Neutralidade de rede e provedores de conexão nos EUA
Escrito por
Odélio Porto Júnior (Ver todos os posts desta autoria)
23 de maio de 2017
Mudanças na era Trump?
Desde a eleição de Tump nos EUA tem se discutido uma forte possibilidade de mudança nas regras de neutralidade de rede instituídas no mandato de Barack Obama pela Federal Communications Commission (FCC) em 2015. Essa mudança traz profundos impactos para os atores envolvidos na governança da internet, afetando usuários, provedores de conexão e empresas de aplicações online. Apesar de afetar principalmente cidadão americanos, a influência dos EUA como potência econômica, principalmente na área da internet, pode influenciar outros países a adotarem modelos semelhantes, por isso a importância de se estar atento a regulação naquele país.
Assim neste texto explicaremos como os provedores de conexão de internet foram regulados nos EUA, quais a regras de neutralidade de rede foram implementadas pela FCC e quais mudanças se espera que ocorram em 2017.
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Federal Communications Agency (FCC)
A FCC é uma agência federal independente estadunidense, cujo objetivo é regular as comunicações realizadas por radio, televisão, fios e satélite. Ela é responsável por determinar regras para o setor além de aplicar as leis estadunidense sobre comunicação.
A administração de Barack Obama, em seu segundo mandato, defendia que a internet deveria ser classificada pela FCC como um bem público essencial. Desse modo os provedores de conexão seriam considerados transportadores públicos (common carriers), ficando assim submetidos a uma maior regulação por parte da FCC.
O conceito de common carrier se origina no direito romano e evoluiu, no common law, durante o séc XIX e XX com o surgimento de novos serviços públicos como as ferrovias e os serviços de telefonia. As regulações destinadas a esse tipo de serviço buscam proteger o consumidor exigindo que as empresas prestem o serviço a todos de forma não-discriminatória.
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A regulação da internet nos EUA entre 1990 e 2015
A Lei de Telecomunicações dos EUA (Telecommunications Act of 1996) estabelece diferentes categorias de regulação para os meios de mídia. De importância para o debate da neutralidade são categorias Title I e Title II da lei.
Na categoria Title I a regulação é mais branda, sendo limitado o nível de supervisão cabível à FCC, e a essa categoria aplicam-se os serviços de informação americanos (information services). Um serviço de informação, de acordo com a definição legal, é aquele que oferece a capacidade para gerar, adquirir, armazenar, transformar, processar, recuperar, utilizar ou tornar disponível informações via telecomunicações.
Em contrapartida na categoria Title II a regulação é mais restrita, dando maiores poderes de supervisão à FCC, a essa categoria aplicam-se os serviços de telecomunicação. Um serviço de telecomunicação é aquele que transmite, entre pontos especificados pelo usuário, informações escolhidas pelo usuário, sem modificação de forma ou conteúdo da informação a ser enviada e recebida.
Durante fins dos anos 90 até 2015 o serviços de conexão de internet de modo geral foram classificados pela FCC como serviços de informação, sendo assim eles não estavam submetidos às regulações mais restritas aplicadas aos “common carriers”. A FCC justificou esse posicionamento afirmando que uma maior regulamentação para internet poderia sufocar as inovações e a concorrência desse setor. Tal justificativa começa a ganhar corpo como parte de um movimento de desregulamentação econômica mais amplo nos Estados Unidos da déc. de 90. Nesse período outro setores, como o da área de transportes (ferroviário, aviário, entre outros), também perderam a classificação de common carriers com o objetivo de se estimular a concorrência.
Os provedores de internet deveriam ser categorizados com Title II?
Diversos atores envolvidos com a governança da internet criticavam a desregulamentação dos provedores de conexão. Argumentava-se que uma regulação branda prejudicava os consumidores pois, na realidade inibia a concorrência entre os provedores, o que gerava na prática oligopólios ou até mesmo monopólios nos serviços de provimento de conexão. Os dados da FCC de 2013 mostram que para altas velocidades os domicílios americanos possuíam somente uma ou nenhuma opção de provedor:
Além disso haviam acusações de que certos provedores de conexão estavam se utilizando de práticas anti-competitivas ao diminuir a velocidade de conexão ou mesmo bloquear o acesso de consumidores a determinados sites e serviços. Em um caso notório o provedor de conexão Comcast estava dificultando o acesso de seus consumidores ao serviço BitTorrent, devido ao fato deste concorrer com seu serviço de vídeo sob demanda. Apesar da FCC ter tentado inibir essa práticas o judiciário americano julgou em 2010 a favor da empresa Comcast devido ao fato de a FCC não possuir competência para interferir, devido à classificação de Title I dada aos provedores de conexão.
