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A fortuna do Libra nas mãos do Congresso dos EUA

19 de julho de 2019

Foto: Andrew Harrer/Bloomberg News

Sob o modelo de moedas digitais alternativas, o Facebook está propondo a sua própria criptomoeda: Libra. Assim como outras, ela irá desempenhar função de moeda, servindo para transações globais diretamente entre usuários sem precisar de bancos. A diferença estaria na proposta de ser controlada por um seleto grupo de entidades e ser lastreada em uma reserva com bens pouco voláteis que garantam que seu valor seja estável.

Com os efeitos do recente caso Cambridge Analytica em mente, o Congresso dos Estados Unidos demonstrou preocupação em relação à criptomoeda. Ao longo desta semana, tanto o Senado quanto a Câmara realizaram audiências sobre a proposta, as quais consistiram em sabatinas com David Marcus, diretor da Calibra – uma subsidiária criada pelo Facebook para tratar da moeda.

No post de hoje, apresentamos o debate acerca do Libra e algumas das preocupações levantadas por parlamentares durante as audiências.  

O que sabemos sobre a moeda

No artigo técnico que o apresenta, o Libra é caracterizado simultaneamente como infraestrutura financeira e criptomoeda. A exemplo de outras criptomoedas conhecidas, como Bitcoin e Ethereum, está alicerçado na chamada blockchain. Esse recurso possibilita que o registro sobre transações e quem detém quais valores seja distribuído entre participantes da rede, sendo independente, portanto, de um ente centralizador (como um banco). Há, porém, uma novidade importante: somente entidades autorizadas poderão operar como nós validadores das transações na rede Libra, enquanto na rede Bitcoin, por exemplo, qualquer participante que atenda aos requisitos técnicos é capaz de fazê-lo.

E quem são essas entidades autorizadas? Até então, 28 organizações, em sua maioria empresas estadunidenses, cada uma das quais contribuindo com um investimento mínimo de 10 milhões de dólares. 

Conjuntamente, essas entidades fundaram a Associação Libra: um consórcio, formalmente sem fins lucrativos, sediado na Suíça e responsável pela governança da moeda. Ainda segundo o artigo técnico, espera-se que a Associação tenha cerca de 100 membros até a data proposta para o lançamento da moeda, no primeiro semestre de 2020. No consórcio, os processos de tomada de decisão serão conduzidos por um conselho em que cada membro fundador poderá ter até 1% do total de votos.

Nesse conselho, o Facebook será representado pela Calibra, uma subsidiária criada pela gigante para operar como provedora de carteira digital. Uma carteira digital desempenha, para as criptomoedas, função semelhante à da conta bancária; por ela, os usuários poderão gerenciar seus libras. Embora constitua apenas 1 dos 28 membros fundadores, a Calibra – e, por conseguinte, o Facebook – tem desempenhado um papel central na apresentação pública da moeda, no desenvolvimento de sua blockchain e na criação da associação.

Embora a iconografia e o nome da moeda tenham a ver com o elemento “ar” (associado ao signo de Libra do zodíaco), outra especificidade do Libra é em seu lastro: uma reserva de ativos de baixa volatilidade (depósitos bancários, títulos públicos de curto prazo, etc.). Isso reduziria flutuações em seu valor – um problema comum no mercado de criptomoedas. 

Diversamente de criptomoedas já existentes, como Bitcoin, não será possível minerar o Libra. A emissão de novas unidades ocorreria somente na ocasião de sua compra com a Associação Libra. Similarmente, a queima de moedas ocorreria mediante sua venda para o consórcio em troca de ativos da reserva. Os juros sobre esses ativos seriam utilizados para cobrir os custos do sistema, garantir baixas taxas de transação, servir de base para maior crescimento e adesão, e pagar dividendos (lucros) para os investidores iniciais.

