MPMG propõe medidas de adequação da prática de coleta do CPF em drogarias
Escrito por
Davi Teofilo (Ver todos os posts desta autoria)
3 de dezembro de 2018
No dia 26 de Junho o Instituto de Referência em Internet e Sociedade ofereceu uma representação ao MPMG buscando maior transparência na prática de coleta do CPF em redes de drogarias atuantes em Belo Horizonte e outras cidades do Estado de Minas Gerais. O fornecimento frequente desse dado no ato da compra tem como alegada contraprestação ao consumidor a atribuição de descontos em produtos vinculados a uma promoção. O forte apelo por atrativos e descontos, contudo, diz muito pouco ao consumidor. Do inofensivo “Qual teu CPF, Sr/Sra?” ao canhoto impresso com reduções nos preços de alguns produtos, as farmácias se articulam diante de estratégias de concentração de informações valiosas e sensíveis diretamente extraídas de seus clientes.
O IRIS já publicou um texto, que pode ser lido aqui, sobre os riscos da prática e quais as demandas legais que foram solicitadas ao MPMG e destinadas a obter maiores esclarecimentos sobre a relação entre redes de drogarias e a coleta de dadas. O teor completo da representação oferecida ao MPMG pode ser acessada aqui.
Atuação do Ministério Público de Minas Gerais
Importante observar que atualmente dois procedimentos administrativos seguem em curso no MPMG. A investigação preliminar de número 0024.18.010995-1, que tramita perante a Promotoria de Justiça do Consumidor de Belo Horizonte – MG busca avaliar possíveis violações de direitos nas drogarias Raia, Pague Menos, Pacheco e Onofre e segue em fase de investigação. Outro processo administrativo segue em tramitação com o número 0024.18.002027-3, e, em audiência realizada no dia 18 de Setembro de 2018 entre o Ministério Público e uma das redes de farmácias (Drogaria Araujo), foi proposto pelo MP um Termo de Ajuste de Conduta (TAC). O TAC é um acordo típico para solução extrajudicial de conflitos que o Ministério Público celebra com pessoas jurídicas que tenham violado determinado direito coletivo. Ele objetiva impedir a continuidade da situação de ilegalidade por parte da entidade infratora, reparar o dano ao direito coletivo e evitar uma ação judicial, que pode ser proposta em caso de não assinatura, descumprimento ou cumprimento irregular do acordo.
O TAC está previsto no § 6º do art. 5º da Lei 7347/85 e no art. 14 da Recomendação do CNMP nº 16/10:
Art.5, § 6°: Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.
Art. 14: O Ministério Público poderá firmar compromisso de ajustamento de conduta, nos casos previstos em lei, com o responsável pela ameaça ou lesão aos interesses ou direitos mencionados no artigo 1º desta Resolução, visando à reparação do dano, à adequação da conduta às exigências legais ou normativas e, ainda, à compensação e/ou à indenização pelos danos que não possam ser recuperados.
Bases Legais
Mesmo que a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709) ainda não esteja em vigor, é errôneo afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro não possui dispositivos legais que garantam, ainda que de maneira esparsa, a proteção dos dados pessoais e a proteção do consumidor nas relações de consumo envolvendo o uso de dados pessoais. Abaixo são elencados alguns dispositivos legais que foram utilizados como base legal para a representação:
Marco Civil da Internet – Proteção de dados pessoais dos usuários de internet: artigos 3º, II e III; 7º e 8º do Marco Civil da Internet (Lei n° 12.965/2014); Necessidade de transparência sobre produtos e serviços, bem como sobre a finalidade para a qual os dados são coletados : artigos 7°, VI, VIII e XI do Marco Civil da Internet;
Código de Defesa do Consumidor – Proteção dos dados pessoais dos consumidores: artigos 6º, III e IV; 8º, 12, 43 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) e artigo 39, V;
Proteção contra a discriminação; e harmonização dos interesses dos participantes nas relações de consumo: artigos 4°, III, e 6°, II, do Código de Defesa do Consumidor;
Proteção dos dados pessoais de consumidores que realizam compras online de produtos farmacêuticos e proibição do uso de dados pessoais para promoção, publicidade e propaganda: artigo 59 da Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa – RDC nº 44 de 17/08/2009;
Tutela do consumidor quanto às suas informações de adimplemento e para a formação de histórico de crédito em bancos de dados por gestores e sistemas de credit scoring (Lei nº 12.414/2011);
Dessa maneira, são evidentes os inúmeros dispositivos setoriais que englobam normas de proteção de dados, mesmo que ainda não possuamos unificação entre essas normas até a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados em 2020. Esses dispositivos esparsos podem ser bases legais para ações que busquem a proteção no uso de dados pessoais no Brasil.
