Memes, YouTube e direitos autorais: A diretiva da União Europeia e seus possíveis impactos
Escrito por
Paloma Rocillo (Ver todos os posts desta autoria)
28 de janeiro de 2019
Após a entrada em vigor da lei de proteção de dados pessoais com maior repercussão internacional – o Regulamento Geral de Proteção de Dados -, o parlamento europeu aprovou uma diretiva de grande impacto financeiro nas receitas das grandes provedoras de conteúdo online, como Facebook, Youtube e Google. A Diretiva, relativa à proteção dos direitos de autor no mercado único digital, suscitou diversas polêmicas por implicar no possível “fim do Youtube” e mesmo da internet como a conhecemos, bem como sobre ser considerada uma “lei anti-memes”, em razão de dois artigos principais. Neste texto, pretendemos analisar brevemente esses dispositivos, bem como esclarecer questões a respeito do processo legislativo europeu e as repercussões da aprovação normativa no contexto brasileiro.
O processo legislativo europeu
O escopo da diretiva em questão não abrange apenas determinado país em específico, uma vez que é emanada da União Europeia (UE), bloco econômico constituído por países da Europa. Por esta razão, o ordenamento jurídico e processo legislativo que envolve a norma é bastante diferente do vislumbrado no Direito brasileiro.
Os tratados constituem as bases jurídicas da legislação da UE, constituindo o chamado direito primário. De seus princípios e objetivos derivam regulamentos, diretivas, recomendações e pareceres. “Uma diretiva é um ato legislativo que fixa um objetivo geral que todos os países da UE devem alcançar”, conforme site oficial da UE , uma vez que carrega em si o consenso europeu sobre um determinado assunto. Para tanto, cada país elabora sua própria legislação visando transpor a diretiva para o direito nacional.
A aprovação de uma diretiva perpassa o rito do processo legislativo ordinário, no qual o Parlamento Europeu legisla conjuntamente em em paridade com o Conselho e, no que tange a tomada de decisão, para o quorum de votação é exigido maioria de 55 % na maior parte dos casos, mas 72 % em alguns casos.
Tramitação da Diretiva sobre direitos do autor no mercado único digital
A Comissão Europeia propôs a diretiva em setembro de 2016. Em julho de 2018 o Parlamento Europeu rejeitou uma versão preliminar em razão dos artigos 11 e 13, entretanto, após reformulações e diversas emendas ao texto proposto (conforme comparação disponibilizada aqui), em setembro de 2018 o Parlamento Europeu aprovou o texto normativo, em Estrasburgo, por um placar de 438 contra 226, constando 39 abstenções. Ainda é necessária a aprovação da diretiva na Comissão Europeia, a qual estava prevista para janeiro de 2019.
Entretanto, no dia 18 de janeiro as discussões finais foram canceladas por ter encontrado resistência de 11 países da União Europeia. Segundo Julia Reda – do Partido Pirata da Alemanha -, Itália, Polônia, Suécia, Croácia, Luxemburgo e Portugal se juntaram a Alemanha, Bélgica, Holanda, Finlândia e Eslovênia contra a norma. Portanto, atualmente os debates parlamentares estão paralisados.
A diretiva pretende regrar o uso e o compartilhamento de conteúdos protegidos por esse direito em um contexto digital e como justificativa para sua elaboração constam o interesse em estimular a criatividade, inovação e integração no mercado interno, a fim de evitar a fragmentação no setor e trazer o patrimônio cultural comum europeu para primeiro plano, conforme Considerando 2 do texto legal e de acordo com o artigo 167.º, n.º 4, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
Em diversos momentos do texto legal é ressaltado a intenção de assegurar o bom funcionamento do mercado interno. Contudo, deve ser considerado o caráter transfronteiriço da internet. As regulamentações e decisões que afetam diretamente as relações econômicas desenvolvidas no ambiente online e monetarização da produção de conteúdo, ainda que direcionadas à UE, impacta a rede de computadores como um todo. Por esta razão diversos youtubers e personalidades de diversos locais do globo que desenvolvem seus trabalhos pautadas em conteúdo online manifestaram-se em apoio ou rejeição à diretiva, evidenciando a percepção holística do fenômeno.
Principais críticas sobre a Diretiva
A diretiva da UE foi tópico de extensa discussão desde o momento de sua propositura, e vem ganhando mais ênfase nos últimos meses, conforme se aproxima dos estágios finais de sua tramitação. No texto, há dois dispositivos que se destacaram dentre os demais, e motivaram o maior volume de discussão e críticas: tratam-se dos artigos 11 e 13.
