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“Nenhuma a Menos”: como as reivindicações sociais ganham centralidade online?

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8 de julho de 2024

Nas últimas semanas ganhou relevância a pauta do PL 1904/24, conhecido como PL dos Estupradores ou do Estupro, principalmente em posicionamentos da sociedade civil nas redes sociais, buscando que suas reivindicações fossem ouvidas.

Disputas narrativas entre apoiadores e discordantes apareceram nas redes sociais e me trouxeram um questionamento, especificamente quando notei que tanto a extrema direita, quanto os movimentos feministas, estavam usando plataformas digitais para pressões políticas. Diante disso, refleti sobre como o uso de redes sociais para mobilizações e reivindicações pode trazer fissuras e modificações em tentativas de ações políticas que são contrárias aos direitos fundamentais. No texto abaixo quero te propor essa reflexão, vem comigo?!

PL 1904/24: o que sabemos até então?

Milhares de pessoas brasileiras protestaram em junho deste ano contra o projeto de lei 1904/24 que dificultaria o acesso ao aborto seguro e legal, criminalizando vítimas de estupro. O projeto, proposto por Sóstenes Cavalcante e apoiado por 56 deputados, foi acelerado na Câmara dos Deputados sem discussões prévias com os diferentes setores da sociedade. 

Se aprovado, gestantes que abortarem após 22 semanas, inclusive vítimas de violência sexual ou estupro, poderão receber sentenças mais severas que seus agressores e enfrentar penas comparáveis à do homicídio.

O projeto de lei propõe alterações no Código Penal brasileiro, equiparando o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de matar alguém. Isso se aplicaria mesmo nos casos em que o procedimento é atualmente permitido pelo direito: em gravidez resultante de estupro, quando a gestação representa risco à vida da mulher, ou quando o feto é anencéfalo.

Reivindicações sociais de grupos feministas na internet: buscando fissuras no Brasil patriarcal e barrando o populismo penal

O referido projeto atingiu 6,1 milhões de visualizações no site da Câmara, até junho de 2024; antes disso, o site da Câmara dos Deputados registrou mais de 3 milhões de visitas e uma participação significativa em uma enquete sobre o projeto. Com mais de 890 mil participantes até as 20h do dia 14/06, 88% expressaram total discordância com a proposta, conforme levantamento do Instituto Democracia em Xeque. Ou seja: a atenção ao debate foi enorme.

Nas capitais brasileiras, ocorreram protestos presenciais contra o projeto de lei e contra o populismo penal que rondava a votação. Houve também mobilização nas redes sociais, com destaque para a hashtag #CriancaNãoéMãe, que se tornou trending topic no antigo Twitter (X), em referência ao alarmante número de casos de abuso infantil no país. Mais de 70% dos registros de violência sexual entre 2012 e 2022 envolveram crianças e adolescentes, frequentemente vítimas dentro de casa, por familiares ou pessoas próximas.

Nas redes sociais, Hugo Gloss, com 21,2 milhões de seguidores no Instagram, publicou posts amplamente compartilhados contra o PL dos Estupradores. Artistas de destaque como Anitta, Marina Sena, Felipe Cordeiro e outros usaram seus stories no Instagram para expressar críticas ao projeto. Um dos posts mais impactantes foi da deputada federal Erika Hilton (PSOL/SP), impulsionando a campanha #criançanãoémãe, que já acumula 601 mil curtidas, 8 mil comentários, 148 mil compartilhamentos e 19,9 milhões de visualizações.

