Localizar a ciência destrói o científico?
Escrito por
Wilson Guilherme (Ver todos os posts desta autoria)
29 de abril de 2024
Na construção de uma imparcialidade científica, o “truque de deus” serve como caminho para defender a neutralidade tecnológica.
Cara pessoa leitora, nos encontramos mais uma vez nesse espaço para pensar crítica e livremente sobre temas conectados com a tecnologia. Todavia, me aproveitarei dessa liberdade para desta vez construir uma espécie de ensaio, refletindo a partir do texto “SABERES LOCALIZADOS: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial” de Donnah Haraway sobre como a construção narrativa de uma neutralidade científica impacta diretamente na forma como acessamos o conhecimento científico, e por conseguinte as tecnologias.
O científico e o monstro da imparcialidade
Em 2016, ao ingressar na faculdade de Direito, deparei-me com minha primeira oportunidade de realizar pesquisa. Contudo, não estava interessado em qualquer tipo de pesquisa. Embora reconhecesse o valor das reflexões sobre os procedimentos normativos, buscava trabalhar com temas que afetassem diretamente as pessoas. Desejava sentir o impacto mais tangível da produção das ciências humanas. Como pesquisadore em ciências humanas/sociais aplicadas, sabia que eu não poderia realizar experimentos em um laboratório e usar um jaleco; portanto, procurava algo que gerasse um efeito mais significativo.
Foi então que me deparei com o campo científico das produções sobre raça, gênero e sexualidade. Essas reflexões me afetaram profundamente, pois, na condição de jovem negro LGBTQIA+, reconhecia que minha produção poderia ter um propósito maior do que simplesmente a escrita, as publicações e os títulos acadêmicos. No entanto, logo no início, nas primeiras aulas de pesquisa, recebi uma cartilha muito bem elaborada sobre o que era considerado científico e o que não era.
Para minha surpresa — embora não surpreendesse ninguém, mas certamente me chocou naquele momento —, fui introduzido pela primeira vez à ideia da necessidade de “neutralidade científica”. Essa noção exigia um distanciamento entre o pesquisador e o objeto de pesquisa. Imediatamente, comecei a questionar: como posso pesquisar algo que me afeta diretamente sem fazer parte da pesquisa? Descobri, então, que não poderia.
Ao mesmo tempo em que escrever sem deixar nítido a origem das minhas reflexões me parecia uma falta de ética com os leitores das minhas pesquisas, também criticava e considerava antiética a maioria dos textos que se valiam da neutralidade científica como justificativa para não explicitar as responsabilidades dos pesquisadores pelos resultados apresentados.
Em 2020, durante a elaboração do meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), tive meu primeiro contato com o texto “Saberes Localizados” de Donna Haraway, estadunidense, professora titular de teoria feminista e uma das precursoras do ciberfeminismo. Este texto, sem dúvida, influenciou profundamente minha abordagem na construção da ciência e na análise do que é considerado científico e tecnológico. Ao utilizar seu pensamento como marco teórico, aplico suas reflexões na produção deste texto.
Rompendo com o “truque de deus” e localizando os saberes e as tecnologias…
Haraway, em seu artigo, desenvolve uma análise crítica sobre a ideia de imparcialidade científica, refletindo sobre como
a construção de um conhecimento desprovido de marca, sem espaço definido, sem localização, serve como uma estratégia para marginalizar certos grupos, como as mulheres, da perspectiva do que é considerado científico.
A autora inicia sua reflexão abordando um ponto que ecoa com minha própria aflição enquanto pesquisadora negra e LGBTQIA+. Enquanto as pesquisas e tecnologias permanecerem desvinculadas de corpos, sem um ponto de partida transparente, os indivíduos que se desviarem do padrão universal e forem facilmente identificáveis serão penalizados. Na lógica fantasiosa da objetividade neutra, aqueles que se assemelham aos que sempre estiveram no controle serão invisíveis e intocáveis, enquanto os que se desviam desse padrão serão notados e, portanto, questionados quanto à sua imparcialidade.
Quem nunca testemunhou uma pessoa negra, ao falar sobre inteligência artificial e racismo algorítmico, ser rotulada como “militante”? Ou uma pessoa LGBTQIA+ discutindo sobre proteção de dados ser inicialmente categorizada como “ativista”?