O artigo 11 diz respeito à proteção de publicações de imprensa no que diz respeito a utilizações digitais. O objetivo principal do dispositivo foi limitar a difusão de notícias por provedores de serviços terceirizados, ao exemplo do Google Notícias, sob a justificativa de que estariam lucrando às custas dos veículos de veiculação originais dessas notícias. A alegação é que esses serviços substituem para os usuários a necessidade de efetivamente entrar nos sites referentes às notícias agregadas, o que prejudica a arrecadação dos autores originais em um primeiro momento. Dessa forma, passaria a ser necessário o devido pagamento de taxas sobre esses conteúdos autorais para possibilitar seu compartilhamento.
O dispositivo, contudo, gerou controvérsia em um primeiro momento devido à forma como seu texto foi elaborado – de maneira preocupantemente abrangente. Isso levava à possível interpretação de que usuários comuns, sem fins lucrativos, seriam também impedidos de compartilhar links para notícias e outros conteúdos online – ou, no caso, cobrados e potencialmente punidos caso não realizassem o pagamento. Isso poderia representar um sério problema no que diz respeito à disseminação de informação para fins educacionais e não lucrativos no geral, até mesmo para combate à disseminação descontrolada de fake news, por exemplo.
O artigo 11, contudo, foi emendado por meio das alterações 151 a 155 do texto da diretiva, que esclareceram consideravelmente suas disposições. Tornou-se claro, por exemplo, que o dispositivo aplica-se apenas em casos de utilizações digitais para fins lucrativos, não afetando os usuários comuns de redes sociais que pretenderem divulgar conteúdo em geral, como matérias jornalísticas e afins. Além disso, foi criada uma exceção ao agregamento de notícias pelos prestadores de serviços, caso haja apenas a disponibilização dos links das notícias acompanhados apenas de palavras isoladas – ou seja, sem manchetes e explicações extensas dos conteúdos, que possam de certa forma substituir a necessidade de acesso destes em seus sites originários.
Mesmo após a emenda, entretanto, argumentou-se que essas medidas estariam, na verdade, prejudicando os veículos de comunicação sobre os quais pertencem a autoria desses conteúdos abarcados pelo artigo 11. Isso porque essas plataformas são beneficiadas pela exposição causada pelos serviços que compilam o material produzido por elas, resultando em maior quantidade de visualizações e, consequentemente, maior captação de receita através dos anúncios expostos nos sites. Dessa forma, não se pode saber ao certo se as previsões do artigo 11 são de fato benéficas para os autores do conteúdo que o dispositivo se propõe a proteger.
O artigo 13 da diretiva, por sua vez, representou o foco da maioria das críticas que a ela foram direcionadas. O dispositivo trata da salvaguarda de direitos de autor em conteúdo de qualquer natureza – vídeos, músicas, imagens, textos etc. – disponibilizado em massa por meio de plataformas online pelos seus utilizadores. Em outras palavras, o artigo refere-se à proteção dos direitos autorais em plataformas que permitem que seus usuários publiquem conteúdo de qualquer espécie.
O dispositivo, em resumo, torna essas plataformas, como o YouTube, o Reddit e até mesmo redes sociais como o Facebook, o Twitter etc., responsáveis pelo compartilhamento indevido de conteúdo autoral por seus usuários desde o momento da postagem. Isso representou uma inovação no Direito europeu, pois anteriormente havia uma exceção à responsabilidade dessas plataformas no caso de violação de direitos autorais por seus usuários, sob o argumento de que as plataformas seriam meras condutoras do material compartilhado.
Assim como o artigo 11, a redação inicial bastante abrangente do artigo 13 também foi alvo de fortes críticas ao redor do mundo por parte de usuários dessas plataformas, estudiosos da área, ativistas de direitos digitais e as próprias plataformas. As alterações 156 a 161 do texto da diretiva providenciaram emendas ao texto original do artigo 13, mas, diferentemente das emendas ao artigo 11, apenas aumentaram a severidade das previsões do dispositivo. Essas alterações também não resolveram o problema da generalidade excessiva do dispositivo, corroborando em críticas ainda mais severas por parte da comunidade.
