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Subsídios para compreensão da extinção da norma 4 pela Anatel

7 de abril de 2025

O IRIS, o Instituto Nupef e o data_labe se juntaram para explicar o que significa e quais os impactos da extinção da norma 4 em termos de retrocessos à universalização da internet.

A Agência Nacional de Telecomunicações anunciou o encerramento de uma norma que diferenciava o serviço de telecomunicações do serviço de Internet. Isso ocorreu no dia 03 de Abril de 2025 e essa norma se chama Norma 4/1995. O primeiro problema é que a Anatel não pode suspender uma norma criada pelo Ministério das Telecomunicações. O segundo é que esta suspensão não foi discutida pelo Conselho Gestor da Internet. Também não foi pautada para debate no Conselho Consultivo da Anatel. O terceiro é que a extinção da Norma prejudica seu desenvolvimento, bem como o acesso à Internet. Nós vemos este movimento como uma tentativa da Anatel de atribuir a si mesma a prerrogativa de regular a Internet, o que não é sua função. Entenda mais lendo o texto na íntegra:

O que aconteceu?

No dia 3 de abril de 2025, o Conselho Diretor da Anatel aprovou a extinção da Norma nº 4/1995, instrumento jurídico editado pelo Ministério das Comunicações que estabelecia a separação entre serviços de telecomunicações e os serviços de conexão à internet, classificados como Serviço de Valor Adicionado (SVA), conforme previsto na Lei Geral de Telecomunicações (LGT).  A decisão foi tomada no contexto da aprovação do novo Regulamento Geral de Serviços de Telecomunicações e está prevista para entrar em vigor a partir de janeiro de 2027. A agência justificou a medida na expectativa de que a Reforma Tributária elimine a distinção fiscal entre SVA e serviços de telecomunicações.

A proposta de revogação da norma não é recente. Desde 2022, a Coalizão Direitos na Rede vem alertando que a Consulta Pública nº 41 da Anatel, apresentada sob o argumento de simplificação regulatória, na verdade propunha uma alteração perigosa na concepção jurídica do acesso à Internet no país. Como apontado na época, o relatório de Análise de Impacto Regulatório (AIR) indicava a intenção de redefinir a conexão à Internet como um serviço de telecomunicações, contrariando o arcabouço legal consolidado pela LGT, pelo Marco Civil da Internet e por decisões do Supremo Tribunal Federal.

Entendendo a parte técnica 

Se estamos falando que a grande mudança é que a Anatel equiparou “serviço de conexão à internet” ao “serviço de telecomunicações”, precisamos entender na prática o que são esses dois conceitos.

Resumidamente, podemos dizer que o serviço de telecomunicações é como a estrada e o serviço de conexão é o carro que usa a estrada. Vejamos a tabela de diferenças:

Serviços de telecomunicações Serviços de conexão à internet
    • Função: Criar uma via de transmissão para que pacotes de dados trafeguem.
    • Legislação: art. 60, LGT
    • Camada OSI: Física e de Enlace

 

  • Infraestrutura: redes de fibra óptica, cabo coaxial, rádio, satélites etc.
  • Agentes do mercado: Todas as empresas provedoras de acesso à internet (desde Vivo, Tim, até pequenos provedores)
  • Exemplo prático: Quando você conecta o cabo de fibra óptica ao roteador, o serviço de telecomunicações está garantindo que os dados circulem pela rede até seu dispositivo.
  • Função: Viabilizar acesso à internet pelas funcionalidades adicionais, como navegação na web e streaming.
  • Legislação: art. 61, LGT
  • Camada OSI: Rede, fornecendo o roteamento entre protocolos e provedores.
  • Serviços: resolve o DNS, identifica o IP do site e estabelece uma conexão TCP/IP etc.
  • Agentes do mercado: Provedores de acesso à Internet, provedores de serviço (e-mail, arquivos etc).
  • Exemplo prático: responsável por transformar os dados recebidos em páginas web quando você acessa um site.

Por que a diferenciação é importante?

Incentivo à expansão da Internet

Nos anos 90, quando a LGT foi criada, o objetivo era incentivar a expansão dos serviços de internet no Brasil, evitando uma carga regulatória pesada que poderia desestimular investimentos. Dessa forma, ao classificar o acesso à internet como Serviço de Valor Adicionado, o legislador buscou criar um ambiente mais flexível e favorável à inovação tecnológica.

Refletir as especificidades técnicas de cada camada da internet

A internet é uma rede mundial de computadores que se comunicam usando protocolos comuns (que são como a gramática e a linguagem da internet). O modelo OSI (Open Systems Interconnection) é uma estrutura que organiza os diferentes protocolos em camadas e possibilita que cada agente do ecossistema seja responsabilizado e regulado no limite da sua atuação técnica. A diferenciação estabelecida na Norma 4 reflete essa separação técnica e possibilita que diferentes regulações incidam sobre diferentes serviços.

Por que estão mudando isso?

