É possível uma apropriação tecnológica intergeracional?
Escrito por
Glenda Dantas (Ver todos os posts desta autoria)
19 de dezembro de 2023
Entenda o que o povo indígena Cabécar, da Costa Rica, tem a nos ensinar sobre aprendizado intergeracional e como utilizá-lo em função do bem comum
Muito do que sei e sou, eu credito às minhas mais velhas. Sem dúvidas, minha mãe e minha avó materna são as minhas grandes referências. Com elas eu aprendo constantemente e imagino que sejam unânimes os papéis que pessoas mais velhas têm nas nossas vidas, não é mesmo? Mas… e o que nós, jovens, temos a ensinar para as pessoas mais velhas? Poderíamos elencar muitas coisas aqui, mas neste texto eu vou me ater ao que nós, das gerações nativas digitais – aquelas que nascem já inseridas no contexto de tecnologias digitais – temos a contribuir para apropriações tecnológicas intergeracionais.
A experiência do povo Cabécar
Em uma palestra sobre movimentos sociais e ativismos digitais, no II Colóquio Utopias Tecnopolíticas para o Bem Viver, a pesquisadora costarriquenha Kemly Camacho compartilhou um relato de experiência. Ela apresentou a parceria entre a Cooperativa Sulá Batsú e a Asociación de Mujeres Cabécares de Alto Pacuare, do povo Cabécar — grupo indígena localizado perto da Cordilheira de Talamanca, na Costa Rica.
A cooperativa atua junto com a associação desde 2018 na tarefa de imaginar tecnologias de informação e comunidade que poderiam ser implementadas na comunidade. O protagonismo é feminino em ambas organizações, e tudo que é imaginado e planejado para o território Cabécar só pode ser feito com o aval das mulheres mais velhas da comunidade, as quais somente tomam decisões com base naquilo que consideram melhor para todas as pessoas, objetivando primordialmente a preservação das suas tradições e, sobretudo, de modo a não interferir de forma danosa nos seus modos de viver comunitários. Importante mencionar que o território Cabécar está muito distante dos grandes centros urbanos, e no início dos trabalhos conjuntos das duas organizações, as comunidades não tinham acesso à internet, tampouco faziam uso de dispositivos digitais.
As mulheres da Cooperativa, então, apresentaram as mais diversas possibilidades de tecnologias de informação e comunicação. Toda a comunidade passou por vários ciclos de alfabetização digital, através de metodologias de “educação popular da sociedade digital”, conforme mencionado por Camacho, para promover a conscientização do significado de viver em uma sociedade digital, com todos os riscos e potencialidades. Deste modo, ficou a cargo das mulheres Cabécares decidirem quais apropriações tecnológicas gostariam de ver tomar forma em comunidade.
A partir de ciclos de construção coletiva e aprendizados mútuos entre as organizações, as mulheres cabécares chegaram à conclusão de que o que precisavam era: 1) walkie-talkie, com a finalidade de comunicarem-se entre si e com comunidades do seu povo que viviam mais distantes; 2) Universidade das Mulheres Cabécares, uma tecnologia que tem o intuito de apoiar os sonhos comunitários, de modo a promover um espaço de ensino-aprendizagem comunitário; e 3) Okamasuei (tecnologia do homem branco na língua cabécar), um aplicativo digital que tem o objetivo de promover um intercâmbio de história entre mais velhos e mais novos, de modo a preservar o conhecimento indígena e “neutralizar os riscos do extrativismo desse conhecimento com a penetração da conectividade em seus territórios”.
Segundo a professora Kemly, nos ciclos de oficinas as mulheres jovens cabécares demonstraram desejo e curiosidade em conhecer tecnologias digitais, e as mais velhas, o objetivo de terem um instrumento comunitário que estivesse a serviço da preservação da memória, saberes e tradições. Assim surge o app Okamasuei.
Toda a comunidade esteve envolvida no desenho e implementação do app, que apresenta de forma sistematizada diversos dos conhecimentos locais, como as utilizações de ervas medicinais, receitas, técnicas de cultivo e etc. Por decisão das mais velhas, as mais jovens passaram por ciclos de apropriação tecnológica com aparelhos celulares sem conexão com a internet, onde desenvolveram habilidades de pesquisa e conduziram entrevistas e documentação audiovisual com as mais velhas. Uma única jovem ficou responsável pelo armazenamento desses arquivos em um servidor que foi implementado pela Cooperativa no território Cabécar, de modo que havia um datacenter comunitário e local. Assim, o app é alimentado uma vez ao mês. As informações lá contidas estão disponíveis nos idiomas cabécar e em espanhol.
Juventudes e tecnologias digitais
Esse relato me provocou de diversas maneiras. Além da admiração profunda que desenvolvi pela Cooperativa e pela Associação, eu também me recordei de algumas experiências que tive em oficinas sobre apropriação tecnológica com lideranças comunitárias e ativistas adultos e idosos, onde uma parcela significativa desses públicos apresentavam uma espécie de descontentamento frequente sobre como as tecnologias digitais tornaram-se um grande causador do afastamento de adolescentes e jovens de tradições e ativismos comunitários.
