Se tem vigilância, a vadiagem é resistência!
Escrito por
Wilson Guilherme (Ver todos os posts desta autoria)
16 de dezembro de 2024
Vigilância, vadiagem e direito penal não são palavras que começaram a se cruzar agora. Elas compartilham uma longa história, e a CriptoFrevo 2024 me fez ferver sobre isso…
No dia 19 de outubro de 2024, eu pisei em solos recifenses, quase dois anos depois do I Seminário de Privacidade das Comunicações, Investigações e Direitos. Voltar a Recife trouxe à tona memórias daquele evento e minha primeira fala institucional enquanto parte do IRIS. Na época, foi um espaço de aprendizado, trocas e, especialmente, de conhecer presencialmente minha equipe de trabalho.
Agora, dois anos depois, volto à cidade, novamente a convite do IP.rec, para acompanhar e debater no evento realizado nos dias 18 e 19. E meu relato será especialmente sobre as reflexões que o último painel da CriptoFrevo: “Vadiagem ou Liberdade? Entre tecnologias de vigilância e expressão” me despertou. Fica comigo, que te garanto que o papo vai render…
Do frevo ao vigilantismo…
Antes de tudo, talvez você esteja se perguntando: O QUE É UMA CRIPTOFESTA?
As Criptofestas são um circuito de ações organizadas de forma descentralizada, para debater sobre tecnologia, segurança, vigilantismo e criptografia. Alguns registros apontam que seu início se deu na Austrália em meados de 2012, mas, sem dúvida nenhuma, o Brasil é, hoje em dia, um dos grandes países no circuito de articulações do debate sobre criptografia a partir de uma perspectiva mais popular – inclusive tenho outro texto aqui sobre isso e traz uma explicação sobre criptofestas centrada em uma campanha nacional desenvolvida em defesa da criptografia forte.
A CriptoFrevo é mais uma dessas articulações cuja finalidade é unir a cultura do Frevo recifense com o debate sobre tecnologia e vigilantismo. A organização é feita pelo Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec) e já está em sua segunda edição. As atividades incluíram desde palestras – como o painel que inspirou esta reflexão – até oficinas práticas, abordando temas como envenenamento de IA, capoeira e frevo, e a criação de imagens com inteligência artificial generativa.
É preciso demarcar que as criptofestas, especialmente as realizadas no nordeste e no norte brasileiro (como a CryptoBera, em Rondônia, e a CriptoCuia no Pará), demarcam a descentralização dos debates sobre tecnologias, que historicamente vem sendo constituídos a partir do olhar colonizador de conhecimentos e culturas do eixo sul-sudeste-centro-oeste.
Êh vamos vadiar, êh vamos vadiar…
A mesa que me trouxe as reflexões que apresentarei neste texto foi composta por: Otávio Bastos (Mexe com Tudo), Matheus Drama (Pão e Tinta), Yasmin Rodrigues (O Panóptico/CESeC), com a moderação de Marcos César (IP.rec). E o subtítulo deste tópico de meu texto foi um grito/canção puxada por um dos mestres do Frevo presente, que desafortunadamente não consegui registrar seu nome para dar-lhe o crédito. Mas é importante citar que tudo aqui perpassa pelos diálogos feitos por estas pessoas e pelas interações da audiência: seres humanos, de corpo, matéria, intelecto e cultura, afinal em tempos de Inteligência Artificial, precisamos nomear cada vez mais nossas inteligências originais.
Bem, para começar de fato a reflexão, talvez eu precise constituir um emaranhado de teias, e depois desfazer os nós para chegarmos todes juntes ao final. E por mais provável que pudesse ser, para iniciar essa conversa a partir da Trilha principal da CriptoFrevo, em 19 de outubro de 2024 (data do painel), eu vou precisar começar em 03 de outubro de 1941, ou talvez de 13 de maio de 1888.
Essas datas significam alguma coisa para você?
A segunda é a data da abolição simbólica da escravatura. Nomeio de simbólica porque, por mais jurídica que fosse, ela foi também ficcional em termos sociais, de reconhecimento e redistribuição. Uma vez que nenhum negro escravizado foi indenizado por todos os sofrimentos vividos no processo de exploração de sua mão de obra. Pelo contrário, foram largados à própria sorte, ou azar, pois que sorte teriam aqueles de quem historicamente nem os “céus estariam ao seu lado?”. A situação às quais foram expostos, sem dúvida, impactou diretamente em suas condições psicológicas, patrimoniais e físicas.
