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Inclusão digital ainda é desafio para o EAD, mesmo após 5 meses de pandemia

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19 de agosto de 2020

5 meses após o governo federal ter decretado calamidade pública em razão da pandemia do COVID-19, a exclusão digital continua sendo uma das principais barreiras à educação em tempos de isolamento social. Pode parecer simples superar tal desafio. “Façamos igual ao Uruguai que distribuiu tablets para 100% dos alunos da rede pública e teremos plena inclusão digital”, alguns podem pensar. 

O texto de hoje pretende apresentar relatos de representantes do movimento estudantil e professores que acompanham diretamente a implementação do Ensino Remoto Emergencial (ERE) em instituições de ensino. Tais relatos, acompanhados de dados e aporte teórico científico, evidenciam as raízes e complexidade da inclusão digital, nos possibilitando a compreensão do porque, após mais de 150 dias em estado oficial de pandemia, a comunidade escolar ainda enfrenta graves desafios estruturais devido às desigualdades digitais. 

Afinal, quais são os elementos necessários para inclusão digital?

Cristina Mori, teoriza a inclusão digital como a coexistência de três principais fatores: democratização do acesso às TICs (infraestrutura), alfabetização digital e apropriação das tecnologias

Dentro deste escopo, a falta de acesso à internet vai além de possuir banda larga ou pacotes de internet. Esse pressuposto só existe quando alunos e professores possuem

  1. acesso de qualidade com uma conexão que seja estável e com alta velocidade ; 
  2. neutralidade da rede,afinal, a informação não pode ser limitada no processo educacional;
  3. equipamentos adequados para o uso da tecnologia com as devidas demandas de pessoas com deficiência e outros dificuldades atendidas.

O Centro Acadêmico XI de Agosto, órgão de representação discente da Faculdade de Direito da USP, realizou recentemente pesquisa sobre a experiência dos alunos sobre as aulas virtuais. O perfil do aluno de Direito da USP tem mudado significativamente após a implementação do sistema de cotas, mas ainda assim, se comparado às demais universidades brasileiras, são admitidos nesse curso majoritariamente alunos em posição sócio-econômica privilegiada. Ainda assim, dentro dos tipos de dificuldade para o ensino virtual no Direito-USP, a pesquisa mostrou que falta de conexão e acesso às plataformas digitais são a quarta maior dificuldade percebida pelos alunos após cerca de 3 meses de aulas remotas. 

Por vezes, a questão do acesso é mais percebida como necessidade à inclusão digital por ser mais concreta e fácil de ser percebida. Contudo, sem alfabetização digital e apropriação tecnológica, o uso das tecnologias tende a ocorrer de forma acrítica, sendo um dos motivos para o aumento da circulação de fake news, golpes virtuais e financeiros e até mesmo para a manutenção de desigualdades pelo aumento da concentração de renda.

Para Giovana Carneiro – pesquisadora júnior do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS) e integrante do Centro Acadêmico Luiz Carpenter (FD-UERJ) – os graduandos da geração Z (nascidos entre 1995 e 2015) tem como principal demanda o acesso à rede, enquanto que os professores e todos os outros servidores (com funções administrativas, por exemplo), possuem maior lacuna em relação à alfabetização digital. A pesquisadora e representante discente também destaca que a apropriação tecnológica ainda se faz necessária independentemente das diferenças geracionais, evidenciado a inobservância desse eixo no processo de inclusão digital.

Para que alunos e professores possam desenvolver competências digitais e se apropriarem da tecnologia, é necessário o

  1. desenvolvimento de letramento midiático – para análise do conteúdo que circula na internet e combate às desinformações-;
  2. compreensão coletiva sobre questões de segurança digital e importância da privacidade coletiva e individual; entre tantas outras competências e apropriações para o fortalecimento do capital social, cultural, tecnológico e financeiro que teoriza André Lemos.

E qual a relação da implementação do EAD com inclusão digital?

A relação entre ensino virtual e inclusão digital pode parecer óbvia inicialmente. Quando a atividade educacional é realizada por meio de plataformas e canais de comunicação virtual, a digitalização do ensino e todas as demandas mencionadas anteriormente para plena inclusão digital se fazem necessárias.  

Portanto, se as relações são óbvias, os elementos necessários para assegurar uma boa relação entre tal associação também seriam fáceis de serem percebidos e praticados. Entretanto, após 5 meses de pandemia, a realidade que percebemos é reflexo de anos de negligência em políticas públicas educacionais e de infraestrutura. Dentre os 4 países mais conectados da América Latina, o Brasil é o único que não possui uma agenda de inclusão digital, conforme apontamos em recente livro publicado pelo IRIS

Não existe uma diretriz curricular focada em educação digital e as competências gerais da educação básica (firmadas na BNCC) relativas às questões tecnológicas raramente são praticadas nos percursos escolares.

Todo esforço para construção de infraestrutura para garantia da conexão à internet fortaleceu o setor das telecomunicações e empresariado beneficiário dos incentivos fiscais oferecidos para o desenvolvimento tecnológico. Contudo, segundo a TIC Domicílios 2019, 35% da parcela majoritária das instituições de ensino públicas (alunos das classes C, D e E) ainda não possuem domicílios com qualquer acesso à internet. A situação se agrava na zona rural, onde 49% dos domicílios ainda não possuem nenhuma internet.