Preocupações e medidas de contingência

Desde seu anúncio, o Libra provocou reações imediatas de reguladores em âmbito internacional. Representantes da França e do Parlamento Europeu manifestaram grandes preocupações com a proposta, assim como o G7 – que anunciou a criação de uma força-tarefa para abordá-la. No caso dos EUA, as ansiedades regulatórias relativas à proposição levaram o Senado e a Câmara a convocarem audiências públicas com o Facebook, ocorridas em 16 e 17 de julho de 2019, respectivamente.

O tom geral das audiências foi de ceticismo, por parte da maioria dos representantes públicos, em relação à proposta. Com algumas exceções – que ressaltaram seu caráter inovador e a abertura da empresa ao diálogo -, os parlamentares demonstraram significativa desconfiança do Facebook enquanto responsável por uma moeda digital, recordando os recentes escândalos nos quais a empresa esteve envolvida, sobretudo o supracitado caso Cambridge Analytica.

Apontamos abaixo algumas das preocupações apontadas por parlamentares nas audiências:

  • Golpes – a falta de segurança de informação poderia expor dados financeiros dos usuários do Libra e deixá-los vulneráveis a golpes. 

Resposta do Facebook: a empresa alega que vem investindo em segurança da informação que proteja os dados criptografados, tendo desenvolvido, inclusive, uma linguagem de programação própria (a Move) e uma versão da blockchain especialmente para garantir a segurança e eficiência desse produto.

  • Estabilidade financeira – dado o tamanho de sua base de usuários pretendidas, diversos parlamentares questionaram se a Associação Libra e/ou a Calibra não seriam classificadas como “instituições financeira sistemicamente importantes”, entes regulados cuja falha pode desencadear uma crise financeira. Se assim o fosse, o consórcio e a Calibra estariam sujeitas a fortes regulações pela autoridade estadunidense na matéria. 

Resposta do Facebook: não lhe caberia definir quais agências reguladoras tratariam da Libra naquele momento.

  • Legitimidade e transparência – diferentemente de moedas soberanas, emitidas por autoridades públicas, a Libra será emitida e governada por um consórcio de entes privados, o que levanta questões relativas à legitimidade e accountability desses decisores. Os critérios pelos quais as organizações fundadoras foram selecionadas não são nítidos. Além disso, o uso dos juros da reserva para pagar dividendos (lucros) aos investidores iniciais parece contradizer o teor formalmente sem fins lucrativos da Associação Libra. 

Resposta do Facebook: o Libra não pretenderia competir com moedas soberanas e a associação não teria, em si, fins lucrativos, embora seus membros possam vir a receber proventos pelos investimentos iniciais.

  • Privacidade – face à falha nas permissões de uso de dados por aplicativos conectados ao Facebook que gerou o escândalo da Cambridge Analytica, questiona-se sobre os níveis de consentimento e os controles do usuário sobre quais de seus dados podem ser compartilhados com terceiros ou acessados pela plataforma. 

Resposta do Facebook: as decisões acerca de políticas de uso e privacidade não ficariam a seu encargo, mas do Conselho da Associação Libra, e não haveria compartilhamento dos dados pessoais tratados pela Calibra com outras empresas do grupo Facebook.

  • Concorrência – há um debate atual nos EUA sobre a possibilidade de desmembrar as gigantes da tecnologia para combater formações monopolísticas e práticas anticoncorrenciais. Nesse contexto, parlamentares questionam se a Associação Libra não teria atributos de um oligopólio e se a integração da carteira Calibra aos outros serviços do grupo Facebook sinalizaria potenciais abusos da dominância mercadológica da empresa.

Resposta do Facebook: haveria interoperabilidade com outras carteiras nos serviços do Facebook.

  • Direcionamento de anúncios – o Facebook funciona sob esse modelo de negócios, coletando dados dos usuários para aperfeiçoá-lo. É razoável presumir que sua base de dados seria incrementada significativamente com informações sobre quais usuários efetuam transações entre si e o conhecimento sobre quais produtos são, de fato, adquiridos por eles. 

Resposta do Facebook: não haveria controle direto do Facebook sobre a plataforma, e seu funcionamento é independente dos serviços oferecidos pela empresa, de maneira que não haveria intercâmbio de dados.

