Tecnologias e Segurança Pública: debates sobre policiamento, privacidade, vigilância e controle social
Escrito por
Luiza Dutra (Ver todos os posts desta autoria)
9 de janeiro de 2023
A contemporaneidade é marcada pela inserção de novas tecnologias, a exemplo da utilização de inteligência artificial, do videomonitoramento e do tratamento de dados pessoais por diversas instituições. No campo da segurança pública, principalmente nas corporações policiais,não poderia ser diferente: reconhecimento facial, hacking governamental e uso de câmeras na farda dos policiais são algumas inovações no campo do policiamento e segurança pública no Brasil, e todas estão sujeitas a debate público.
A despeito de visões mais inocentes e empolgadas, essas tecnologias trazem grandes questionamentos sobre controle social expandido por parte das instituições estatais e privadas. As preocupações ultrapassam as barreiras da promoção sofisticada de direitos fundamentais na era digital (como privacidade e proteção de dados pessoais): trata-se de refrear uma ampliação desmedida da vigilância e do poder punitivo pelo Estado, em defesa de direitos individuais básicos, como será criticamente abordado a seguir.
A utilização de tecnologias na área de Segurança Pública: novas roupagens de um velho policiamento e controle
O campo de segurança pública, no Brasil, assim como os estudos sociológicos acerca da criminalidade e das instituições estatais que circundam essa esfera, surgem, de maneira mais evidente, a partir da década de 1990 no Brasil e na América Latina. Ressalta-se que, há quase quatro décadas, vivemos em um país pautado por uma Constituição democrática. A atual Constituição brasileira foi elaborada após períodos ditatoriais e autoritários, em que direitos políticos e civis eram constantemente violados. Todavia, apesar do surgimento de um documento regulado por princípios democráticos, nota-se a existência de processos sociais conflitivos na sociedade brasileira, marcados por uma violência difusa.
As corporações no campo da segurança pública possuem um histórico de desrespeito aos direitos fundamentais, duramente adquiridos com a criação da Constituição de 88, assim como a utilização ilegítima da força e violência como forma de gerenciamento do controle sob a população e imposição da dita ordem pública. Essas marcas levantam discussões sobre as necessárias mudanças nas formas de agir da polícia, e nas ações jurídicas, que são, em muitos casos, direcionadas para determinadas parcelas da população.
Com o advento de um expressivo aporte tecnológico, o controle social, a vigilância massiva, bem como a privacidade dos indivíduos , estão sendo gerenciadas a partir da reestruturação das dinâmicas institucionais no campo da segurança, em que o contrato social é dinamizado a partir dos códigos de programações dessas tecnologias. Ou seja, as condutas institucionais e pessoais são moldadas, em grande medida, pelos mecanismos de controle algorítmico.
As inovações tecnológicas se apresentam nesse campo como forma de inserir certa neutralidade e afastar vieses discriminatórios na atuação dessas instituições. A polícia brasileira, a título exemplificativo, argumenta que as tecnologias poderiam auxiliar em seu fazer-policial diário, evitando ações desmedidas dos policiais, barrando apontamentos da sociedade civil de violação de condutas por parte dos policiais que deveriam estar dentro das leis, assim como a proteção do próprio policial contra acusações falsas de violência.
Contudo, os debates tanto na academia quanto nos movimentos sociais, levantam questionamentos sobre a real efetividade na utilização dessas ferramentas no combate ao crime. Se estamos adentrando na esfera de relações em que o Estado penal e suas instituições possuem uma gerência no controle da vida, como olhar criticamente para os tecnoautoritarismos presentes nessas interações?