Por aqui, o uso da internet não foi acompanhado de políticas robustas e, como apontado por Marina Pita, a inclusão digital promovida pelas esferas governamentais estimulou o consumo, e não a cidadania. E agora, em meio a uma das maiores crises sanitárias vivenciadas pela humanidade – que tem gerado inúmeras crises econômicas e políticas -, sentimos de forma mais severa os desdobramentos da visão que transfere a responsabilidade e interesse em inclusão digital ao setor privado.

A complexidade de pôr em prática um modelo educacional para o qual as instâncias brasileiras não se prepararam anteriormente é destacada por Giovana Carneiro: “existe um processo longo entre identificar o problema e a implementação da solução, especialmente pela necessidade de recursos para tanto. A UERJ, como uma universidade estadual, sempre dependeu do orçamento do governo do estado do Rio de Janeiro, o que tornou esse processo mais lento. (…) a possibilidade de auxílio emergencial com esses fins [auxílio para acesso à internet] se concretizou apenas em julho, para os cotistas, e foi complementada por uma outra política em agosto

Assim como a UERJ considerou as demandas de inclusão digital na elaboração dos sistemas e conteúdos de ensino à distância, a UFU desenvolveu alguns mecanismos iniciais para oferecer suporte aos alunos.

Para Thobias Prado – coordenador administrativo do Diretório Acadêmico XXI de Abril (curso de direito) da UFU-, a Universidade garantiu isonomia aos estudantes em termos de acesso aos ambientes de aprendizagem ao oferecer uma bolsa para aquisição de equipamentos (como notebooks e tablets) e uma bolsa mensal para contratação de serviço de internet. 

Por outro lado, Gleissiton Gualberto da Silva – professor de sociologia, Secretaria de educação do estado de Minas Gerais/ SEE – aponta que o Estado de Minas Gerais foi omissão em relação a questões essenciais de inclusão digital e educação. Dentre as principais críticas apresentadas por Silva, destacam-se a promoção das aulas via Rede Minas, o que não atingiria todos os municípios, a falta de assistência aos alunos e professores que não possuem acesso à internet  e a insuficiência dos conteúdos oferecidos via digital, inviabilizado completamente uma educação virtual de qualidade.

O que ainda se percebe, após meses de implementação das aulas virtuais, é que, a ausência de política sólidas de inclusão digital impediu até educadores e gestores bem intencionados de propiciar verdadeiro ensino à distância. Gleissiton considera que o governo promoveu uma educação emergencial que aumenta desigualdades sociais

Nessa esteira, Thobias Prado considera que

“Como os professores não estão acostumados com essas metodologias de ensino remoto acabam puramente adotando erroneamente metodologias de EAD, o que acaba sendo um contrassenso aos princípios basilares da universidade pública”.

Será 2020 um ano de educação perdida?

Passamos da metade do ano e existem instituições de ensino que estão desde março completamente paralisadas, assim como algumas instituições que não aplicam quaisquer métodos avaliativos desde o início da crise sanitária e outras que fecharam as portas em razão de falência. Existem alunos que abandonaram os estudos pela pandemia ter reconfigurado dinâmicas familiares e econômicas.

Seria desonesto afirmar que o isolamento social e a realização de atividades de ensino à distância trouxeram apenas barreiras e dificuldades à comunidade escolar e sociedade no geral. Além disso, comparar a realidade brasileira com os níveis de desenvolvimento de países estrangeiros também seria desonesta e negligente aos processos históricos e sociais que justificam o contexto local. 

Entretanto, considerando a impetuosa tendência de que as relações e processos da vida humana se virtualizam cada vez mais, os problemas da educação online no Brasil são percebidos de forma intensa agora, no isolamento social, mas continuaram a existir mesmo com o fim da pandemia.

Sendo assim, para além do olhar imediatista sobre os prejuízos educacionais que perceberemos nesse momento pandêmico, devemos pensar se a qualidade da educação brasileira será ampliada com a adoção das tecnologias da informação e comunicação ou se continuaremos com políticas públicas insuficientes que desconsideram o conjunto totalizante que forma o direito à inclusão digital.

Se você se interessou pelo assunto, acesse o livro recém lançado pelo IRIS “Inclusão Digital como Política Pública: Brasil e América do Sul em perspectiva”.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Ilustração por Freepik Stories

 

Escrito por

Diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Representante do IRIS no Grupo de Trabalho sobre Acesso à Internet e na Força-Tarefa sobre eleições na Coalizão Direito nas Redes (CDR). Membro suplente no Comitê de Defesa dos Usuários dos Serviços de Telecomunicações (CDUST) da ANATEL. Co-autora dos livros “Inclusão digital como política pública: Brasil e América do Sul em perspectiva” (IRIS – 2020) e “Transparência na moderação de conteúdo: Tendências regulatórias nacionais” (IRIS – 2021).

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