Com a crescente economia de dados e novas formas de uso, processamento e armazenamento de dados pessoais, é imprescindível atenção aos mecanismos já existentes no ordenamento, para que seja possível garantir direitos até a entrada em vigor da nova legislação.
Diversas ações têm sido tomadas pelo Ministério Público de outros estados, como pela Comissão de Proteção de Dados Pessoais do MPDFT, em casos como – In Loco, Boa Vista SCPC, C&A, Netshoes e UBER. Esses casos refletem a crescente atenção da sociedade e do Ministério Público para casos envolvendo a economia de dados e todo seu ecossistema. É com base nesse entendimento que o Instituto de Referência em Internet e Sociedade ofereceu representação ao MPMG: demandar maior transparência e informações sobre a finalidade da coleta e uso dos dados pessoais em drogarias. Trata-se de medida, portanto, que busca proteger os consumidores em relações envolvendo suas informações pessoais, que não se resumem a inofensivos dados de CPF no caso de farmácias em rede.
Após a audiência, a ata da reunião foi disponibilizada e, em sua análise jurídica para aplicação das medidas, o Ministério Público levou em consideração os seguintes dispositivos do direito brasileiro para avaliar a violação de direitos advinda da prática:
“CONSIDERANDO que a defesa do Consumidor é direito fundamental (CF, Art. 5º, inciso XXXIII) e princípio da Ordem Econômica (CF, art. 170, inciso V);
CONSIDERANDO a natureza cogente das normas do Código de Defesa do Consumidor, de ordem pública e interesse social, na forma do artigo 1º da Lei 8078/90;
CONSIDERANDO que a relação de consumo tem como objetivo a transparência e harmonia das relações de consumo (Lei nº 8078/90, artigo 4º, caput);
CONSIDERANDO o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor do consumidor no mercado de consumo, na forma do artigo 4º, inciso I, da Lei nº 8078/90;
CONSIDERANDO que a relação de consumo se baseia na boa-fé e no equilíbrio entre consumidores e fornecedores (Lei nº 8078/90, artigo 4º, inciso III);
CONSIDERANDO que o dever de informação é direito básico dos consumidores, compreendendo a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços (Lei nº 8078/90, artigo 6º, inciso III);
CONSIDERANDO que oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados (Código de Defesa do Consumidor, art. 31).
CONSIDERANDO que o consumidor tem direito de acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre suas respectivas fontes; e que sua abertura deve ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele (CDC, art. 43, caput e §2º);
CONSIDERANDO que constitui infração administrativa deixar de comunicar, por escrito, ao consumidor a abertura de cadastro, ficha, registro de dados pessoais e de consumo, quando não solicitada por ele (Decreto Federal nº 2.181/97, art.13, inciso XIII);
CONSIDERANDO que os órgãos públicos legitimados para propor ação civil pública, entre os quais o Ministério Público, poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de conduta às exigências legais, mediante cominações, que terão eficácia de título executivo extrajudicial, nos termos do parágrafo 6º do artigo 5º da Lei nº 7347/85 e artigo 82, inciso I da Lei nº 8078/90.
CONSIDERANDO que o fornecedor está disposto, independentemente de discussão do mérito da questão ora acordada e do reconhecimento de qualquer irregularidade porventura ocorrida, a buscar o aprimoramento no oferecimento de produtos e serviços e a harmonia na relação de consumo através da observância dos direitos básicos do consumidor”.
O documento em inteiro teor pode ser acessado AQUI.
Termo de Ajuste de Conduta: o que significa?