Mesmo com o uso de redes sociais em favor da afirmação de direitos das gestantes, o populismo penal, ou seja, o agravamento de penas e novas formas de criminalização, incluindo o debate sobre o aborto, tem sido uma estratégia eficaz para atrair grupos políticos, especialmente pela extrema direita. Isso é evidente não apenas no Brasil, mas também nos Estados Unidos, onde a revogação da lei Roe vs. Wade deixou cada estado responsável por suas próprias políticas. Na França, o tema gerou controvérsias significativas durante debates internacionais, enquanto o presidente Emmanuel Macron buscou assegurar o direito ao aborto na Constituição como medida preventiva. Essas estratégias populistas são, inclusive, utilizadas em redes sociais para seu fortalecimento a partir da divulgação de desinformação sobre assuntos controversos. Assim, plataformas privadas da Internet se convertem em mais um ambiente público de disputa política. 

Pontos importantes para nosso entendimento até aqui:

  • Populismo penal envolve a implementação de políticas na área jurídica e penal que visam obter apoio popular de maneira simplista e emotiva, em vez de fundamentar-se em princípios jurídicos sólidos e evidências empíricas. Isso inclui propostas de leis mais severas, penas mais duras e medidas de execução penal mais rigorosas, muitas vezes em resposta a demandas públicas por segurança e ordem;
  • Campanha #criançanãoémãe viraliza em 20 mil postagens no Instagram. Figuras públicas, como artistas, pesquisadoras e políticas fizeram parte do movimento nas redes sociais contra o PL do Estupro.
  • As pressões nas redes sociais pela busca de uma reivindicação social no cenário político que se desenhava com o PL do Estupro apresenta pontos positivos ao fazer Lira recuar, momentaneamente, na votação do PL.

Assim, as conexões entre sociedade patriarcal, reivindicações sociais e uso de redes sociais como forma de combate às ações políticas de retrocesso nos direitos de pessoas que gestam demonstram como a mobilização online pode amplificar vozes marginalizadas, desafiando estruturas de poder tradicionais e promovendo uma maior igualdade de gênero.

O que podemos tirar de tudo isso?

A resposta curta é que a voz da sociedade civil e especialistas deve ser ouvida.

A resposta completa é que podemos extrair algumas reflexões importantes desse contexto atual. A voz da sociedade civil e dos especialistas precisa ser amplamente ouvida. As redes sociais têm se tornado plataformas poderosas para promover reivindicações sociais em defesa de direitos fundamentais conquistados com esforço em nossa democracia. No entanto, seu uso em disputas políticas deve ser feito com cuidado e responsabilidade.

Ao debater questões sensíveis, é essencial respeitar a liberdade de expressão, sem permitir a disseminação de discurso de ódio ou desinformação, e sempre mantendo o respeito à dignidade humana e outros direitos fundamentais. É fundamental também estar atento para evitar a propagação de informações falsas (fake news).

As redes sociais têm o potencial único de catalisar debates sobre a proteção dos direitos humanos, alcançando uma audiência vasta que pode se engajar e apoiar essas causas. Elas facilitam a circulação de conteúdos que promovem debates significativos sobre os aspectos sociais, culturais e políticos que moldam nossa sociedade, permitindo assim o surgimento de novas perspectivas coletivas.

Pistas e inquietações para um futuro disruptivo

“Enfrentar o medo de se manifestar e, com coragem, confrontar o poder, continua a ser uma agenda vital para todas as mulheres”, escreve Bell Hooks no prefácio à nova edição de Erguer a Voz.

Ela também diz que alternar entre o silêncio e a expressividade é um ato desafiador que promove cura, oferecendo uma nova chance de vida e crescimento aos oprimidos, aos colonizados, aos explorados e a todos que resistem juntos, buscando a libertação.

Buscar a voz, quebrar o silêncio, criar fissuras: buscar nosso futuro disruptivo. Encontrar nas redes sociais e na tecnologia o que não querem que encontremos: a possibilidade de confronto político. Esse é meu convite.

Escrito por

Luiza Correa de Magalhães Dutra, doutoranda e mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul. Especialista em Segurança Pública, Cidadania e Diversidade pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bacharela em Ciências Sociais pela UFRGS, com período sanduíche realizado no Science-Po Rennes, França, e Bacharela em Direito pela PUCRS. Pesquisadora.

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