Reconhecimento facial e hacking governamental: as duas faces de uma vigilância massiva
Com relação ao reconhecimento facial, vasta bibliografia vem se debruçando na discussão e realização de pesquisas para averiguação da real utilidade dessa ferramenta na área de segurança, fomentando, inclusive, projetos de lei que defendem o banimento desse tipo de tecnologia na segurança. O principal argumento dos projetos foi que a tecnologia tem sido considerada invasiva e discriminatória; a título exemplificativo temos os casos de São Francisco, onde estão localizadas as grandes empresas de tecnologia do Vale do Silício, e que foi a primeira cidade dos Estados Unidos a aprovar, em 2019, a proibição do uso do reconhecimento facial pela polícia, além de Boston e Cambridge, no ano de 2020.
Em estudo intitulado “Um rio de olhos seletivos: uso de reconhecimento facial pela polícia fluminense”, foi demonstrado que o termo de referência de contratação apresentado pelo estado do Rio possui omissões em relação à ausência do período de execução e falta de diálogo com os moradores, além de sua finalidade se direcionar somente para uso repressivo e fortalecimento de produção de provas de inocência policial. Por fim, foi constatada arbitrariedade quanto ao direito de acesso às imagens produzidas pelas câmeras.
A falta de criticidade sobre a continuidade de uma ação racializada, apesar do uso de tecnologias na área de segurança, parece demonstrar a fragilidade em se avaliar um problema estrutural que leva a um racismo algorítmico. Segundo Silva (2022), o reconhecimento facial é usado dentro de um sistema que o mecanismo fim é o encarceramento em massa da população negra por meio da falsa identificação de suspeitos.
Outra tecnologia que pode ser brevemente referenciada, são os softwares de hacking governamental que, em que pese ainda não possuam vasta magnitude no campo de discussão acadêmica, começam a aparecer mais fortemente nos debates jurídicos-institucionais.
Hacking governamental são ferramentas utilizadas para vigilância direcionada e secreta de dispositivos digitais e é entendido como uma das formas utilizadas para a quebra de criptografia, com a narrativa de combater o terrorismo e o crime. Ocorre que, segundo mostram documentos oficiais e estudos internacionais, essas ferramentas espiãs estão sendo utilizadas para razões ilegítimas, como reprimir opiniões diversas de específicos governos, monitoramento e repressão política.
O caso com maior repercussão internacional foi da ferramenta Pegasus, fornecido pela empresa israelense NSO Group para agências de inteligência, instituições policiais e órgãos militares no mundo todo, com a capacidade de comprometer a maioria dos dispositivos móveis com sistemas operacionais Android e iOS. A invasão ao dispositivo móvel ocorre, normalmente, com um simples clique da vítima em um link suspeito, ou a partir do “click zero”; com isso, o invasor tem acesso a todas as mensagens de texto, e-mails, senhas, fotos, vídeos, áudios, histórico de buscas e de localização.
Como mostra o Relatório do Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, sobre privacidade na era digital, o malware Pegasus foi utilizado para vigilância de mais de 50.000 números de telefones; em uma análise forense de vários dos telefones infectados, relatórios em 2021 revelaram que pelo menos 189 jornalistas, 85 defensores de direitos humanos, mais de 600 políticos e funcionários do governo, incluindo ministros, e diplomatas foram afetados como alvos.
A ação de acesso à câmeras e microfones, transformando celulares em mecanismos de vigilância ativa, fere fortemente o direito à privacidade, do devido processo legal e do julgamento justo, uma vez que o hackeamento permite não só acesso aos dados do dispositivo, conteúdo e interações com outros dispositivos, mas também a alteração a manipulação do dispositivo infectado.
Caminhando no sentido contrário do cenário internacional, que buscam o banimento de malwares de espionagem, como a ferramenta Pegasus, no Brasil, segundo relatório da pesquisa intitulada “Mercadores da Insegurança: conjuntura e riscos do hacking governamental no Brasil”, o uso dessas ferramentas autoridades brasileiras se encontra em estágio fortemente avançado de assimilação e, basicamente, qualquer recurso de segurança em dispositivos pessoais é superado pelas suas capacidades, que mostra um campo de fortes riscos sociais e jurídicos.
