O caso Anom e o poder investigativo estatal: estamos de fato “Going Dark”?
Escrito por
Victor Vieira (Ver todos os posts desta autoria)
14 de junho de 2021
Recentemente, foram divulgadas informações sobre uma operação policial envolvendo o Anom – um aplicativo de mensageria criptografada utilizado por organizações criminosas para suas atividades. A ação, realizada pelo FBI em parceria com autoridades públicas australianas, perdurou por anos e culminou na prisão de centenas de criminosos ao redor do globo.
O caso ilustra bem o poder tecnológico de órgãos investigativos estatais, e levanta questões sobre a legitimidade da narrativa do obscurecimento informacional – o chamado Going Dark. No texto de hoje, farei uma breve retrospectiva do caso Anom, traçando considerações sobre as implicações práticas desse precedente e reforçando a importância de argumentos pró-criptografia para uso civil. Confira a seguir!
Entenda o caso
O Anom é um aplicativo de mensageria privada anunciado como meio de comunicação seguro para grupos criminosos. Uma das características desse app é o uso de criptografia forte para cifrar as mensagens enviadas, o que torna sua interceptação impossível – ao menos, era nisso que seus usuários acreditavam.
No início de junho, foram divulgadas matérias ao redor do mundo, noticiando a prisão de criminosos de diversas nacionalidades. Os flagrantes que acarretaram as prisões não ocorreram por mera coincidência, e todos os presos tinham uma característica em comum: todos utilizavam o Anom para se comunicarem internamente com seus respectivos grupos.
O que aconteceu foi que, na realidade, o Anom consistia em uma ferramenta de investigação criada pelo FBI, e distribuída para entidades criminosas por meio de pessoas infiltradas nesse meio. As autoridades estadunidenses, portanto, possuíam acesso ilimitado e em tempo real às comunicações realizadas dentro do aplicativo, o que possibilitou anos de investigação minuciosa e, consequentemente, as diversas prisões que observamos nos últimos dias.
Cabe apontar, ainda, que a demanda pelo uso do Anom foi criada a partir da derrubada de dois outros aplicativos de comunicação cifrada utilizados por organizações criminosas. Essa escassez levou a uma busca por novos meios seguros de comunicação e, por sua vez, gerou a oportunidade de infiltração por parte das autoridades estatais.
O combate estatal à criptografia segura
É interessante observar que o recente caso do aplicativo Anom se insere em um contexto de intensa repressão estatal ao uso de técnicas criptográficas. Legislações têm sido aprovadas em diversos países para buscar meios de acesso excepcional – os famosos backdoors – a aplicativos de mensageria criptografada, por exemplo. Uma lei que ganhou grande repercussão à época de sua aprovação foi o Access and Assistance Bill, na Austrália, e o Brasil também conta com uma gama de projetos de lei buscando o enfraquecimento da criptografia no país, como aponta este estudo realizado pelo IP.rec.
Ordens judiciais também são uma fonte recorrente para o enfraquecimento da criptografia ao redor do mundo. Para citar um exemplo nacional, podemos observar as diversas ordens de bloqueio do WhatsApp ao longo dos anos – algumas delas motivadas pela incapacidade da plataforma em disponibilizar judicialmente o conteúdo de comunicações de seus usuários, devido ao uso da criptografia de ponta a ponta no aplicativo. Após incidentes recorrentes dessa natureza, foram ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal a ADI 403 e a ADPF 5527, para que seja analisada a legitimidade do uso da criptografia segura em aplicativos comercialmente disponíveis ao público geral.
Todos esses exemplos estão inseridos em um longevo debate que compõe as chamadas Crypto Wars – movimento que consiste em esforços estatais diversos para barrar o uso da criptografia segura pela população civil. Em geral, essa iniciativa se apoia na famosa narrativa do Going Dark: segundo autoridades públicas, o uso de criptografia segura resulta em um obscurecimento das técnicas investigativas estatais. Isso, por sua vez, alegadamente resultaria em um ambiente propício para o livre exercício de atividades criminosas, visto que não haveria meios suficientes para investigar indivíduos suspeitos.
O caso Anom em perspectiva: reforçando argumentos pró-criptografia
Apesar do recorrente apelo estatal à narrativa do Going Dark, há um forte contraponto a essa linha argumentativa, que gira em torno do reconhecimento de que a criptografia consiste em uma ferramenta essencial para a sociedade de hoje. O IRIS publicou recentemente os resultados parciais de um estudo realizado com profissionais de diversas áreas que movimentam o debate sobre criptografia segura no Brasil.
O caso em análise ilustra bem alguns dos argumentos apresentados pelos profissionais que se posicionam favoravelmente ao uso de técnicas criptográficas.Primeiramente, o caso Anom ilustra um movimento natural daqueles que utilizam as comunicações cifradas para atividades ilícitas: quando um aplicativo facilmente acessível é bloqueado, esses atores simplesmente passam a utilizar outro serviço seguro análogo. O FBI, inclusive, não apenas demonstrou saber dessa realidade, como também contou com ela, disponibilizando um serviço alegadamente mais seguro após a indisponibilização dos sistemas previamente usados pelos criminosos presos no caso Anom.
Isso, por sua vez, traz repercussões ineficazes do ponto de vista do combate ao crime, visto que os alvos principais dessa argumentação não são de fato atingidos pelo bloqueio de aplicativos comuns de mensageria segura. Pior: a indisponibilidade desses serviços para a população em geral, além de não se traduzir em ganhos efetivos para a segurança pública, repercute negativamente na segurança digital de toda uma base de usuários bem-intencionados.
Para além disso, o caso Anom ilustra também um contraponto frequentemente utilizado quando se levanta a narrativa do Going Dark. Fato é que, ao passo que a tecnologia de uso civil evolui e torna-se mais segura para seus usuários, o mesmo acontece para as atividades investigativas, que passam a contar com técnicas e ferramentas cada vez mais sofisticadas para conduzir suas atividades.
Dessa forma, técnicas anteriormente impossíveis de um ponto de vista tecnológico passam a compor o arsenal das entidades de persecução penal. O caso Anom é apenas mais um dos exemplos que enfraquecem as alegações de que o avanço da tecnologia para uso civil gera um obscurecimento informacional que impediria o combate ao crime.
A importância da criptografia
Em última instância, portanto, o caso do aplicativo Anom é uma boa ilustração do poder investigativo que possuem as autoridades estatais nos dias atuais. Diante dessa constatação, é difícil encontrar justificativas para o argumento do Going Dark, frequentemente empregado para barrar o uso de técnicas de segurança da informação.
Nesse contexto, a criptografia deve ser protegida como mecanismo de defesa da população civil contra abusos estatais e vigilância em massa. Para ler mais sobre a criptografia e a importância dessa ferramenta confira mais material do IRIS através deste link!
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Escrito por
Victor Vieira (Ver todos os posts desta autoria)
Victor Vieira é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-graduando em Proteção de Dados Pessoais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). É pesquisador e encarregado de proteção de dados pessoais no Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) e advogado. Membro e certificado pela International Assosciation of Privacy Professionals (IAPP) como Certified Information Privacy Professional – Europe (CIPP/E).