Blockchain, smart contracts e “Judge as a Service” no Direito brasileiro
Escrito por
Pedro Vilela Resende Gonçalves (Ver todos os posts desta autoria)
23 de dezembro de 2016
A tecnologia de Blockchain, desenvolvida em 2009 como base para o funcionamento da Bitcoin, logo tornou-se um destaque em si mesma pelas possibilidades que abriu para um leque de outras aplicações além do escopo financeiro original da Bitcoin. Podendo ser aplicada no desenvolvimento de serviços de autenticação pública, passando por sistemas de pagamento e até aplicativos sociais comuns, a capacidade de autenticar transações e informações de forma descentralizada inerente à tecnologia tornou-se seu principal atrativo. Por meio da blockchain, uma série de intermediários hoje indispensáveis poderiam se tornar obsoletos.
Uma das inovações permitidas pela blockchain é a criação de smart contracts: contratos autoexecutáveis regidos apenas por código. Estes contratos permitem que indivíduos acordem entre si transações de bens e valores associados à blockchain que seriam automaticamente executadas assim que as condições contratuais escolhidas fossem cumpridas. Surgiria então uma dinâmica que dispensa a necessidade de confiança – seja na outra parte envolvida, seja no sistema jurídico estatal – para o estabelecimento de relações contratuais envolvendo bens e valores de todos os tipos. Os smart contracts seriam assim uma concretização quase literal da ideia de “Code is Law” de Lawrence Lessig – funcionariam alheios e independentes do poder jurisdicional do Estado contemporâneos.
A inflexibilidade e irreversibilidade inicial dos smart contracts, entretanto, se revela um empecilho frente à adoção desta tecnologia pela maior parte da população e frente aos requerimentos tradicionais do direito contratual vigente na maioria das jurisdições. Uma vez assinados, os contratos inteligentes se cumprem de forma automática, completamente alheios aos poderes jurisdicionais tradicionais do Estado de forma que, em determinados contextos, mesmo uma ordem judicial de alto nível teria pouca eficácia para reverter o negócio jurídico realizado por si só. Em alguns casos, nem a coação estatal pode ser suficiente. Por esta razão, o princípio da irretroatividade da blockchain torna-se um fator que distancia ainda mais a utilização desses avanços de maneiras diversas e marcantes nas relações cotidianas.
Assim, surge como solução a ideia do Judge as a Service – uma espécie de árbitro ou juiz com poderes técnicos para reverter ou alterar transações realizadas através de smart contracts na Blockchain. Durante a elaboração do smart contract, predefine-se um indivíduo que analisará o negócio jurídico e atestará sua validade, tendo poderes para garantir seu cumprimento de em observância com a lei da jurisdição na qual as partes se inserem. O desafio, portanto, é a adequação dos smart contracts, através da utilização de um mecanismo de Judge as a Service ou de outros análogos, às normas do Direito brasileiro. Frente aos recentes choques entre o ordenamento jurídico brasileiro e o funcionamento técnico de aplicações de Internet, a observância às normas do Direito brasileiro durante o design de aplicações baseadas em Blockchain pode garantir uma adoção mais ampla e menos sujeita a conflitos com a Justiça.
A blockchain
O que é a blockchain?
Blockchain pode ser definida como uma tecnologia de registro de informação que se vale de uma rede descentralizada, peer to peer (P2P), para gerar consenso entre seus participantes acerca das informações armazenadas e das que se pretende armazenar. Para tanto, seus participantes (nodes), compartilham um “livro de registros” (public ledger) a fim de possibilitar a verificação da compatibilidade das informações entre os nodes, gerando a confiança necessária para o funcionamento desta tecnologia.
Desenvolvimentos recentes permitiram à Blockchain incorporar em si qualquer forma de conteúdo ou informação. Ademais, a natureza de seu funcionamento inviabiliza economicamente a sua falsificação, na medida em que o custo necessário para quaisquer fraudes em seu registro ultrapassa possíveis vantagens obtidas.
Dessa maneira, a Blockchain permite a interação autônoma entre os pares, dispensando a figura do terceiro de confiança, uma vez que esta é assegurada pela própria arquitetura do sistema. Isso proporciona maior fluidez nas relações, assim como um rol praticamente inesgotável de utilizações.
Smart contracts
Uma maneira de delinear a ideia de Smart Contract é a de que este é a representação de um acordo no qual se verifica o cumprimento de uma condição anteriormente estabelecida, a qual ocasiona uma consequência, também previamente consentida. Assim, o funcionamento do Smart Contract segue a lógica “se X, então Y”, contida no código pelo qual o contrato será regido. Com isso, o Smart Contract se torna autoexecutável, na medida em que o adimplemento da condição desencadeia o resultado, sendo assim, a materialização do conceito de Code is Law, de Lawrence Lessig.
