O futuro do trabalho passa pela Internet? Alguns desafios precisam ser considerados antes de dizermos sim ou não
Escrito por
Ana Paula Camelo (Ver todos os posts desta autoria)
3 de junho de 2020
Mais do que nunca, a Internet se revela infraestrutura e ferramenta chave na criação e/ou adaptação de rotinas de trabalho. A pandemia do Coronavírus impôs a um grande e diverso grupo de profissionais uma nova dinâmica que desafia não apenas a execução de tarefas e atividades antes rotineiras, mas aspectos da cultura organizacional e comportamentos e hábitos individuais e coletivos no contexto de trabalho remoto. Neste texto, examinamos alguns dos desafios específicos da conjuntura brasileira que tem grande impacto nessa agenda de transformações.
Trabalho remoto: Tendência irreversível?
Que a Internet facilita o trabalho durante a pandemia, isso é um fato! No entanto, é urgente a discussão sobre essa nova realidade por diferentes ângulos e sem perder de vista que nem todos serão impactados da mesma forma, na mesma velocidade e intensidade. Nem todas as profissões e atividades têm a opção de considerar a opção trabalho remoto. E para aquelas que compartilham esse “privilégio”, inúmeros e diversos são os desafios.
Antes mesmo do mundo imaginar que enfrentaria uma pandemia como essa, muitos já discutiam o perfil e a rotina do trabalho do futuro afetadas por “tendências irreversíveis” como ambientes remotos e home office. Algo que só se tornaria possível pelo uso da internet como espaço e ferramenta de trabalho.
Diversas publicações e organizações internacionais (como Mckinsey, o Fórum Econômico Mundial e a própria Organização Internacional do Trabalho) e nacionais já apontavam para esse movimento. Em 2018, um estudo da Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades (Sobratt) já apontava o teletrabalho como realidade. Pesquisa realizada pela organização com 300 empresas de diferentes setores e tamanhos, distribuídas em todo o país, mostrou que a modalidade de teletrabalho, ou home office, já era vivenciada por 45% das empresas participantes, com outras 15% avaliando implementar a modalidade. Todas muito incentivadas por expectativas de melhor produtividade e maior satisfação dos profissionais devido à flexibilização da jornada de trabalho, redução da mobilidade urbana e melhor qualidade de vida, como aponta a própria Sobratt.
A situação de emergência global acelera a adoção desse modelo, sendo considerado por muitos especialistas “um caminho sem volta”. No entanto, enquanto empresas como Twitter e XP Investimentos se tornaram notícia por permitirem seus funcionários trabalharem remotamente “para sempre”, outras estão ainda discutindo como se adaptar.
Gargalos tecnológicos desafiam empregados e empregadores
Essa “nova realidade” de isolamento evidência gargalos tecnológicos significativos antes invisibilizados. Inúmeros debates chamam atenção para uma possível falta de infraestrutura e capacidade para atender ao crescente uso e demanda da população por mais rede e maior velocidade. Como noticiado, a União Europeia chegou a alertar sobre uma possível sobrecarga da banda larga por causa de home office e streaming, enquanto que empresas como Facebook já encaravam a administração do tráfego como um importante desafio pela frente. Algumas plataformas anunciaram redução de taxa de bits na transmissão de vídeos também no Brasil.
Esse desafio se agrava, por sua vez, tendo em vista a dificuldade de acesso não apenas à Internet em si, mas a equipamentos e dispositivos adequados. Diferenças de classe social, localidade e estrutura da moradia dos trabalhadores, dentre outros fatores, quando somados, tornam a experiência do home office ainda mais desafiadora.
