A próxima fronteira da mente: das tecnologias XR aos neurodireitos
Escrito por
Rafaela Ferreira (Ver todos os posts desta autoria)
20 de março de 2023
O poder da mente é cada vez mais atrativo para exploração das possibilidades tecnológicas, inclusive para ferramentasde realidade estendida (ou somente “XR”). Neste texto, você vai conhecer mais sobre produtos e iniciativas que estão explorando esse mundo pouco conhecido, além de entender a importância de pensar sobre“neurodireitos” para garantir que possamos pensar livremente sobre qualquer tema. Pegou o trocadilho?
Produtos que constroem o futuro hoje
Integro a equipe do IRIS no projeto que estudou o tema da realidade estendida sob a perspectiva da proteção de dados. Fizemos um levantamento de produtos existentes e alguns instigaram minha curiosidade: de lentes de contato inteligentes a anéis interativos, o desenvolvimento dessas tecnologias, mesmo incipiente, revela um mundo de possibilidades que visam tornar a fronteira entre o “real” e o “irreal” (ou virtual) mais tênue.
Explico detalhadamente citando um trecho do relatório que resultou desse estudo (p. 20):
“Partindo da diferenciação heurística entre objetos reais (com existência diretamente experimentável pelos sentidos humanos, sem a mediação tecnológica digital) e objetos virtuais (cuja experimentação é necessariamente mediada por dispositivos tecnológicos digitais), as tecnologias de realidade estendida possibilitam a imersão, a presença e a interatividade com um mundo sintético, desenhado para viabilizar a inserção do usuário em um novo ambiente composto por elementos virtuais.”
Depois dessa investigação, um produto permaneceu ocupando meus pensamentos: o NextMind. O objetivo dele é decodificar a “atividade neural em tempo real, dando a você a habilidade de controlar objetos usando apenas a sua mente” (em tradução nossa). Em suma, ele possibilita que a pessoa, ao visualizar uma imagem, interaja com ela (movimentando-a, por exemplo) apenas com comandos mentais.
O dispositivo busca detectar tais atividade cerebrais a partir do córtex visual, por meio de sensores que emitem sinais via Bluetooth que o aparelho traduz para comandos digitais simultâneos e precisos, através de técnicas de inteligência artificial com aprendizado de máquina (machine learning). Para tanto, utiliza-se a eletroencefalografia (EEG), base para exame pelo qual neurologistas diagnosticam doenças psiquiátricas e neurológicas em caso de enxaquecas, convulsões e tumores, etc.
Seguindo a tendência de dispositivos portáteis e vestíveis (wearables), que pretendem ser o tão imperceptíveis quanto possível, o NextMind se encaixa na cabeça como uma faixa e pode ser utilizado, por exemplo, junto a bonés e bandanas, além de complementar a experiência com óculos e headsets de realidade virtual e aumentada.
Talvez a possibilidade de “ler mentes” pareça exageradamente ousada. Porém, definitivamente, o rastreio de atividades do cérebro, a fim de identificar o foco intencional da pessoa, assim como sua conversão em dados, é um tema que me deixa com uma pulga atrás da orelha. E eu te explico o porquê na sequência.
Precisamos falar sobre neurodireitos?
Diante dessa inquietação, descobri um neologismo jurídico que foi capaz de traduzir meu receio: os neurodireitos são, em síntese, um ramo do Direito que visa proteger bens jurídicos humanos em face do potencial uso abusivo da neurotecnologia, segundo a Neurorights Foundation. Ou seja, são proteções legais contra tecnologias que objetivam registrar, interpretar e/ou alterar a atividade do cérebro.
Esse debate pode até parecer fruto de um filme criativo de ficção científica para a população em geral, além de ter sido questionado por alguns especialistas, tendo em vista as incertezas quanto ao potencial dessas ferramentas tecnológicas. Por isso, te pergunto: será que esse novo termo do juridiquês merece seu tempo, cara pessoa leitora? Respondo: sim, ele merece, pois, diante da incerteza do futuro, recomendo as certezas do presente e a memória do passado. Deixe-me explicar com mais vagar nas próximas linhas.
No presente, os fatos mostram a importância deste tema. Dentre outras razões, estão a possibilidade de utilização dessas tecnologias para pessoas com perda total ou parcial de mobilidade, além do uso para melhoria da experiência de realidade estendida, o que gera impulso ao setor empresarial. Há um evidente interesse das grandes empresas de tecnologia (big techs) em investir no mercado neurotecnológico. Por exemplo, o já citado NextMind, criado por uma startup francesa, foi recentemente comprado pela big tech americana Snap Inc. (proprietária da rede social Snapchat); já a Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp) anunciou seu interesse em interfaces que possibilitam escrever palavras pensadas pelo usuário em dispositivos eletrônicos.
