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Uber – Relação com os Motoristas

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29 de maio de 2017

Vivemos uma era de disrupção, é visível que novas tecnologias tomam constante lugar no quotidiano e, ainda que possam se mostrar extremamente benéficas a longo prazo, é necessário proceder com cautela para analisar as novas relações de consumo, as novas relações contratuais que se formam com as tecnologias disruptivas, estas que têm o poder basicamente de transformar o mercado de determinado produto ou serviço. Mesmo que se entenda da incapacidade do Direito de acompanhar todas as transformações e inovações, é preciso que se possa discutir como lidar com situações de conflito, de litígio.

O que se quer dizer aqui é que, em um mundo de constantes transformações, ainda está o ser humano sujeito a prejuízos e situações de danos a seu patrimônio, ao serviço que contrata ou ao bem que adquire. Devemos, assim, tornar possível ao consumidor que faça valer o seu direito, protegendo seus interesses e, principalmente, precisamos nos perguntar sobre quem recai a responsabilidade de arcar com as reparações nesses casos, dos quais a Uber talvez seja o aplicativo mais marcante.

No caso da Uber, é importante recordar sua história como uma das grandes start-ups que tomou corpo no mercado mundial nos últimos anos. Desde seu surgimento, no ano de 2009, vem ganhando crescente relevância e popularidade por todo o mundo. Atualmente, a empresa atua em diversos países, sendo uma das principais fornecedoras de transporte individual da atualidade.

No Brasil, a Uber chegou no ano de 2014, primeiramente nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, e, desde então, vem se dispersando pelo território nacional, hoje atuando em aproximadamente 40 cidades do país. A região Norte foi a última a contar com a implementação do serviço, tendo este surgido no mês de abril deste ano (2017) nas cidades de Belém e Manaus.

Com a chegada da empresa no Brasil, contudo, pôde-se observar o surgimento de diversas controvérsias relativas à chegada de um serviço tão diferente – em termos organizacionais – do que se tinha disponível no país anteriormente. Uma das questões, que persiste até os dias atuais, é a da concorrência da Uber com as cooperativas de táxis, já tão consolidadas em território nacional, dada a grande similaridade entre os serviços prestados por ambos.

O principal debate com relação a esse mérito gira em torno do fato de que os motoristas da Uber não são submetidos ao pagamento das diversas taxas de padronização que existem para a regularização de um táxi, o que leva os taxistas a alegarem a existência de uma concorrência desleal entre ambos os serviços. Por outro lado, os representantes e motoristas da Uber alegam não contar com diversos benefícios garantidos aos taxistas – como isenção de impostos na compra de carros novos e outros descontos -, o que tornaria os custos operacionais, e, consequentemente, a concorrência, legítima entre os dois lados.

Entre outras questões polêmicas relativas à atuação da Uber no Brasil, a que parece gerar mais discussões é a que gira em torno da natureza jurídica da atuação da Uber frente aos motoristas cadastrados no aplicativo.

Nesse mérito, a Uber alega que constitui um claro exemplo de economia compartilhada. Segundo a empresa, não há vínculo jurídico algum entre a companhia e os motoristas cadastrados no aplicativo, justamente por apenas ser disponibilizado um aplicativo, por meio do qual os motoristas gerem suas próprias atividades, sendo estes, portanto, responsáveis por determinar individualmente suas quantidades de horas trabalhadas diariamente, os horários de atuação, entre outros. Dessa forma, em suma, a Uber argumenta caracterizar-se como nada mais do que um intermediário entre os motoristas e os clientes, não sendo estabelecida qualquer relação empregatícia entre a empresa e os motoristas, o que resultaria na inexistência de qualquer responsabilização civil da mesma pelos atos cometidos pelos motoristas cadastrados, visto que estes seriam alegadamente autônomos. Em contraponto, há uma segunda corrente argumentativa relevante, segundo a qual o serviço prestado pela Uber a caracterizaria como uma empresa de transportes, e que os motoristas cadastrados no aplicativo seriam, portanto, funcionários da empresa. A consequência disso seria que, dessa forma, passaria a existir um vínculo empregatício entre a Uber e seus motoristas – agora, funcionários -, o que levaria à necessidade de adequação desse serviço a diversos requisitos característicos desse tipo de relação jurídica, como a necessidade de assinatura de carteira de trabalho, pagamento de horas extras, adicionais noturnos, entre outros. Segundo esses argumentos, a Uber não seria, portanto, meramente um intermediário entre os motoristas e os clientes, mas sim a empregadora desses motoristas, o que resultaria na necessidade de a empresa responsabilizar-se pelas ações de seus funcionários durante a execução do trabalho, como disposto nos artigos 932, III, e 933 do Código Civil.

A Jurisprudência brasileira também parece não ter encontrado um padrão a ser seguido quando de frente a uma situação envolvendo a natureza da relação existente entre a Uber e os motoristas. Decisões favoráveis às duas correntes argumentativas têm surgido recentemente, o que ilustra a indecisão de nossos aplicadores da Lei com relação a esse mérito.

