obra aumenta exponencialmente. Isso se deve a assimetria de poder entre ele e o público. É contra essa autoridade que Roland Barthes lutava em seu texto seminal, “A Morte do Autor”, quando argumenta que todos os sentidos do texto se encontram no leitor. Isso significa que a palavra do autor não tem – ou não deveria ter – poder de limitar os significados do texto, visto que uma obra não é produto de uma consciência singular e ahistórica, e sim um produto voluntário – e em sua maior parte involuntário – de um contexto social, político, cultural e temporal.

O significado também é uma arena de disputa e artistas controversos com agendas muito bem definidas, como Ai Weiwei (notório artista emigrante da China com um discurso que coincide com as noções norte-americanas de “repressão e censura” no gigante socialista asiático), sabem muito bem aproveitar disso quebrando vasos milenares chineses e postando em seus stories do Instagram. Cercear a liberdade interpretativa por meio da autoridade é também limitar a capacidade de imaginar novos mundos possíveis.

Se não é instagramável, não vale a pena

Diversos espaços autodeclarados como “museus” têm aparecido em cidades dos grandes centros do capital, como o Museu dos Sentimentos, o Museu do Sorvete ou o Museu das Selfies. Esses espaços não constituem museus de fato – ou ao menos não constituíam, posto que o significado dessa instituição está também em disputa – em vista de que o objetivo dos museus historicamente é menos relacionado a exposição e mais a conservação, proteção e disponibilização de objetos artísticos ou não com um valor distinto para a humanidade (destino óbvio e problemático quando se tem em mente o legado colonial dessas instituições); no entanto isso não diminui o protagonismo que esses novos locais assumem na transformação da experiência do grande público com obras artísticas. Eles são ao mesmo tempo agente catalisador e sintomas da mudança do enquadramento que se dá a essas obras.

A construção de salas interativas em museus, ou seja, de instalações artísticas, data da década de 1960. Há diversos espaços onde essa forma de arte ainda é prevalente, como no maior museu a céu aberto do mundo, Inhotim. Entretanto, essa relação direta de imersão em uma instalação artística não era mediada necessariamente pela presença do corpo enquanto parte da obra – ou não se pensava que fosse -. Museus, até muito recentemente, tinham uma relação espinhosa com fotografia: para fins de conservação de obras fotossensíveis e proteção dos direitos autorais, o ato de tirar fotos era proibido

O fim dessa política vem abruptamente – e principalmente a partir de museus privados – com a percepção de que sem as fotos, manter um fluxo constante de visitantes seria muito difícil. O resumo é que aquilo que se dava como uma especificidade da fruição de instalações artísticas (a imersividade e a interatividade) se torna uma experiência quase que obrigatória em qualquer exposição. A ação de fotografar, nesse caso, imputa no corpo do visitante uma centralidade para o proveito da arte e força um enquadramento específico (1080 x 1080 pixels) no qual grandes painéis, esculturas e outras formas artísticas não tem espaço.

É interessante apontar como esse fenômeno tem direcionado curadores para a construção de exibições cada vez mais selfie-friendly e menos encorajadoras de formas mais “tradicionais” de arte. A exibição Wonder na Galeria Renwick, por exemplo, trouxe mais pessoas em seis semanas do que o volume de visitantes durante o ano anterior inteiro. A amostra de 2015 do National Building Museum intitulada “The Beach” trouxe 30% do público anual do museu em apenas dois meses. Quando o Hirshhorn levou à exposição por três meses os Espelhos Infinitos da artista japonesa Yayoi Kusama (autora das famosas bolas prateadas de Inhotim), o programa de afiliação do museu cresceu pelo fator impressionante de 6556%.

Com o advento da pandemia, mais museus têm apostado nas redes sociais, principalmente no Instagram, como forma de interação e de fidelização do público. Isso definitivamente desloca as premissas de conservação e proteção de artefatos com valor inestimável (como o caso do falecido Museu Nacional brasileiro, vítima de um incêndio consequente do descaso do Estado), imprimindo centralidade nas noções de exposição e, portanto, de lucro aos museus. Há de se pensar melhor quais os impactos dessa digitalização de acervo enquanto medida de exposição da arte em tempos de isolamento.

Tem forma certa?

Não é a intenção desse texto encerrar a discussão em torno da relação entre a produção artística e as redes sociais, destacadamente o Instagram. A discussão aqui exposta não é valorativa: as formas de fruição mudam a depender do sujeito e contexto sócio-histórico assim como o fazer da arte também se altera morfológica e semanticamente. A ideia é que tirar fotos de obras de arte para postá-las no Instagram definitivamente tem uma influência maior do que se dá crédito sobre as formas de interpretação, enquadramento e experiência viva das mais diversas obras de arte. Isso sem discorrer sobre aquilo que diz respeito aos problemas de direito autoral ou exclusividade de acervo. As maneiras pelas quais as redes sociais se prestam a lidar com essas questões perpassam inescapavelmente dilemas de moderação de conteúdo. Nesse sentido, recomenda-se a leitura de outro blogpost de minha autoria no qual se debate a forma como as redes sociais têm lidado com manifestações artísticas queer de forma mais incisiva e problemática. 

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Aluno de graduação em ciências sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais e integrante do projeto de pesquisa voltado a investigação da inclusão digital. Já esteve envolvido com projetos referentes a comunicação política, educação e patrimônio cultural imaterial. Atualmente se dedica aos estudos culturais.

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