Inquérito do STF contra fake news: avanço ou retrocesso?
Escrito por
Gustavo Rodrigues (Ver todos os posts desta autoria)
8 de abril de 2019
No dia 14/03, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Dias Toffoli, determinou a abertura de um inquérito destinado a apurar a alegada existência de calúnias, ameaças e notícias fraudulentas contra a Corte, seus membros e familiares. A investigação, que tramita em sigilo absoluto e tem por relator o Ministro Alexandre de Moraes, vem suscitando fortes reações de diversos setores, incluindo juristas, procuradores da república e mesmo outros ministros. O partido Rede Sustentabilidade, autor de um pedido de suspensão da medida no STF, chegou a compará-la ao AI-5, principal ato repressivo da ditadura militar brasileira.
No post de hoje, examinamos a controvérsia que vem se desenrolando em torno dessa investigação, denominada Inquérito nº 4781.
O que sabemos de fato sobre o Inquérito nº 4781
A investigação em questão foi instaurada por meio da Portaria GP nº 69/2019, reproduzida abaixo na íntegra com trechos especialmente relevantes sublinhados:
O documento suscitou reações imediatas de entidades ligadas à área jurídica. Em nota de apoio, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) alegou que a advocacia nacional também seria alvo de “notícias falsas (fake news), denunciações caluniosas e ameaças que buscam atingir a honra das advogadas e dos advogados brasileiros”. Numa nota conjunta, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) também manifestaram seu apoio à investigação.
Por outro lado, a medida recebeu diversas críticas, inclusive de outros membros da Corte, como o Ministro Marco Aurélio. Argumenta-se que a abertura de investigações criminais sobre fatos ocorridos fora das dependências do tribunal não seria atribuição do STF, cuja função é julgar, e sim de entidades como o Ministério Público Federal e a Polícia Federal. A indefinição em relação ao escopo do inquérito também foi alvo de críticas, bem como a possibilidade de violação ao direito fundamental à liberdade de expressão.
Como diligências iniciais, o Ministro Alexandre de Moraes ordenou os bloqueios de contas suspeitas de publicar conteúdos ofensivos ao tribunal, bem como a realização de buscas e apreensões de dispositivos eletrônicos em diversos endereços. Um dos alvos das buscas, o advogado Adriano Arnolo, afirma que as mensagens atribuídas a ele não são de sua autoria e que suas contas foram clonadas. Em resposta às críticas ao inquérito, o Ministro Moraes declarou: “Pode espernear à vontade, pode criticar à vontade. Quem interpreta o Regimento do Supremo é o Supremo.”
Mais recentemente, a investigação tornou-se objeto de uma ação impetrada no próprio Supremo pelo partido Rede Sustentabilidade. O partido solicita sua anulação mediante declaração de inconstitucionalidade da portaria que a instaura. Na petição inicial, a Rede pondera que o Inquérito “pode ser direcionado, inclusive, contra jornalistas, parlamentares, membros do governo, membros do Judiciário e Ministério Público, detentores de foro especial, além da Cidadania em geral.” O mecanismo chega a ser comparado ao Ato Institucional 5, mais grave instrumento jurídico de repressão do período ditatorial brasileiro, em cuja vigência o Poder Executivo captou para si poderes legislativos e judiciais, e ampliou significativamente o poder investigativo da presidência.
A relatoria da ação foi designada ao Ministro Edson Fachin, que solicitou ao presidente do STF que preste mais informações acerca do inquérito.
Mas será essa uma forma eficiente de abordar o problema da desinformação?
A desinformação online passou a receber atenção significativa por parte da sociedade brasileira em 2018. A difusão de conteúdo fraudulento sobre a vida da vereadora Marielle Franco – assassinada juntamente com Anderson Gomes, seu motorista, em março daquele ano – foi objeto de extensa cobertura midiática. Similarmente, o debate sobre as “fake news” dominou o período eleitoral e o tópico permaneceu como pauta ao longo de todo o ano. Embora essa ampliação do debate seja importante e necessária, a resposta institucional ao problema, contudo, pode ser caracterizada com uma palavra: despreparo.