Após diversas investigações e denúncias realizadas por consumidores, o MPMG realizou uma audiência com uma das redes de drogarias com o objetivo de oferecer um Termo de Ajuste de Conduta. O TAC é mecanismo extrajudicial para a resolução de conflitos de interesses difusos, socioambientais e de natureza econômica. Esse instrumento foi criado e sua aplicação foi prevista no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e posteriormente implementada no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), que buscou ampliar sua aplicabilidade aos demais conflitos de natureza difusa, trazendo alterações na Lei da Ação Civil Pública para admitir aos órgãos públicos ter eficácia na proteção dos interessados e no compromisso de ajustamento de condutas de empresas às exigências legais, tendo esse termo a eficácia de título executivo extrajudicial.
O objeto do Termo de Ajuste é a adequação de alguma conduta às exigências legais, observadas as condições específicas da adequação, tempo e lugar do cumprimento da obrigação, visando atenuar os efeitos danosos causados pela conduta do interessado ou prevenir sua continuidade. Tais condições estabelecidas no termo devem ser possíveis de fato, juridicamente e economicamente, de modo a possibilitar sua aplicação.
Dessa forma, o MPMG ofereceu um Termo de Ajuste de Conduta sobre a prática de coleta de CPF por rede de drogaria, demandando as seguintes adequações do programa de descontos:
- O pagamento de título de reparação ao consumidor potencial o valor de R$ 635.333,33 (Seiscentos e trinta e cinco mil trezentos e trinta e três reais e trinta e três centavos) à conta do Fundo Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor – FEDPC;
- Instaurar sistema de registro prévio no site ou presencial, buscando o cadastro de consumidores que queiram aderir ao sistema de descontos. Ou seja, que ao invés do simples pedido do CPF, que seja criado um sistema prévio para aqueles que tem legítimo interesse em aderir ao programa;
- Informar prontamente aos consumidores, no ato do cadastramento, os termos e condições do referido programa de vantagens, ficando condicionada a efetivação do cadastro à aceitação dos mesmos pelo consumidor;
- Identificar, nas etiquetas de ofertas de produtos com desconto, os dizeres “Desconto exclusivo para participantes do programa X”;
- Possuir os termos e condições do programa de vantagens de forma impressa em todos os estabelecimentos, para consulta dos consumidores;
- Informar de forma clara e visível, por meio de placa afixada na área dos caixas dos estabelecimentos comerciais, que as promoções e os descontos ofertados na drogaria só serão aproveitados pelos consumidores que possuírem cadastro no programa de vantagens, mediante identificação dos mesmos pela informação do número do Cadastro de Pessoas Física no ato da compra.
- A vedação da utilização de dados pessoais dos consumidores para fins diversos daqueles previstos nos termos e condições do programa de vantagem, que devem se limitar à identificação dos consumidores aderentes ao programa no momento do cadastro e quando da sua ativação para fins de percepção de descontos/promoções ao realizar compra na rede de drogaria.
- Fica vedado a solicitação ao consumidor de seu número no Cadastro de Pessoas Física (CPF) de forma genérica, devendo a abordagem dos atendentes/caixas ser feita no sentido de questionar ao consumidor se ele participa ou não do programa de vantagens, para, só em caso afirmativo, indagar se o consumidor deseja informar seu CPF como forma de identificá-lo.
Na mesma ata de audiência o MPMG também estabelece uma tabela de cálculo multa que leva em consideração os seguintes aspectos: I) Receita bruta da empresa; II) Porte da empresa III) Natureza da infração IV) Vantagem obtida. Esses cálculos podem ser utilizados como base para eventual cálculo de multa em Ação Civil Pública (ACP).
Desafios e perspectivas
O Termo de Ajustamento de Conduta é uma medida extrajudicial proposta pelo MP, que é de extrema relevância no ordenamento jurídico brasileiro, possuindo como ponto positivo a solução de conflito sem a necessidade de acionar os tribunais judiciais.
Por meio deste termo, o órgão legitimado à ação civil pública, no caso o MPMG, propõe ao causador do dano, ainda que em potencial de interesses difusos, interesses coletivos ou interesses individuais homogêneos, o compromisso de adequar sua prática às exigências da lei, no caso, o Código de Defesa do Consumidor. Na seara dos Ministérios Públicos Federal e Estadual, os TACs são compromissos assinados pelas partes que se comprometem, perante o Promotor de Justiça, a cumprirem determinadas condições, objetivando resolver o problema que estão causando e/ou compensar os danos e prejuízos causados.