Dessa forma, vale apresentar o exemplo utilizado por Nick Szabo, originador da ideia do smart contract, de que uma máquina de refrigerante é um contrato inteligente primitivo. Isso pois, a máquina é detentora de uma quantidade de bens, armazenados em um compartimento seguro, onde o custo de violação deste compartimento é maior que o nele contido, com o fim de cumprir a seguinte lógica:
“if button_pressed == “Coca Cola” and money_inserted >= 1.75:
release(“Coca Cola”)
return_change(money_inserted – 1.75)
else if button_pressed == “Aquafina Water” and money_inserted >= 1.25:
release(“Aquafina Water”)
return_change(money_inserted – 1.25)”
Se inserido o valor programado, então a posse do refrigerante será transferida. Desse modo, o contato programado na máquina de refrigerante é autoexecutável, lhe interessando somente o cumprimento de suas exigências.
Exemplos de serviços possíveis utilizando blockchain e smart contracts
As possibilidades de aplicação da Blockchain e dos smart contracts são inexauríveis. Geralmente divididas em “financeiras”, “não-financeiras” e “semi-financeiras”, novas aplicações baseadas em registros públicos distribuídos têm surgido diariamente para suprir praticamente qualquer sistema antes dependente de intermediários ou de relações de confiança entre partes envolvidas. Entre as aplicações desenvolvidas estão sistemas de registros públicos de propriedade, contratos de seguros, sistemas de governança coletiva, fundos de investimento, bolsas de valores e sistemas eleitorais, entre outros. Praticamente qualquer tipo de negócio jurídico que envolva uma condição para execução seguida de transação de valores ou propriedades têm sido contemplado com o desenvolvimento de uma aplicação baseada em Blockchain.
Irretroatividade da blockchain
O funcionamento primário dos smart contracts na Blockchain se caracteriza, entretanto, por sua natureza irretroativa. Isto quer dizer que uma vez que ambas as partes tenham assinado um contrato este se cumpre automaticamente, seguindo apenas as ordens pré-estabelecidas em seu código. Se as partes envolvidas por qualquer razão desejarem reverter a transação, retornando ao status quo, deverão se engajar em um novo contrato inteligente para tal. No âmbito dos smart contracts, sua eficácia depende apenas do cumprimento de requisitos objetivos de possibilidade, determinação e economicidade. Por se executarem com plena eficácia no momento de sua assinatura pelas partes envolvidas, os requisitos subjetivos para sua validade não têm relevância prática e factual.
Naturalmente, esta constatação vai fortemente de encontro ao Direito brasileiro. É inadmissível para nosso ordenamento que um contrato sem validade possa ser executado com plena eficácia sem que as partes tenham chance de alegar sua nulidade total ou parcial por descumprimento de requisitos subjetivos ou formais, por duas razões principais: i) não há tempo hábil para que isto se faça após a assinatura do contrato, e ii) após a execução do contrato, os bens ou valores transacionados estarem em situação que impossibilite a reversão do contrato. Do ponto de vista jurídico tradicional, não haveria situação como a descrita no ponto ii): após alegada e reconhecida a nulidade de um contrato frente a um juiz, este poderia emitir uma ordem judicial coagindo a outra parte a tomar as medidas necessárias para que os valores e bens retornem ao status quo. Ocorre que um smart contract inaugura a possibilidade de que não haja parte humana a ser constrangida e que portanto o bem ou valor esteja completamente fora do campo de ação estatal. Quando um smart contract torna-se possuidor de um bem ou valor puramente digital, apenas uma previsão em código e mecanismos técnicos podem fazer com que tal bem ou valor seja transferido para outrem.
Conceituação e utilidade do JaaS
Surgem então certas situações em que uma intervenção humana sobre o código pode se mostrar necessária para explorar a integridade de seu potencial. Entre os usos de smart contracts que podem exigir tal intervenção estão aqueles em um nível de complexidade maior do que o possivelmente previsto por um algoritmo, como por exemplo quaisquer contratos que envolvam um evento altamente subjetivo, como a realização de um serviço, a guarda de depósitos e garantias que serão transferidas após determinadas condições também subjetivas ou mesmo medidas emergenciais para retirar fundos presos em um smart contract por qualquer razão. Este último exemplo é particularmente significativo.
