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Inteligência artificial no Brasil: o episódio da Comissão de Juristas

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17 de maio de 2022

A Comissão de Juristas do Senado Federal realizou quatro sessões de debates e ouviu 60 pessoas a respeito de vários aspectos pertinentes a uma futura disciplina legal brasileira da inteligência artificial. Mas o que exatamente é essa comissão, quem a compõe, qual o objetivo, qual sua importância? Mesmo sem simplificar as questões no binarismo entre luz e sombras, vou tentar explicar o básico da CJSubIA com uma alegoria em seis atos da saga Star Wars, uma obra da cultura pop celebrada todo dia 4 de maio.

I – A ameaça na Câmara

Muitos projetos de lei foram propostos no Brasil para regular os muitos temas das novas tecnologias digitais. Tendo o Marco Civil da Internet como base comum desde 2014, novas leis são necessárias para uma estrutura normativa harmoniosa. No fluxo da tendência mundial, o Brasil hoje debate como regular pesquisa, desenvolvimento e implementação da inteligência artificial (ou IA), de modo a equilibrar a garantia, proteção e promoção de direitos humanos com o respeito à liberdade de iniciativa e o incentivo à inovação.

Mas um susto tomou o Brasil quando o Projeto de Lei nº 21, de 2020, foi aprovado no plenário da Câmara dos Deputados, em setembro de 2021, a fim de “estabelecer princípios, regras, diretrizes e fundamentos para regular o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial no Brasil”. Muito criticado, o texto é uma tragédia, com problemas econômicos, jurídicos, políticos, sociais, filosóficos e, obviamente , tecnológicos

II – O ataque das cópias

O conjunto de problemas do PL 21/2020 pode ser explicado pela percepção de que o texto aprovado é um clone defeituoso de outras propostas, ou uma cópia só com casca tecnológica, mas sem recheio jurídico. Considero que não seja um erro de projeto, mas um produto deliberado, que a redação original tenha sido enfraquecida e desnutrida.

Quanto menos regras legais, mais livre o mercado fica para decidir o foco de investimentos e pesquisas pautadas por interesses privados, sem compromisso com o interesse público. Atrair capitais estrangeiros a despeito do custo social e da economia de longo prazo prejudica a valorização de objetivos soberanos nacionais, e expressa uma postura subserviente.

III – A CJSubIA do Senado

No Senado, freou-se a pressa exagerada com que o PL 21/2020 foi votado na Câmara. Em fevereiro de 2022, o Presidente da casa instituiu a Comissão de Juristas responsável por subsidiar a elaboração de minuta de substitutivo aos projetos de lei sobre inteligência artificial (ou CJSubIA), formada por dezoito especialistas. A ideia é que a Comissão, presidida por Villas Bôas Cueva, ministro do Superior Tribunal de Justiça, ajude os senadores e senadoras a elaborar um novo texto de lei.

Instalada em 30 de março, a Comissão elaborou um plano de trabalho com previsão de encerramento em 12 de agosto, organizado em três etapas: Instalação da Comissão e participação pública; Reuniões de trabalho e experiência internacional; Redação e consolidação de subsídios para elaboração de substitutivo.

IV – Um pouco de esperança

A Coalizão Direitos na Rede sabe que o Regimento Interno do Senado determina que apenas pessoas com formação jurídica pudessem ser apontadas, e valoriza a iniciativa de ampliar o debate. Mas não deixou de apontar a falha de representatividade da Comissão, por ausência de pessoas negras e indígenas, e concentração regional.

A resposta da Comissão foi convocar doze audiências públicas. Na cronologia pessoal de muita gente, esse foi o primeiro momento de contato com o debate jurídico sobre a IA, e por isso ele têm uma importância cultural diferenciada.

Realizadas nos dias 28 e 29 de abril e 12 e 13 de maio, as audiências contaram com 60 pessoas (25% delas negras: ainda que seja um número baixo, é um avanço substancial). Vídeos com a íntegra da audiência, documentos de painelistas e até notas taquigráficas estão disponíveis na página oficial da Comissão e no canal do Senado no YouTube. (Registro: eu participei em nome do IRIS no terceiro painel do dia 28, falando sobre princípios e fundamentos) 

Além disso, a CJSubIA fez uma chamada para envio de contribuições. Já foram recebidas algumas dezenas, e o prazo original de 13 de maio foi prorrogado para 10 de junho.

V – Ainda terá contra-ataque

Após concluído os trabalhos da CJSubIA, quaisquer interesses – nobres ou escusos – que tenham sido preteridos, terão oportunidade de revanche ao longo do processo legislativo formal no Senado. Da definição da lista de comissões temáticas que analisarão o texto; passando pela relatoria em cada uma delas e a inclusão na pauta de votação; até o debate no Plenário: serão vários momentos de risco para o equilíbrio adequado entre garantias individuais e livre iniciativa.

VI – O Retorno da IA

Ao final de todo esse processo, por melhor que venha a ser o resultado, qualquer nova redação do Senado precisará retornar à Câmara dos Deputados. Cabe à casa revisora bater o martelo sobre qual texto submeter à sanção presidencial: se o texto de 2020, ou o substitutivo elaborado a partir dos esforços da CJSubIA. No melhor dos mundos, a devolução do PL 21/2020 à Câmara será uma festa com entrega de medalhas e muita festa. Mas fora da fantasia, a coisa pode parecer mais um massacre a uma vila de camponeses.

Conclusão: os próximos episódios

Durante todo o processo legislativo, divergências leais sobre um marco legal da IA conviveram com fortes distúrbios na produção de consensos possíveis. A política nunca foi palco exclusivo da racionalidade republicana, e seja pelo momento eleitoral, por pressões do mercado ou outros fatores, os humores de momento sempre pesam. Importante é as pessoas afetadas terem suas sensações, sentimentos e emoções levadas em conta, e não apenas desconsiderados como efeitos colaterais numa lógica de porcentagens insensíveis.

Em todo caso, mesmo depois de a Comissão concluir seus trabalhos, o Senado aprovar um texto e a Câmara dos Deputados dar a palavra final no Congresso, a regulação da IA terá ainda futuros capítulos. Só de expectativas em torno da sanção presidencial, podem vir vetos, além da dúvida sobre quem estará no Palácio do Planalto.

Reconhecer a importância do papel democrático da CJSubIA e parabenizar seus esforços de participação plural não implica nenhuma certeza sobre o seu sucesso na contribuição para um bom texto da lei. Mas é diante de dúvidas desse tipo que faz especial diferença ter fé. Que a força esteja a favor da garantia, promoção e defesa de direitos!

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

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Doutorando e Mestre em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília (UnB). Professor de Direito, Inovação e Tecnologia e líder do grupo de pesquisa Cultura Digital & Democracia no Centro Universitário de Brasília (CEUB). Pesquisador bolsista no Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS); integrante voluntário do Aqualtune LAB: Direito, Raça e Tecnologia; ex-Diretor Presidente do Instituto Beta Internet e Democracia (IBIDEM), três ONGs componentes da Coalizão Direitos na Rede (CDR). Consultor Sênior de Políticas Públicas do Capítulo Brasileiro da Internet Society (ISOC Brasil) para os temas Responsabilidade de Intermediários e Criptografia. Conselheiro Consultivo do centro de pesquisa Internetlab. Consultor Associado da Veredas – Estratégias em Direitos Humanos. Servidor Público Federal no Tribunal Superior do Trabalho (TST), foi gestor do processo de elaboração coletiva do Marco Civil da Internet na Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL-MJ).

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