  • Jurisdição – uma vez que a Associação Libra terá sede na Suíça, parlamentares questionam sobre a aplicabilidade de regulações dos EUA sobre ela, especialmente com relação a clientes sediados em países sujeitos a sanções econômicas pelos EUA (como o Irã). 

Resposta do Facebook: o consórcio também seria supervisionado e regulado por autoridades estadunidenses (como a FinCen) e que cumprirá com suas sanções e normas anti-lavagem de dinheiro (ALD).

  • Diversidade e representatividade – parlamentares questionam os critérios utilizados para selecionar os 28 membros fundadores da Associação Libra, a ausência de representantes dos usuários no Conselho do consórcio e o grande número de membros provenientes de países que não são aqueles onde o público alvo da moeda reside (Nigéria, Paquistão e Índia, por exemplo). 

Resposta do Facebook: os planos seriam de que a Associação tenha até 100 membros ou mais até seu lançamento e que espera-se que preocupações com representatividade possam ser contempladas até então.

  • Fluxos ilícitos de dinheiro – a possibilidade de usar pseudônimos, anunciada na proposta do Libra, aliada ao fato de que o produto mira em quem não possui contas bancárias e buscará ser acessível a quem não cumpre requisitos formais para isso, levanta preocupações ligadas a seu possível uso para atividades criminosas. Como a ideia é que a moeda seja global, a verificação de identidade e a possibilidade de rastrear o real usuário de uma transação são importantes pontos a serem abordados concretamente na política da moeda. 

Resposta do Facebook: alega que o cadastro na carteira Calibra será condicionado à autenticação documental e que o serviço implementará medidas ALD. (Deve-se ponderar, todavia, que a Calibra será apenas uma das muitas carteiras utilizáveis na plataforma)

As contradições da proposta persistem

Por um lado, percebe-se alguma atenção dos criadores da criptomoeda aos entes reguladores, sobretudo pela disponibilidade em responderem questionamentos dos reguladores dos Estados Unidos antes do lançamento do Libra. Entretanto, essa importância foi direcionada a apenas algumas jurisdições (EUA e outros membros do G7), que não são as mesmas em que se localiza a sede do serviço proposto (Suíça) estão, o que levanta algumas dúvidas sobre se haverá prestação de contas da Associação Libra em relação às promessas feitas aos parlamentares estadunidenses nas audiências públicas.

Igualmente, as respostas oferecidas às preocupações levantadas pelos congressistas não foram de todo satisfatórias. Não foram apresentadas medidas concretas que garantam a segurança e privacidade dos dados dos usuários, dificultem uso indevido ou imposição de permissão para uso por parceiros comerciais da Associação. A resposta sobre medidas para diversificar e impedir a formação de um oligopólio no conselho gestor da Associação Libra também não contemplou qualquer iniciativa para incluir representantes dos usuários.

Cabe ressaltar, ainda, outras contradições que atravessam o discurso do Facebook durante as audiências: ora se apresentando como apenas mais um membro da Associação Libra, ora fazendo promessas em nome de todo o consórcio; afirmando que a Associação não tem fins lucrativos, mas incapaz de explicar como o pagamento de dividendos aos investidores iniciais não consistiria em lucro; defendendo que pretende ter o máximo de transparência no projeto e, todavia, sendo opaco com relação ao processo de constituição dos membros fundadores da Associação.

Isso nos leva a uma última questão: a Associação Libra mira em pessoas sem acesso a contas bancárias, ou seja, quem está em camadas economicamente marginalizadas pelo atual sistema financeiro, mas não dialogou, até então, com reguladores dos países que concentram essa população. Isto é, talvez uma das maiores carências dessa proposta de criptomoeda global seja em não considerar as necessidades desse público no mesmo patamar que considera as preocupações de possíveis concorrentes ou parceiros governamentais e comerciais da empreitada.

Se interessou pelo debate político nos EUA sobre o futuro das gigantes da tecnologia? Confira nosso post sobre o tema.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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