A possibilidade de responsabilização das plataformas por meio das quais o conteúdo é compartilhado, ademais, vem acompanhada da obrigação de que essas plataformas realizem uma filtragem pormenorizada de todo material adicionado aos seus bancos de dados, para conferir se todas as licenças de direitos autorais foram devidamente pagas por meio de acordos entre os usuários e os detentores desses direitos. Isso corrobora em alguns problemas:
O primeiro deles é o da viabilidade dessa filtragem. Essa técnica – já implementada pelo YouTube por meio do Content ID, por exemplo – mostra-se demasiadamente custosa, e teria que ser refinada ainda mais para atender às imposições da diretiva da UE. Como consequência disso, tem-se a impossibilidade de implementação de uma ferramenta tão avançada por parte de provedores menores, e mesmo as grandes empresas enfrentarão um enorme desafio para atender a essas expectativas. A impossibilidade de cumprir com as previsões legais da nova diretiva levará, portanto, ao fechamento de diversas dessas plataformas no território da União Europeia.
Além disso, tem-se o perigo de que as previsões do artigo 13 acompanhem consequências acidentais muito negativas. Isso porque a severidade das penalidades para as plataformas de compartilhamento de conteúdo resulta na necessidade de filtragem ainda mais meticulosa do conteúdo compartilhado pelos usuários. A necessidade de que esse processo seja extremamente rápido, e, consequentemente, automatizado, significa que essa filtragem será incapaz de distinguir uploads irregulares daqueles que se qualificam como exceções à obrigação de pagamento de direitos autorais – tais como a paródia, a crítica, bem como as outras modalidades de produção criativa que enquadram-se no conceito de “uso regular” gratuito de obras autorais de terceiros.
O resultado disso, como se pode imaginar, será o bloqueio de quaisquer tentativas de envio de conteúdo dessa natureza para as plataformas, derivado do receio destas de serem punidas por alguma infração de direitos autorais. O mesmo pode se aplicar, inclusive, à circulação de memes e “GIFs de reação”, em sites e redes sociais, haja vista que muitas vezes são criados com frames de séries, filmes e afins.
Isso gera o efeito contrário do que se buscou com o mecanismo legal – que foi o de proteger os criadores de conteúdo dessas plataformas do uso indevido de seus trabalhos. Em vez disso, o que se observa é a possibilidade de censura do material produzido por eles, bastando que a reprodução breve, parcial e regular a uma obra autoral resulte no bloqueio desse trabalho.
Perigo se estende para além da União Europeia
Esses são alguns dos motivos pelos quais a diretiva da UE representa uma ameaça real à internet que se conhece hoje – não apenas dentro da União Europeia, mas sim ao redor de todo o globo. Isso porque, como mencionamos anteriormente, a internet detém um caráter transfronteiriço e, consequentemente, apresenta desafios para harmonização dos ordenamentos jurídicos vigentes em cada país.
A Europa, por sua vez, é considerada um dos principais pontos de interesse em termos de implementação de internet e produção legislativa sobre o tema. Não à toa, o Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia foi mundialmente aplaudido e vem servindo como base para a confecção de diversas outras legislações sobre o meio digital, como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais no Brasil.
Percebe-se, portanto, que a aprovação da Diretiva na UE pode influenciar outros países a adotarem medidas parecidas em suas jurisdições, o que ampliaria as consequências descritas anteriormente neste texto. Motivados por essas preocupações, os críticos da Diretiva mobilizaram-se por meio da campanha #SaveYourInternet. O movimento baseia-se no argumento de que, além do que foi exposto acima, as únicas beneficiadas pela implementação do artigo 13 são as grandes empresas que detêm os direitos autorais para grande parte do conteúdo audiovisual circulante na internet.
Com a diretiva seguindo para o fim de sua tramitação, resta o receio acerca dos seus resultados. Ainda há tempo para que os legisladores europeus tomem consciência dos danos que essa nova diretiva pode gerar, apesar das boas intenções, mas a cada dia diminuem-se as chances de que algo seja feito para remediar essa situação.
Caso você se interesse pela tema e queira saber mais sobre regulamentação sobre direitos de autor na internet, leia publicações disponíveis aqui que se debruçam sobre o assunto.
- A íntegra da proposta da diretiva pode ser acessada em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:52016PC0593&from=EN
- Para acessar a íntegra das mudanças https://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//NONSGML+TA+P8-TA-2018-0337+0+DOC+PDF+V0//PT
Texto escrito por Paloma Rocillo e Victor Vieira
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
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Paloma Rocillo (Ver todos os posts desta autoria)
Diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Representante do IRIS no Grupo de Trabalho sobre Acesso à Internet e na Força-Tarefa sobre eleições na Coalizão Direito nas Redes (CDR). Membro suplente no Comitê de Defesa dos Usuários dos Serviços de Telecomunicações (CDUST) da ANATEL. Co-autora dos livros “Inclusão digital como política pública: Brasil e América do Sul em perspectiva” (IRIS – 2020) e “Transparência na moderação de conteúdo: Tendências regulatórias nacionais” (IRIS – 2021).