Quanto ao passado, os exemplos históricos do uso de inovações tecnológicas para vigilantismo, extermínio e/ou controle de grupos minoritários não devem ser esquecidos. Em vista disso, o Chile foi pioneiro a reconhecer os neurodireitos, durante seu procedimento de reforma constitucional. E não é por acaso, alerta a IAPP: o país passou 17 anos sob a ditadura de Augusto Pinochet, com intenso controle da liberdade de pensamento e sua expressão, bem como sob restrição de diversos outros direitos fundamentais.
A mente na trincheira pela proteção de direitos humanos
Dessa forma, uma análise detida sobre o potencial da neurotecnologia revela a necessidade de atenção para, pelo menos, 5 eixos, segundo a Neurorights Foundation:
Em sentido parecido, na p. 46 do seu texto “Iniciativas para minimizar el impacto de las neurotecnologías y tecnologías inmersivas en los derechos humanos”, Natalia L. Monti destaca que as inovações neurotecnológicas estão sendo aplicadas progressivamente além da área de saúde, “em campos como o ensino, os jogos, o entretenimento, onde o objetivo é influir no cérebro de várias maneiras, por exemplo, através da “melhoria da memória” ou na “engenharia cognitiva” (em tradução minha).
Por isso, a autora destaca o desenvolvimento dos Principios Interamericanos en materia de Neurociencias, Neurotecnologías y Derechos Humanos, no âmbito da OEA, cujo projeto menciona os seguintes pontos valiosos:
- Identidade, autonomia e privacidade da atividade neural;
- Proteção de Direitos Humanos desde o desenho das neurotecnologias;
- Os dados neurais como dados pessoais sensíveis;
- Consentimento expresso e informado no caso de tratamento de dados neurais;
- Igualdade, não discriminação e acesso equitativo às neurotecnologias;
- Aplicação terapêutica exclusiva para o aumento das capacidades cognitivas;
- Preservação da integridade neurocognitiva;
- Transparência e governança;
- Supervisão e fiscalização;
- Acesso à tutela efetiva e a remédios associados ao desenvolvimento e uso das neurotecnologias.
Ainda em desenvolvimento, o citado documento internacional é um dos esforços para a regulação do tema no direito internacional de forma crítica e engajada, mas, como dito, ainda inacabada.
Ponderações finais frente às inquestionáveis mudanças na neurotecnologia
Caminhando para o fim deste texto, que teve a missão ousada de debruçar-se sobre tema tão extenso, podemos concluir que são inquestionáveis as mudanças no poder da ciência e, consequentemente, dos seus produtos tecnológicos. A escolha pela palavra “mudança” em vez de “avanço” é proposital: do ponto em que estamos da história, os ônus e os bônus das inovações decorrentes dessas modificações (que são, também, políticas) são incertos e podem gerar retrocessos. Não é diferente no campo da neurociência, cujo potencial utópico e distópico alcança o que nos caracteriza enquanto espécie humana: a capacidade de pensar.
Na condição de mulher negra, vinda de uma família com poucos recursos econômicos, partindo da periferia de Salvador (capital do estado da Bahia), demorei muito tempo para conquistar socialmente o direito de pensar livremente (e de saber que eu também posso raciocinar e até ser paga por isso, como estou sendo agora). Nessa busca complexa por uma humanização tardia, minha e de meus pares, o cuidado com a liberdade de pensamento, em suas várias ramificações, me parece primordial para um caminho até um efetivo Estado Democrático de Direito e uma ordem internacional que respeite os direitos humanos.
Desse lugar, visualizo a incipiência do campo regulatório das neurotecnologias e finalizo este texto enfatizando que me restam muitas perguntas não respondidas. Destaco, ainda, a necessidade de desenvolvimento de pesquisas na área, sobretudo que levem em consideração o contexto da América Latina e suas diferenças regionais. Reconhecendo esse cenário, Monti, no estudo já citado, apontou uma “janela de oportunidades” para reduzir (e, sonho eu, extirpar) o impacto negativo dessas tecnologias nos direitos humanos, por meio de uma atuação multissetorial, em um futuro não muito distante.
Enquanto esse futuro não chega, te convido a construir conosco um presente de proteção de direitos no mundo digital. Para isso, você pode interagir com o IRIS através de nossas redes sociais e acompanhar as postagens deste blog, inclusive as relacionadas à série sobre realidades estendidas e proteção de dados.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Escrito por
Rafaela Ferreira (Ver todos os posts desta autoria)
Pesquisadora e líder de projetos de Moderação de Conteúdo no IRIS. Mestranda em Direito da Regulação na FGV Rio e graduada em Direito pela UFBA. É advogada e se interessa por temas regulatórios que envolvam regulação de plataformas digitais, inteligência artificial e discussões sobre neurodireitos.