Devido a sua natureza jurídica, não há obrigação das empresas em assinar o TAC, visto que funciona como alternativa para que a empresa considerada infratora firme o instrumento com o fim de não ser acionada judicialmente. Em matéria de direito coletivo, como é a tutela de direitos do consumidor, a ação após o não firmamento do Termo de Ajuste de Conduta é denominada de “ACP – Ação Civil Pública”, que tramita perante a Justiça e será apreciada por um magistrado, funcionando da mesma forma de uma ação judicial qualquer, sendo que a parte autora é o Ministério Público. Exemplo desse tipo de Ação Civil, que pode ser proposta em distintos foros no Brasil, é o caso da ação proposta pelo Instituto de Defesa Do Consumidor contra empresa que administra o metrô de São Paulo, a Viaquatro, pela coleta de imagens para fins de publicidade .
Por fim, para a conclusão do procedimento administrativo, resta aguardar se ocorrerá ou não o firmamento do TAC entre o Ministério Público de Minas Gerais e a rede de drogarias. Caso contrário, o Ministério Público poderá, dentro de suas atribuições legais, iniciar a abertura de uma Ação Civil Pública onde atuará como parte frente ao judiciário para estabelecer o firmamento da multa calculada.
Prática comum e a criação da ‘cultura de proteção de dados’
É importante reforçar que a questão discutida não diz respeito a apenas uma empresa ou drogaria, mas em relação a diversas redes do setor de drogarias e modelos de negócios que utilizem dados pessoais sem transparência. A prática de coleta de CPFs e outros dados tem sido generalizada, inclusive em outros setores, e deve ser examinada sob os efeitos gerais e coletivos em relação aos dados pessoais coletados e armazenados pelas empresas, sem transparência e conhecimento efetivos para o consumidor a respeito de usos internos ou externos, subsequentes de seus dados.
A transparência e o conhecimento dos titulares dos dados sobre seu emprego, segurança e finalidade são fundamentais para a construção de uma cultura de proteção de dados, que deve ser fomentada no contexto de intensa utilização comercial dessas informações pessoais, como fica claro em campanhas como #seusdadossãovocê, da Coalização de Direitos na Rede.
A atuação do IRIS, que resulta de suas atividades de pesquisa, tem um escopo mais amplo e não se direciona à uma drogaria específica, mas à prática da coleta de CPFs e considera que a atuação do MP deve ir além de uma empresa. Esse primeiro procedimento administrativo de número 0024.18.002027-3 tem como parte apenas uma drogaria. Por outro lado, o procedimento 0024.18.010995-1 abrange outras das principais drogarias que adotam a prática de coleta de CPF em Belo Horizonte.
Tem interesse no tema e quer ver mais materiais sobre o tema? Esses são alguns materiais coletados e produzidos pelo Instituto sobre a temática:
Post sobre os riscos da prática:
Representação em Inteiro Teor:
https://irisbh.com.br/wp-content/uploads/2018/08/Representa%C3%A7%C3%A3o-FINAL-MP.pdf
Podcast Segurança legal:
https://www.segurancalegal.com/2018/09/episodio-169-uso-de-dados-por-farmacias/
Ata da Transação Administrativa:
https://drive.google.com/file/d/1TpnRxC0zbf0AXRM3Ltn2Yd-yAbflvs_s/view?usp=sharing
Termo de Ajuste de Conduta proposto pelo Ministério Público:
https://drive.google.com/file/d/1kkV_NTw_E4OVRDLOwmT1_SWAe3F2aVmt/view?usp=sharing
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Escrito por
Davi Teofilo (Ver todos os posts desta autoria)
Bracharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e concluiu o ensino médio integrado ao curso Técnico em Informática pelo Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG). Compôs a equipe de coordenação do GNET – Grupo de Estudos Internacionais de Propriedade Intelectual, Internet e Inovação no ano de 2017.
Foi pesquisador do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) e pesquisador fundador do grupo de pesquisa DTI – Direito, Tecnologia e Inovação. Atuou também como consultor jr. no escritório Alexandre Atheniense em serviços de compliance corporativo digital em redes hospitalares.
Foi alumni da Escola de Governança da Internet do Comitê Gestor da Internet no Brasil em São Paulo e bolsista do programa Youth@IGF (2017) do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) para participar do 12.ª Internet Governance Fórum no Palácio das Nações na Suíça.