“Nas periferias, trabalhar em casa durante pandemia esbarra na qualidade da internet”, como destacou reportagem da Folha de São Paulo chamando atenção para a nova rotina de muitos trabalhadores e trabalhadoras tentando equilibrar as demandas profissionais e os recursos e infraestrutura disponíveis. O texto sublinha as limitações que moradores de bairros periféricos enfrentam, não somente para trabalhar, mas também para estudar e consumir bens culturais em função da falta ou acesso limitado à internet. Essas dificuldades decorrem dos altos custos de conexão, da falta de dispositivos no domicílio ou mesmo de um espaço adequado. E a falta de computadores é sentida também pelas empresas que tentam providenciar dispositivos para seus funcionários levarem para casa e encontram dificuldades diante da grande procura, já que muitos não dispõem desses equipamentos, seja como computador de mesa ou notebook.
A falta de domicílios com acesso à Internet e dispositivos conectados, para além do celular, é um obstáculo relevante, como demonstra a recém publicada TIC Domicílios 2019.
Segundo dados da pesquisa, 20 milhões de domicílios não possuem Internet (28%) e, nos últimos anos, observou-se uma redução da presença de computadores (computador de mesa, notebook e/ou tablet) nas casas dos brasileiros. Outro dado significativo é que um a cada quatro brasileiros não usa a Internet, totalizando 47 milhões de não usuários. Entre aqueles que alegam ter acesso à Internet, 99% afirma fazer esse uso via celular, sendo que 58% acessam a Internet somente pelo celular. Quando se faz um recorte por classe social, os dados são reveladores. Quanto ao acesso à Internet de banda larga e por meio de dispositivos variados (considerando computadores, notebooks, tablets e celulares), as classes A e B vivenciam uma realidade bem díspar da população que se encontra nas classes DE. Dados da própria pesquisa revelam que 85% da população das classes DE concentram uso exclusivo via celular. Considerando a crescente demanda por conexão e por dispositivos adequados para atividades profissionais, essa realidade é preocupante.
Tecnologia por si só não basta: conhecimentos e habilidades digitais
Além disso, é importante considerar que ceder um computador aos funcionários não é suficiente. Essa nova configuração demanda, em muitos casos, disponibilização de infraestrutura de acesso remoto, VPN, licenças especiais, firewall, autenticação em dois fatores, criptografia, além de conhecimento sobre o que fazer e o que não fazer durante o trabalho remoto. Em muitos casos, faltam informações, regras e treinamento para um uso seguro de ferramentas digitais e esse aspecto chama atenção para uma discussão paralela sobre habilidades e competências específicas para essa nova rotina e uma corrida para requalificação dos profissionais.
Segundo dados da TIC Domicílios de 2019, dentre as principais atividades dos usuários na Internet estão a comunicação (73%) e a busca de informação e desempenho de atividades profissionais pela Internet (33%). Novamente, os dados mostram diferença significativa entre as classes sociais e o perfil de educação dos usuários, sinalizando uma lacuna considerável nos usos e apropriação das redes para fins profissionais, educacionais, ou até mesmo no ambiente de trabalho.
Conclusão
Estamos falando aqui de mercados de trabalho impactados, desafiando empregados e empregadores. A transferência do trabalho presencial tradicional para o remoto não é processo automático, simples, ou tão imediato quanto o isolamento tem feito parecer. Pelo contrário, exige acesso a informação, tecnologia e Internet de qualidade, segura e inclusiva. Exige adaptações, planejamento e decisões não apenas por parte de organizações tendo em vista suas especificidades, mas também na dimensão coletiva no que diz respeito a políticas públicas: de acesso à infraestrutura de rede adequada e garantia de conectividade, acesso a dispositivos adequados, de qualificação para seu uso, educação digital e, não podemos deixar de mencionar, o direito à desconexão do trabalho.
#dica: no Blog do IRIS você pode pode acessar outras reflexões relacionadas à Inclusão digital que dialogam diretamente com essa discussão. Para quem tiver interesse: Inclusão Digital como Política Pública: Brasil e América do Sul em perspectiva e Inclusão digital para uma internet acessível, usável e comunicativa.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração por Freepik Stories
Escrito por
Ana Paula Camelo (Ver todos os posts desta autoria)
Doutora em Política Científica e Tecnológica e Mestre em Divulgação Científica e Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente é pesquisadora e gestora de projetos no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI), FGV Direito SP.