Ainda, a utilização dessas ferramentas por instituições da segurança pública pode criar um ambiente de controle irrestrito e não mapeável, impossibilitando a proteção de dados pessoais e da privacidade.
Câmera nas fardas dos policiais: proteção de imagens e dados
Especificamente, a utilização de câmeras no fardamento das policiais surge, em meio às disputas dentro do campo de Segurança Pública em nosso país, como uma forma de gerenciar uma melhor atuação policial, reduzindo abusos de poder, enfrentando o alto número de mortes praticadas pelos agentes e evitando mortes dos próprios policiais. Em que pese as promessas de melhorias sociais a partir do uso dessa tecnologia, um olhar crítico com relação a esse campo merece ser realizado.
As câmeras corporais nas fardas dos policiais, dentro deste cenário de ilegalismos na atuação das instituições de segurança pública como apontado por autores como Adorno e Dias (2014), Kant de Lima (2014), Costa e Lima (2014) e Muniz e Junior (2014), aparecem como forma de gerir o uso ilegítimo e letal da força por parte dos policiais, além de proteger o próprio policial acerca de alegações falsas de cometimentos de violências. Internacionalmente se referindo, o uso dessa tecnologia ganha ascensão nos Estados Unidos, por meados de 2013, a partir de uma demanda pública frente às mortes praticadas por policiais, principalmente de civis negros, e que ganharam repercussão midiática, demostrando uma forma de atuação brutal por parte das policiais .
Contudo, as pesquisas internacionais apresentam alguns pontos instigantes e delicados já identificados na utilização dessa tecnologia: a) alguns estudos demonstram que inexistem diferenças nos índices de uso de força a partir da adoção das câmeras corporais (LUM, et al, 2020); b) outros estudos mostram que os policiais equipados com câmeras no corpo são tão propensos a usar a força quanto aqueles sem elas; c) por outro lado, algumas pesquisas apresentam a ineficácia de acesso, por parte de civis que se envolvem em uma ação com violência policial, às filmagens de violência policial (RINGROSE, RAMJEE, 2020); d) as imagens produzidas pelas câmeras aparecem menos como uma forma de responsabilização, e mais uma maneira de produzir provas contra civis e desencorajar a liberdade de expressão (RINGROSE, RAMJEE, 2022); e) é de se salientar que alguns estudos demonstram diminuição do uso da força por policiais, contudo outros caminham na direção contrária (ARIEL, et al, 2015; SUTHERLAND, et al, 2017); f) por fim, algumas pesquisas apresentam uma redução no número de abordagens policiais e de reclamações contra policiais a partir da utilização das câmeras nas fardas dos policiais (PETERSON, et al, 2018).
No Brasil, as câmeras começaram a ser testadas nas fardas da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul no ano de 2022, mas em alguns outros Estados já vem sendo implementadas, como Santa Catarina e Rondônia, no ano de 2019, e em São Paulo, no ano de 2021, a títulos exemplificativos. Em análises iniciais, as pesquisas nacionais demonstram que as câmeras nas fardas dos policiais tendem a diminuir a violência praticada pelos agentes de segurança pública, além de aumentar o controle e supervisão da atividade policial. A tecnologia, nesse sentido, se afastaria de uma ideia de “salvação” ou solução única e adentraria no campo de profissionalização e governança, com o intuito de fazer crescer a eficiência das ações policiais junto de uma racionalidade burocrática, através de supervisão, controle e aumento das formas de accountability, como sinalizam Lima, Bueno, Sobral e Pacheco (2022). Ainda, aposta-se na redução da impunidade com relação aos abusos policiais e protege policiais de falsas acusações.