Para isto foi sugerida a figura do “Judge as a Service”, uma espécie de árbitro com poderes técnicos para reverter ou alterar transações realizadas através de smart contracts na Blockchain. Durante a elaboração do smart contract, predefine-se um ou mais indivíduos ou um mecanismo que definirá tais indivíduos (Que podem ser escolhidos pelo algoritmo por meio de critérios como a reputação objetiva de um membro da comunidade, pela presença em um banco de dados previamente determinado ou que pode ser o próprio criador do smart contract) que analisará o negócio jurídico e atestará sua validade, tendo poderes para garantir seu cumprimento em observância com a lei da jurisdição na qual as partes se inserem, e assim corrigir quaisquer vícios ou nulidades no contrato inteligente.
Proximidade do JaaS e do paradigma do CPC/15 de resolução consensual de conflitos
Considerando a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil de 2015, percebe-se uma mudança do modelo de resolução processual brasileiro, em um abandono paulatino de um árduo embate processual, partindo para resoluções consensuais das demandas. Essa nova percepção do processo se vale de princípios da Arbitragem Judicial e de seus mecanismos.
No mesmo sentido, o JaaS naturalmente tende a ser uma maneira mais harmônica de deliberação sobre conflitos. Tomando como ponto de partida as condições estabelecidas via código, o(s) Juiz(es) ponderam dentro dos limites lógicos de cada contrato (os quais em teoria foram anuídos pelas partes), entretanto, há a observação de alguns princípios gerais de formação e execução de contratos. A figura do JaaS serve em primeiro momento como um facilitador, um intermediário a fim de facilitar a dissolução do impasse encontrado pelas partes. Somente após constatada a impossibilidade de acordo entres essas, o Judge utilizará de seus privilégios técnicos para alterar as questões necessárias no contrato.
Além disso, esses tribunais descentralizados permitem o uso de técnicas exclusivas do âmbito da resolução online de conflitos, como por exemplo o Double Blind Bidding e o Visual Blind Bidding, os quais são formas de negociação entre as partes. Nesse contexto, as demandas de cada parte são externalizadas, entretanto, sem o conhecimento da outra parte, incumbindo um algoritmo de avaliar as propostas e averiguar se há possibilidade de acordo.
Outra inovação do CPC/15 é o sistema de precedentes e resolução de demandas repetitivas, disposto nos artigos 926 a 928. Nessa conjuntura, os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência, de maneira coerente dentro do ordenamento jurídico pátrio, respeitando as decisões das instâncias superiores, assim como, aplicar determinadas decisões em incidentes de demandas repetitivas.
Retornando à esfera do JaaS, a utilização desse raciocínio se daria de maneira ainda mais vantajosa, na medida em que a organização, classificação e aplicação dos precedentes pode ser feita por meio de algoritmos. Estes iriam constatar a similaridade de novas demandas com aquelas previamente definidas como precedentes, ou a averiguação de litígios repetitivos. Além disso, o registro das decisões na Blockchain aperfeiçoa e garante mais segurança a este modelo.
Considerações finais
Diante do exposto, vale utilizar como exemplo, da impossibilidade de adoção absoluta de princípios no mundo fático, o Ethereum Classic, criado devido a discordância de alguns participantes do Ethereum, uma vez que este sofreria uma alteração (hard fork) em sua Blockchain. Em uma comparação superficial, atualmente o valor de 1 ether na rede original é aproximadamente doze vezes maior do que o da rede dissidente.
A utilização de um recurso de Judge as a Service pode ser essencial para ampliar a adoção e popularização de tecnologias de Blockchain. Atualmente, as maiores barreiras para a expansão da tecnologia estão na desconfiança e incerteza por parte dos usuários finais sobre os valores a serem transacionados pelo sistema. Sem as garantias oferecidas pelo Estado, a percepção de risco é alta e desestimula o usuário final e pouco familiar com o funcionamento da tecnologia.
Por fim, é importante ressaltar o enorme potencial de uso de Inteligência Artificial em mecanismo como o JaaS, pois, além de aperfeiçoar o sistema de precedentes e demandas repetitivas, a Inteligência Artifical permite a automação da tomada de decisões cada vez mais complexa, transformando as concepções de tempo processual e do volume de deliberações.
A disseminação de smart contracts ainda deverá enfrentar desafios relacionados à auditoria de seu funcionamento, que passará a exigir um trabalho conjunto de cientistas da computação e de juristas.
Escrito por
Pedro Vilela Resende Gonçalves (Ver todos os posts desta autoria)
Fundador do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, é graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. É coordenador e pesquisador do Grupo de Estudos em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual. Alumni da 2a turma da Escola de Governança da Internet do Brasil. Membro do Observatório da Juventude da Internet Society.
2 Comentários
Excelente material, Pedro!!! Continue publicando!