A FCC, em 2010, seguindo uma linha pró neutralidade de rede que já se esboçava nos seus 4 príncipios de uso da internet de 2005, aprovou a Open Internet Order. Esse conjunto de regras de neutralidade de rede estabelece duas categorias de provedores de conexão, banda-larga de linha fixa (broadband) e wireless, estabelecendo que o primeiro deveria se submeter a rígidas regras de neutralidade de rede.
A Open Internet Order estabelecia 3 regras básicas de neutralidade de rede:
- Transparência: os provedores fixos e móveis devem ser transparentes quanto às suas práticas de administração de redes, termos e condições de uso, e características de performance dos seus serviços
- Proibição de bloqueio: Provedores de banda larga fixa não podem bloquear conteúdos, aplicações, serviços, e dispositivos que não representam risco de dano, se eles estiverem em conformidade com a lei. E não podem bloquear aplicativos que concorram com serviços do provedor fixo de vídeo, voz e telefonia.
- Proibida a discriminação não justificada: provedores de banda larga fixa não podem discriminar injustificadamente na transmissão do tráfego de dados legal nas redes.
Contudo a FCC não conseguia aplicar na prática esses dispositivos aos provedores de conexão devido a sua classificação de Title I. Além do caso Comcast v. FCC, em 2014 a U.S. Court of Appeals for the D.C District revogou a Open Internet Order, com a mesma justificativa de que a FCC não tinha autoridade para regular provedores de conexão.
Assim em 2014 a FCC alterou sua estratégia de regulação mais branda em relação aos provedores de conexão e passa a iniciar um processo decisório de reclassificação para Title II . Esse processo, com apoio da gestão Obama, se encerra em 2015, mudando-se os provedores fixos e móveis de banda-larga para a categoria II. Além disso as regras do Open Internet Order de 2010 são complementadas com novas normas.
Foi adicionado a proibição de prejudicar ou degradar o tráfego de internet sem que haja justificativas razoáveis de administração da rede. E, foi expressamente proibido a priorização paga de determinados tráfegos de dados.
Era Trump
Com a eleição do republicano Donald Trump foi indicado como diretor da FCC Ajit Pai, um opositor das regras de neutralidade em vigor. Desse modo iniciou-se em 2017 um novo processo de consulta pública, semelhante ao de 2015, para avaliar modificações na neutralidade de rede estadunidense.
Uma das principais propostas de Ajit é voltar à regulação mais branda aos provedores de banda larga, re-categorizando-os como Title I. Ele justifica a mudança afirmando que houve grande queda nos investimentos de infraestrutura de rede, sendo necessário um menor regulação para estimulá-los.
A proposta também busca discutir se a regulação ao provedores deve ser feita a priori (ex ante) ou a posteriori (ex post). Além disso será discutido se as regras de neutralidade de rede de 2015 serão mantidas, modificadas ou eliminadas.
Porém há fortes argumentos em prol das regras atuais, afirmando que elas garantem tanto a inovação como o bem estar do consumidor. Como afirma o advogado e pesquisador Tim Wu as regras de neutralidade de rede estão fortemente associadas à países democráticos, garantindo a liberdade de expressão e uma sociedade aberta através da proteção do livre fluxo de informações.
Desse modo, espera-se que hajam intensos debates esse ano. A FCC irá receber comentários até 16 de agosto de 2017. E, é bem provável que o resultado desse processo influencie as regras de neutralidade de outros países.
Escrito por
Odélio Porto Júnior (Ver todos os posts desta autoria)
Pesquisador do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, graduando em direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Cursou dois anos de ciência política na Universidade de Brasília. Membro do GNet. Foi membro da Clínica de Direitos Humanos (CDH) e da Assessoria Jurídica Universitária Popular (AJUP), ambos da UFMG.
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