A exaustão de anos de exploração, somada à miséria em que se encontravam, impactou, inclusive, em sua força de trabalho, a partir de então supostamente remunerada. O Estado, para refrear o “ócio” destes negros, começou a perseguir e responsabilizar, desde o período Imperial até o republicano, pessoas negras que fossem vistas como “vagabundas”, “vadias” ou outros tantos nomes dados para sujeitos que não estivessem servindo como mão de obra.
Mas, em termos legais, é em 03 de outubro de 1941 que a Lei de Contravenções Penais, assinada pelo então Presidente da República Getúlio Vargas – talvez já dando indícios do que viria anos a seguir – passa a dispor sobre a tipificação da vadiagem como ilícito penal.
Art. 59. Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o
trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita:
Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses.
Parágrafo único. A aquisição superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena.
Em um país em que a pobreza, a miséria, e o desemprego tem cor, perfil e rosto, sem dúvida alguma essa legislação se aplicaria de forma desproporcional, não? Prova disso foi o uso de tal normativa nos períodos ditatoriais.
Mas Wil, com a ascensão do regime democrático, instaurado pela Constituição Federal, essa lei já não teria mais espaço, né?
Cara pessoa leitora, meu desejo é que as respostas jurídicas e sociais do Brasil fossem simplificadas em formas equacionais, como nesta ponderação. Por exemplo, em 2024 o Governo de Pernambuco fez um processo de licitação de Câmeras de reconhecimento facial, com previsão editalícia para monitoramento de vadiagem, nestes precisos termos! Mas vale citar que o estado nordestino não é o único a usar tal terminologia; lá em 2022, o estado de São Paulo também fez um edital com tal previsão.
A utilização do termo vadiagem, em editais, é justificada por fundamentações jurídicas, uma vez que a normativa sobre vadiagem ainda se encontra em vigência. Mas, antes mesmo do olhar jurídico, precisamos ter atenção para a base simbólica e sociológica que o uso da tecnologia para monitorar vadiagem tem.
Se a sua tecnologia é vigiar, a minha é vadiar…
O termo vadiagem, em bases legais, tem a configuração já antes mencionada. Mas em termos sociais tem ainda formatações de raça, gênero, sexualidade, classe e região. Afinal, quando eu digo “Olha ali aquele vadio”, a imagem socialmente constituída na sua mente muito provavelmente não será de um homem-cis, branco, jovem e com “expressão” heterossexual.
Isso se dá, especialmente, porque as tecnologias do racismo brasileiro já moldaram nosso imaginário coletivo sobre quem pode descansar, e quem precisa estar constantemente trabalhando. Vide quem são as principais pessoas no seu entorno que trabalham na escala 6 X 1 – eu sei que esse é outro assunto, e volto nele outro dia.
Enquanto a tecnologia da branquitude for vigiar nossos corpos negros, pobres e periféricos para não podermos desfrutar do ócio – não como um produto, porque o ócio não precisa ser criativo, sendo só ócio ele já basta! – as nossas tecnologias tem que ser da vadiagem, do descanso, do sossego, do sentar em um praça para ver as crianças correndo, ver o por do sol, e ficar ali, só parado, vendo a vida passar.
A vadiagem é também uma forma de resistência ancestral! Afinal, “combinaram de nos matar. A gente combinamos de não morrer”.
Termino esse texto, sem chamada nenhuma de leitura, vídeo ou material complementar, porque eu quero que você entenda: VAMOS VADIAR!
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Escrito por
Wilson Guilherme (Ver todos os posts desta autoria)
Mestrande em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça, pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR; Graduado em Direito pela Faculdade Interamericana de Porto Velho; Pesquisadore Bolsista do Instituto de Referência em Internet e Sociedade – IRIS; Mentore e ex-embaixador do Programa Cidadão Digital – Safernet Brasil; Ex-Coordenador de Práticas, Pesquisas e Extensões Jurídicas da Faculdade Católica de Rondônia – FCR (2022); Bolsista do programa sobre saúde mental para crianças e adolescentes da ASEC; Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa e Ativista Audre Lorde. Tem como área de interesse: direitos humanos, infâncias e juventudes, sexualidade, raça e gênero, intersecionalização entre tecnologia e educação para direitos humanos.