Marco Civil da Internet
Escrito por
Pedro Vilela Resende Gonçalves (Ver todos os posts desta autoria)
9 de maio de 2016
Fotografia: Codigo Fonte@Uol
Pedro Vilela
O Marco Civil da Internet é a primeira legislação brasileira em matéria de Direito e Internet. Trata-se, essencialmente, de instrumento legislativo que estabelece os direitos e deveres dos provedores e usuários da Internet no Brasil. Chamado por diversos especialistas de “A Constituição da Internet no Brasil”, o Marco Civil se propõe a fazer exatamente isto: criar uma moldura de direitos e liberdades civis que traduza os princípios fundamentais da Constituição Federal para o território da Internet.
Histórico
As origens do Marco Civil da Internet remontam a uma outra legislação voltada para a internet: a Lei Azeredo. Proposta pelo deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG), o projeto de lei, de caráter penal, visava a criar penas para determinadas condutas praticadas no meio virtual. Entretanto, foi considerada excessivamente draconiana e punitiva, uma vez que transformava práticas cotidianas da internet em tipos penais, como a de transferir músicas de um iPod para o computador, ou mesmo a de desbloquear um celular para ser usado por outras operadoras.
Em reação a essa proposta, um conjunto de acadêmicos e ativistas reuniu-se para propor uma primeira legislação para a internet no Brasil, que não fosse de caráter criminal, mas civil. Assim, após petição que reuniu mais de 150 mil assinaturas, o anteprojeto de Lei do Marco Civil da Internet começou a ser elaborado.
Processo legislativo
O Marco Civil começou a se destacar como legislação excepcional desde o início de seu processo legislativo. Diferentemente da maioria das iniciativas legislativas no país, apresentadas e discutidas quase inteiramente no âmbito da Câmara dos Deputados, com poucas e pontuais audiências públicas, o Marco Civil foi elaborado desde o começo no formato de uma grande audiência pública, através do próprio meio que visaria resguardar: a internet.
Assim, foi criado um site (www.culturadigital.org/marcocivil) onde qualquer cidadão poderia contribuir com sugestões para a elaboração da lei. Em duas fases, primeiro foram ouvidas ideias sobre os princípios e valores centrais que deveriam nortear a legislação: privacidade, neutralidade, liberdade de expressão. Em seguida, sugeriram-se diretamente textos de lei.
Além de permitir sugestões diretas, o site possibilitava também que cidadãos comentassem as sugestões de outros cidadãos, em um verdadeiro fórum virtual nacional. Durante várias etapas, milhares de sugestões e dezenas de milhares de comentários foram lançados na plataforma para serem analisados pelo Ministério da Justiça para elaboração do Projeto de Lei. Além de comentários e sugestões no site da consulta pública, foram levados em consideração comentários emitidos em redes sociais como o Twitter e o Facebook, na primeira experiência de democracia expandida do Brasil.
Principais elementos
O Marco Civil dedica a cada um dos princípios que o regem pelo menos um capítulo, seção ou artigo. Assim, são tratados, em ordem, os seguintes temas:
Neutralidade de rede
Um dos primeiros assuntos de que trata o Marco Civil, e também um dos mais polêmicos, diz respeito à neutralidade de rede, estabelecida no artigo 9º. Tratada de forma mais aprofundada em outro capítulo desta apostila, a neutralidade de rede garante que não haja discriminação de pacotes de dados transmitidos de um ponto a outro da rede por parte de provedores de conexão, no Brasil representados, por exemplo, por Velox, GVT, NET e outros.
Assim, esses provedores não devem, por motivos comerciais, priorizar um pacote de dados de um serviço específico em detrimento de outro. Em outras palavras, não poderia a GVT, por exemplo, dar mais velocidade a chamadas de voz por WhatsApp e menos a chamadas de voz por FaceTime em razão de contrato firmado entre os dois (WhatsApp e GVT). Bloquear um serviço por esse mesmo motivo, portanto, seria algo fora de cogitação.
O princípio da neutralidade de rede visa a garantir o ambiente de inovação e de competitividade original da internet, onde qualquer nova empresa pode competir – pelo menos em questão de velocidade de conexão – de forma equiparada à de grandes empresas já estabelecidas.