Ao mesmo tempo, os adultos e idosos reconhecem que os adolescentes e jovens são grandes potências para instrumentalizar os mais velhos no uso das tecnologias digitais e em utilizar a facilidade que possuem com as tecnologias digitais, a serviço do bem comum.
Diferente do território Cabécar, a penetração da internet em muitos outros territórios — tradicionais ou não — já é uma realidade. E, diante das potências e desafios que advêm disso, ponho-me a questionar: quais são estratégias possíveis para promover uma apropriação tecnológica que estimule aprendizagens intergeracionais, por meio das tecnologias digitais de informação e comunicação?
Bom, alguns dados podem ajudar a desanuviar o cenário! De acordo com a pesquisa TIC Domicílios de 2022, dentre as crianças e adolescentes brasileiros de 10 a 15 anos, 92% são usuárias de internet, enquanto entre os jovens de 15 a 24 anos, este número cresce para 94%. É o público jovem – os nativos digitais – o que possui o maior grau de incorporação das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação, sobretudo a internet.
A ubiquidade, fenômeno típico da cultura digital, se refere à presença das tecnologias digitais de forma constante e direta no dia a dia das pessoas. Muito embora os impactos da ubiquidade estejam presentes para toda a sociedade, quando pensamos em apropriação tecnológica, há de se observar que gerações de crianças, adolescentes e jovens tendem a adaptarem-se mais rápido e utilizarem mais a internet na rotina: elas conseguem desbravar as funcionalidades de tecnologias digitais com mais facilidade e, inclusive, acessar mais informações e buscar por respostas e soluções, por mediação das tecnologias. Nesse sentido, especialistas sugerem que as mudanças de comportamento podem estar mais relacionadas ao acesso e uso das tecnologias digitais do que ao aspecto geracional ou da faixa etária.
Há de se observar que o cenário apresentado no parágrafo anterior ajuda a entender apenas parte do fenômeno nas faixas etárias atribuídas, pois partimos do pressuposto que para uma análise mais aprofundada do cenário brasileiro deve-se levar em consideração aspectos sobre território, condições socioeconômicas, raça, gênero, dentre outros marcadores sociais que vão, de forma mais concreta, determinar as habilidades e comportamentos dos nativos digitais.
Mas é possível que haja um circuito de aprendizagem intergeracional por meio das tecnologias digitais?
Sim! E já existe. O exemplo do povo cabécar é só um pontapé, mas fiquei refletindo sobre quantas vezes pessoas mais velhas recorrem aos jovens em busca de soluções para alguma coisa que aconteceu no celular ou computador? No período da pandemia de covid-19, por exemplo, a minha mãe, que é professora, estava se adaptando a dar aulas remotas e com alguma frequência me pedia ajuda com a utilização de funcionalidades como o Google Meet, Zoom, Google Classroom, entre outras. Podem ser dúvidas das mais simples às mais complexas, as gerações mais velhas pedem ajuda para os mais novos.
Deste modo, temos um prato cheio para um intercâmbio de conhecimentos intergeracionais. Trabalhar com adolescentes e jovens representa a possibilidade de estimulá-los a imaginar e sonhar com outros mundos possíveis, em diálogo com suas comunidades – sobretudo em territórios historicamente vulnerabilizados. Estimular nestes jovens o desejo de conhecer a si mesmos e os seus territórios, as histórias de suas famílias, entre outras, me parece um bom jeito de ressignificar os seus lugares no mundo (dentro e fora do ciberespaço). Penso que fazer a mediação desse aprendizado através da “educação popular da sociedade digital” é uma boa alternativa, e aqui me refiro a uma apropriação de conhecimentos sobre o funcionamento de tecnologias digitais a partir de metodologias acessíveis e populares.
Quanto à promoção do acesso e participação ativa de pessoas mais velhas, observo que as possibilidades podem vir da partilha de informação e conhecimento em uma perspectiva de preservação de herança cultural mediada pelas tecnologias, de valorização do conhecimento dos mais velhos junto aos mais novos. Colaborando assim para a consolidação de ambientes de aprendizagem e de solidariedade intergeracional. A partir dessa leitura, você visualiza outras possibilidades? Conhece iniciativas que dialogam com esse tipo de prática? Conta para a gente!!
E se quiser saber mais sobre Apropriação Tecnológica no Brasil, o IRIS construiu um relatório sobre o tema. Confira!
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Glenda Dantas (Ver todos os posts desta autoria)
Comunicadora Social e Jornalista pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e mestranda em Comunicação e Culturas Contemporâneas na Facom/UFBA, onde está vinculada ao GIG@, Grupo de Pesquisa em Gênero, Tecnologias Digitais e Cultura. É especialista em Comunicação Estratégica e Gestão de Marcas e membra voluntária do Laboratório de Identidades Digitais e Diversidade (LIDD/UFRJ). Co-criadora da plataforma Conexão Malunga.