A justificativa defendida pela Anatel para extinguir a Norma nº 4/1995 está ancorada em dois pilares: 1) ausência de necessidade técnica para a separação entre serviços de telecomunicações e Serviços de Valor Adicionado (SVA) (como o Serviço de Conexão à Internet – SCI), e 2) a Reforma Tributária, prevista para 2027, que eliminará as diferenças tributos como ISS e ICMS, unificando-os no novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). 

Segundo o conselheiro relator Alexandre Freire, com a consolidação do modelo de banda larga fixa via Serviço de Comunicação Multimídia (SCM) e o fato de que, nas redes móveis, o acesso à Internet já ocorre sem mediação explícita de um SCI, não haveria mais razões técnicas para manter a separação entre os dois serviços, uma vez que tanto nas redes móveis quanto nas redes fixas o acesso à Internet já ocorre por meio do SCM. Para ele, a manutenção dessa distinção cria uma “dualidade” que gera insegurança jurídica e complexidade tributária, além de dificultar a fiscalização por parte da agência e dos entes arrecadatórios estaduais. 

Alguns aspectos preocupam, no entanto: o primeiro é que essa argumentação ignora o fato de que o 4g e o 5g não estão universalizados no Brasil, que ainda conta com redes ativas de 2g e 3g, que foram inclusive fundamentais para comunicação em casos de desastres climáticos como as enchentes no Rio Grande do Sul, – pois nos principais momentos de crise foram elas que funcionaram bem para comunicação das equipes em longa distância.  – por exemplo. O segundo aspecto preocupante é submeter decisões regulatórias que afetam a maneira como se organiza o desenvolvimento da Internet se organiza à capacidade da Agência de fiscalizar a arrecadação, em vez de buscar melhorar seus métodos de fiscalização do setor de telecomunicações. 

Embora as tecnologias de rede tenham evoluído e, em muitos aspectos, se integrado, ainda há diferenças importantes que justificam a manutenção de distinções. 

  • Trata-se de tecnologias diferentes: apesar de o VoLTE permitir que a voz seja transmitida como dados, a infraestrutura subjacente para redes móveis e fixas ainda pode diferir significativamente. 
  • Do ponto de vista do uso do espectro, o espectro de radiofrequência é gerido de forma diferente para redes móveis e fixas, e isso pode impactar a forma como os serviços são prestados e regulamentados. 
  • Ademais, as aplicações e o uso dos serviços podem variar entre redes fixas e móveis, o que justifica a manutenção de distinções regulatórias.

Por que essa mudança é um problema?

Usurpação de competência do Ministério das Comunicações 

A advogada Flávia Lefevre explica de forma nítida a nulidade do ato da Anatel:

Como é que uma autarquia vai revogar uma portaria do Ministério das Comunicações? Alegam o artigo 214 da LGT que fala que eles podem revogar normas administrativas, mas que digam respeito às telecomunicações. Ou seja, aquela disposição diz respeito a telecomunicações e a Norma 4 não é sobre telecomunicações, é sobre Serviço de Valor Adicionado que, de acordo com a LGT, não é atribuição da Anatel. Então, a Anatel não têm competência legal para fazer a revogação da Norma 4.

É importante destacar que em 1995 foi publicado no mesmo dia tanto a norma 4 (portaria 147) quanto a portaria de criação do Comitê Gestor da Internet (CGI.br), reforçando o espírito legislativo do poder executivo de estabelecer uma política pública alicerçada na diferenciação entre o serviço de telecomunicações e de Internet.

Prejuízo à competitividade do mercado

As empresas de telecomunicações recolhem ICMS, mas as empresas de serviço de conexão à Internet não. Apesar das justificativas tributárias mencionadas pela Anatel, a Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações (ABRINT), maior associação de provedores de internet e que tem representação significativa dos pequenos provedores, afirma: “o enquadramento indevido do serviço unicamente como telecomunicações terá por consequência o aumento dos preços”, e ainda de acordo com a ABRINT 

Sua aplicação [da Norma 4], aliada a um regime de regulação assimétrica bem conduzido ao longo dos anos, tem incentivado o empreendedorismo nacional e criado um ambiente de competição saudável no mercado de telecomunicações.

Contradição ao modo de funcionamento da internet

Grande parte do sucesso da expansão da Internet diz respeito ao seu caráter aberto e interoperável. Demi Getschko aponta:

Lembremos, sempre, que na rede funciona apenas o que é global. Regras ou restrições localizadas, específicas, são fadadas a serem rapidamente contornadas e superadas pela Internet. (…)É um mundo novo, do qual descortinamos apenas a ponta da unha, mas que traz em si, todas as potencialidades, todas as paixões, qualidades e defeitos humanos. Querer dela mais do que pode, tecnicamente, oferecer, é esperar colher jacas em coqueiros.

A condensação conceitual promovida pela extinção da Norma 4 ignora parte essencial da construção da Internet: as diferentes camadas da Internet operando de acordo com suas funcionalidades, propósitos e delimitações técnicas. 

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