Guarda de registros
Em seguida, o Marco Civil trata, nos artigos 10 a 17, sobre a questão da guarda de registros de acesso. Esses registros, realizados tanto por provedores de conexão (na forma de qual cliente tem qual IP e a que horas se conectou), quanto por provedores de aplicação (na forma de qual IP acessou o serviço em qual horário), são úteis para a identificação de responsáveis por eventuais infrações cometidas anonimamente pela internet.
Antes do Marco Civil, era comum que provedores de conexão e aplicação guardassem registros por até três anos. O Marco Civil, visando a balancear a privacidade dos usuários sem impossibilitar investigações criminais, reduziu estes limites para 6 meses, no caso de provedores de aplicação, e para 1 ano, no caso de provedores de conexão. Esses registros apenas podem ser apresentados às autoridades mediante ordem judicial. Além disso, veda-se a provedores de conexão guardar registros de acessos a aplicações. Ou seja, a GVT não pode guardar registros sobre quais sites seus clientes visitaram.
Responsabilidade civil dos provedores
Outra seção de grande importância é a que diz respeito à responsabilidade civil dos provedores por conteúdos gerados por terceiros, do artigo 18º. Também discutida mais a fundo em outro capítulo desta apostila, a questão perpassa a definição de quando podem ser responsabilizados os provedores de serviço (mensagem, redes sociais, vídeos) pelos conteúdos gerados e publicados por terceiros. O tema é vital, pois tangencia questões de liberdade de expressão e discurso de ódio.
Os provedores de conexão são, simplesmente, isentos de responsabilidade por quaisquer conteúdos inapropriados que seus clientes publiquem na rede. Seria desproporcional e irracional fazê-lo, ainda mais quando se garante que o provedor não tenha qualquer ingerência sobre o conteúdo, por razões de privacidade.
Já os provedores de aplicação, que constituem a maior parte dos serviços acessados na internet, apenas poderão ser responsabilizados se não cumprirem ordem judicial que solicite a remoção de conteúdo considerado inapropriado. Em outras palavras, não caberia ao Facebook saber quais conteúdos violam direitos de outros usuários e ser por eles solidariamente responsável, apenas caso desobedeça ordem judicial que solicite remoção.
As únicas exceções a essa regra dizem respeito a conteúdos com indícios de nudez e conteúdos protegidos por direitos autorais. Em ambos os casos, o provedor será responsabilizado se não remover o conteúdo após notificação extrajudicial. A racionalidade por trás dessa opção do legislador diz respeito à urgência. Há mais dano causado se o provedor esperar uma ordem judicial para remover imagens de nudez publicadas sem consentimento da pessoa na imagem, do que remover imagens publicadas com o consentimento e posteriormente restaura-las quando a pessoa envolvida deixar claro seu consentimento.
Regras claras para responsabilidade civil dos provedores são essenciais para ampliar a liberdade de expressão. Sem elas, provedores de aplicação costumam remover mais conteúdo do que o necessário, sob o medo de que posteriormente se considere que esse conteúdo viola o direito de outrem e o provedor seja assim responsabilizado em conjunto com o indivíduo que o gerou e o postou. Sabendo que só será responsabilizado se não cumprir ordem judicial, mais conteúdo poderá ser postado, o provedor será isento, e a decisão a respeito de eventuais violações fica nas mãos do Poder Judiciário.
Considerações finais
O Marco Civil da Internet revelou-se uma legislação inovadora, desde seu processo legislativo até seu conteúdo. Elogiada internacionalmente, foi pioneira em uma tendência agora já estabelecida de legislações constitucionais para a internet, tendo sido recentemente usada como grande inspiração para a Declaração dos Direitos na Internet Italiana e para uma futura legislação de direitos na rede francesa. Sua defesa da neutralidade de rede foi citada em argumento a favor da neutralidade de rede nos EUA, que posteriormente veio a se concretizar.
Ainda há, no entanto, trabalho a ser feito. Diversos pontos do Marco Civil ainda estão pendentes de um decreto que os regulamente em detalhes, especialmente as questões de guarda de registros e neutralidade de rede. Na data em que este texto foi escrito, uma nova consulta pública relativa ao Decreto de Regulamentação do Marco Civil estava vigente, aceitando sugestões e comentários da mesma forma que a lei original.
Escrito por
Pedro Vilela Resende Gonçalves (Ver todos os posts desta autoria)
Fundador do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, é graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. É coordenador e pesquisador do Grupo de Estudos em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual. Alumni da 2a turma da Escola de Governança da Internet do Brasil. Membro do Observatório da Juventude da Internet Society.