Essa lógica bem estruturada da imparcialidade científica, muitas vezes, responde ao que a autora descreve como o “truque de deus”.
[…] “truques de deus”, prometendo, igualmente e inteiramente, visão de toda parte e de nenhum lugar, mitos comuns na retórica em torno da Ciência. Mas é precisamente na política e na epistemologia das perspectivas parciais que está a possibilidade de uma avaliação crítica objetiva, firme e racional. (p. 24)
Nessa perspectiva, o “truque de deus” funcionaria, segundo a autora, como uma tentativa de impedir a contra-argumentação. A neutralidade serviria como uma espécie de carta coringa, que tanto impede os oponentes de entrarem na arena para disputar novas narrativas quanto dificulta a transparência na localização dos saberes. Afinal, “deus” está em todo lugar, mas em lugar nenhum; não há argumentação, nem explicação, não existe corpo, tempo, nem espaço, e por isso, não há marca no sujeito que produz. Ao mesmo tempo, isso permite ao sujeito a capacidade de “ver sem ser visto, de representar, escapando à representação” (p. 18), como se fosse universal e não localizado.
Gosto de retornar a este texto com certa frequência, pois é comum que argumentos “científicos” sejam apresentados ou vistos como desconectados da realidade material, justificados pela imparcialidade e pela metodologia, o que sempre me parece preocupante. Quando lidamos com temáticas relacionadas às tecnologias digitais, que ainda são amplamente dominadas por setores técnicos e vistas como “ciências exatas”, é comum ouvir afirmações como “a tecnologia é neutra”; “a inteligência artificial não pode ser racista, porque são apenas números”; “os programadores devem ser cientistas imparciais da sociedade”, entre outras. Estas tentam, a meu ver, colocar o debate da tecnologia e da ciência em um lugar muito mítico, distante e inalcançável aos problemas humanos, quando a realidade nos mostra exatamente o oposto.
Pesquisas localizadas e saberes identificados
Ao longo deste ensaio, empreendemos uma reflexão sobre o quanto a neutralidade científica, enquanto uma falácia que cria uma suposta neutralidade entre quem pesquisa e o objeto de pesquisa, pode contribuir para um distanciamento da responsabilização pelos argumentos sistematizados em uma investigação, ou até mesmo no desenvolvimento de uma tecnologia.
No entanto, é importante ressaltar que esta crítica não endossa a ideia de que tudo seja científico. Acredito na necessidade do rigor científico, na possibilidade de replicação das investigações e em outras características que estão envolvidas no trabalho das ciências, especialmente as humanas. Sigo, inclusive, as reflexões de Haraway, de que a alternativa para isso são os saberes parciais, localizados e críticos. A identificação nítida na metodologia de quem são os pesquisadores, quais foram as escolhas metodológicas que tomaram e o que seus próprios olhos individuais identificaram ao longo da produção nos permite uma análise mais embasada em argumentos.
Nessa construção, argumento juntamente com a autora em favor de tecnologias e ciências localizadas. Estas são facilmente identificáveis, não universais, vistas a partir de um corpo, de contradições, que inclusive contradizem a visão que vem de cima, de um “deus” simplista e reducionista. Como escreveu Haraway, nessa construção, “só o truque de deus é proibido” (p.30).
Se você, assim como eu, aprecia pesquisas localizadas, onde é possível identificar facilmente os argumentos construídos, recomendo a leitura do texto “Me homenageiem em vida, para que depois eu possa apenas descansar!“, para conhecer pesquisadores e pesquisadoras negras que baseiam seus saberes na experiência da racialidade negra e na tecnologia.
Escrito por
Wilson Guilherme (Ver todos os posts desta autoria)
Mestrande em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça, pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR; Graduado em Direito pela Faculdade Interamericana de Porto Velho; Pesquisadore Bolsista do Instituto de Referência em Internet e Sociedade – IRIS; Mentore e ex-embaixador do Programa Cidadão Digital – Safernet Brasil; Ex-Coordenador de Práticas, Pesquisas e Extensões Jurídicas da Faculdade Católica de Rondônia – FCR (2022); Bolsista do programa sobre saúde mental para crianças e adolescentes da ASEC; Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa e Ativista Audre Lorde. Tem como área de interesse: direitos humanos, infâncias e juventudes, sexualidade, raça e gênero, intersecionalização entre tecnologia e educação para direitos humanos.