Em fevereiro deste ano, por exemplo, a Justiça do Trabalho de Minas Gerais (Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região – TRT3) realizou um julgamento que repercutiu por todo o território nacional. Na decisão, estabeleceu-se que existe, sim, um vínculo empregatício entre a Uber e seus motoristas, e determinou-se que a empresa deveria assinar a carteira de trabalho dos motoristas, além de pagar a eles horas extras, adicionais noturnos, multas previstas na CLT, verbas rescisórias pelo rompimento do contrato sem justa causa e restituição dos valores gastos com combustível e a água e as balas oferecidas aos passageiros.

Contudo, recentemente, o mesmo Tribunal revogou essa decisão, que havia sido recorrida pela Uber. Na nova decisão, de maio de 2017, entendeu-se que empresas como a Uber “estabelecem contato direto entre consumidores e fornecedores [motoristas particulares]”. Dessa forma, o TRT3 determinou que inexiste vínculo empregatício entre a Uber e os motoristas, devido à possibilidade de estes afastarem-se do serviço durante meses, por vontade própria, e retornarem posteriormente sem eventuais prejuízos.

Não menos importante é pensar como se dará a relação da Uber e dos motoristas nos casos de reparação civil, em que é necessário arcar com os prejuízos de certas operações. Um caso marcante ocorre no final do ano de 2014, quando um motorista americano, aguardando para receber a chamada de corridas pelo aplicativo, atropela uma criança, que vem a falecer, ensejando diversas discussões no país sobre como lidar com a relação da empresa, dos motoristas e das vítimas, sobre quem deveria ser responsabilizado, principalmente quando se tratar de indenizações ou reparações no âmbito civil.

Nossa legislação, por exemplo, se propõe a lidar com a questão no seu Código de Defesa do Consumidor, na medida em que postula que o prestador de serviços deve responder pela reparação dos danos causados por prestação ineficaz dos serviços, conforme os artigos 14 e 17 do Código de Defesa do Consumidor (CDC). O mais importante, contudo, é perceber como se poderia pensar a possibilidade de imputar à Uber o pagamento desses danos, dado que existe um contrato firmado por meio do aplicativo da empresa, em que o pagamento é realizado por meio de um cartão de crédito. Dessa forma, a Uber seria obrigada a responder pelo percurso contratado, sujeita à cláusula de incolumidade do passageiro.

Ressalta-se decisão do 8º Juizado Especial Cível e das Relações de Consumo de São Luís de 2016 que determinou o pagamento de indenização a uma passageira que perdeu seu voo pois o motorista contratado pelo serviço da Uber errou o caminho, o que resultou em seu atraso, sob alegação de solidariedade passiva.. Não podemos simplesmente pensar que as novas tecnologias possam fugir de quaisquer responsabilidades de arcar com prejuízos das operações, pois de nada adianta dizer que se tratam de contratantes independentes para fugir da realidade quando o que se vê é uma relação em que a Uber, assim como o motorista, consegue lucrar, como já se viu nas recentes decisões na Califórnia, e tem um poder para arregimentar os motoristas e coordená-los pelo aplicativo. Também merece destaque a decisão supracitada, de São Luís, pelo comentário proferido pelo juiz Manoel Aureliano Ferreira Neto que aproveitou da decisão para dar algumas dicas à Uber para que seu serviço possa corrigir os erros e evitar que se dê guarida à indagações de erros e problemas que concernem ao aplicativo.

Não se trata aqui de banir ou minar quaisquer inovações que possam surgir no mercado num futuro próximo, e que venham a abalar a sociedade como está hoje definida, mas de oferecer a possibilidade de uma relação justa, em que todos possam se beneficiar da tecnologia. O que significa, portanto, que é necessário que possamos trazer também a empresa Uber para a equação quando algo der errado, dado que não pode se eximir da culpa. Ao contrário do que já afirmou o CEO Travis Kalanick em 2014, em entrevista ao The New York Times, não se busca dizer que a Uber fez algo de errado, mas reconhecer que, na realidade, problemas acontecem e nem tudo são rosas para o futuro das tecnologias disruptivas, na medida em que precisam lidar com a realidade.

Finalmente, tentou-se aqui apresentar alguns questionamentos e suscitar análises futuras, visto que não se pode impedir a inovação e a chegada de novas tecnologias, mas é possível que se busque um futuro melhor para todos. É preciso que todos tenham a oportunidade de satisfazer suas necessidades com o aplicativo e possam ter todos os seus direitos garantidos. Já diz o grande brocardo cinematográfico que com grandes poderes vem grandes responsabilidades, e disso temos de entender que não é possível conceber que a Uber fuja de quaisquer responsabilidades conforme nossa legislação. Muitas ações ainda estão por vir à tona, e caberá aos juízes e legisladores saber lidar com elas para que não se exclua o acesso do público em geral às possibilidades que a tecnologia nos oferece e que não tenham seus direitos violados.

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