Por outro lado, a atenção ao uso das imagens e dados gerados pela utilização das câmeras nas fardas dos policiais, além da proteção à privacidade dos sujeitos que aparecem nas filmagens, bem como o acesso, armazenamento e gerência dessas mesmas imagens, aparecem como pontos cruciais e necessários aos debates. A gerência das imagens e dos dados, possibilitando a cadeia de custódia legal dos registros, parece só ser bem manejada se levado em conta as variáveis que em grande medida protegem a privacidade dos sujeitos e a administração das imagens.
Os primeiros dados produzidos sobre utilização de câmeras nas fardas dos policiais no Brasil demonstram uma forte aderência da população aprovando o uso dessas tecnologias pelos agentes de segurança. Ainda, aparecem as câmeras corporais como influentes, em análises incipientes, na redução do uso da força e de prisões por parte dos policiais.
Em sentido contrário, recentemente foi noticiado o caso de policiais militares da ROTA do Estado de São Paulo que taparam as suas câmeras durante morte de suspeito em Osasco, demonstrando que as tecnologias não são “milagres” que ocorrem trazendo mudanças nas formas de um agir violento que revelam formas delicadas de governança das instituições policiais brasileiras.
Conclusão
A câmera nas fardas dos policiais, o hacking governamental e o reconhecimento facial dentro do campo de segurança pública, são temas que versam, em grande medida, sobre tratamento de dados pessoais e dados pessoais sensíveis e direito à privacidade. O princípio da autodeterminação informativa, por exemplo, que seria a garantia do controle dos cidadãos sobre suas próprias informações, um dos alicerces da proteção de dados pessoais, segundo a Lei Geral de Proteção aos Dados, e presente também no Anteprojeto de LGPD Penal elaborado pela Comissão de Juristas do Senado, é confrontado com a utilização dessas ferramentas, ainda mais sem qualquer diretriz institucional e legislativa para seus usos. Ainda, é importante destacar a existência do Projeto de Lei 1515/2022, proposto pelo deputado Coronel Armanda (PL-SC), e que disputa espaço e divergência política com a proposição do APL.
No mais, parece que a utilização de princípios clássicos do Direito Penal, como o princípio da proporcionalidade e da necessidade, podem auxiliar uma implementação com parâmetros a serem seguidos para utilização de algumas tecnologias de monitoramento na esfera de segurança pública, na tentativa de estancar uma possível vigilância em massa indiscriminada.
Nesse sentido, a criação e utilização de tecnologias pelas instituições de segurança pública, principalmente pelas polícias brasileiras, com foco nas Polícias Militares, levanta uma série de problemas, nuances e apontamentos necessários a serem feitos. Isso é evidente com a implementação de câmeras corporais nas fardas dos policiais, uma vez que estamos tratando de novas formas de policiamento, de produção de imagens e dados de civis, de imagens e dados dos próprios policiais, além da relação de como lidar com privacidade. À medida que as câmeras vão sendo implementadas, é necessária uma avaliação sistemáticas das políticas – efeito das câmeras nas relações com as comunidades e privacidade, as preocupações levantadas pelos oficiais da linha de frente, as expectativas de que as câmeras criam em termos de processos judiciais – e práticas do seu uso que se entrelaçam com formas de governança e accountability.
Sem adentrar em um binarismo bom X mal, se afastar da crença mágica das tecnologias na área de Segurança Pública parece urgente. A aquisição de equipamentos tecnológicos é apenas um dos passos de um denso processo de verificação das práticas e fiscalização da atuação policial. A simples utilização de câmeras corporais sem um olhar atento para accountability e compliance pode cair no tão conhecido ciclo violento do fazer-policial, apenas com novos trajes.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Referências completas:
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Luiza Dutra (Ver todos os posts desta autoria)
Luiza Correa de Magalhães Dutra, doutoranda e mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul. Especialista em Segurança Pública, Cidadania e Diversidade pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bacharela em Ciências Sociais pela UFRGS, com período sanduíche realizado no Science-Po Rennes, França, e Bacharela em Direito pela PUCRS. Pesquisadora.