No poder legislativo, as soluções ensaiadas estiveram basicamente limitadas a diversos projetos de lei voltados à criminalização das “fake news”. Esse tratamento individualista e punitivista da questão ganhou bastante projeção na mídia e na sociedade, apesar de uma série de medidas alternativas mais eficazes terem sido sugeridas pelo Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional no mesmo ano. Representantes institucionais da Abin e do TSE chegaram a cogitar, à guisa do combate às “fake news”, ações completamente irregulares e desproporcionais, como o monitoramento massivo dos brasileiros e mesmo a anulação do pleito eleitoral.
Além de constituírem violações evidentes a direitos fundamentais (privacidade, liberdade de expressão, etc.), tais iniciativas são ineficazes porque buscam punir indivíduos ao invés de abordar o ecossistema que origina e condiciona a desinformação. Exemplos de fatores que caracterizam esse ecossistema: emprego de filtros-bolha algorítmicos em redes sociais por padrão, falta de iniciativas educativas para o consumo crítico de mídia, baixa eficiência dos mecanismos de supervisão sobre o setor publicitário, expansão do smartphone como meio exclusivo de acesso à rede (principalmente nas classes D e E e em áreas rurais).
Trata-se, por conseguinte, de um cenário em que incentivos econômicos e políticos para a produção e disseminação do conteúdo desinformativo se articulam a fatores que reduzem a capacidade discriminativa dos usuários. Isso tem sido reiterado em relatórios internacionais sobre o assunto, a exemplo dos do Conselho da Europa e da Comissão Europeia. Nesse contexto, a insistência na penalização individual é sintomática de uma inaptidão das instituições para lidar com a complexidade do problema.
A lei autoriza o STF a conduzir investigações nesse caso?
Conforme notado, um aspecto bastante alardeado por críticos da ação foi a confusão que ela promove entre as funções de acusador e juiz. O sistema penal previsto em nossa Constituição Federal é acusatório: ele separa institucionalmente tais funções. É diferente do sistema inquisitório adotado em países como os EUA, o qual admite a participação ativa dos tribunais nas investigações. No Brasil, portanto, salvo exceções previamente especificadas, não compete aos tribunais instaurar ações penais ou conduzir investigações – sua função é julgar.
O caso em questão não é uma dessas exceções. Os dispositivos legais citados pela portaria de abertura do inquérito (art. 43 e seguintes do Regimento Interno do STF) nem mesmo são aplicáveis às circunstâncias em debate. Vejamos o que eles dizem:
Uma vez que a portaria sequer especifica quais seriam os fatos a serem apurados e quem seria investigado, não se pode afirmar que haja infração à lei penal ocorrida na sede ou dependência do STF, muito menos que os “fatos” (quais?) envolvam autoridade ou pessoa sujeita a sua jurisdição. O documento contém apenas uma vaga referência à “existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”.
Nesse sentido, além da violação ao sistema acusatório, observamos que os requisitos necessários para que o Supremo exerça seu poder de polícia não foram cumpridos. Essas irregularidades são agravadas pelo sigilo absoluto sob o qual as diligências têm sido conduzidas, que adiciona uma camada de opacidade ao cenário de exceção institucional já descrito. Além de sua eficácia no tocante ao enfrentamento da desinformação ser altamente questionável, portanto, o Inquérito nº 4871 contribui para a instabilidade das instituições democráticas.
Conclusão
“Combater a desinformação é como varrer as ruas”, afirmou alguns anos atrás Claire Wardle, uma das pesquisadoras que assina o relatório do Conselho Europeu sobre o tema. A frase lança luz sobre o real cerne do debate: políticas públicas e ações multissetoriais fundamentadas em pesquisa científica multidisciplinar e atualizada. De um ponto de vista científico, o objetivo de tais políticas deveria ser o aumento da resiliência da sociedade ao conteúdo desinformativo no médio prazo. O que temos observado no Brasil é o oposto: o triunfo de uma retórica catastrofista e moralizante que pouco contribui para que avancemos no desenvolvimento de mecanismos efetivos para a lida com o problema.
O Inquérito nº 4781 é apenas o mais recente capítulo da sucessão de reações institucionais desproporcionais, inefetivas e potencialmente violadoras de direitos. Ele fortalece a narrativa que reduz a questão a sua dimensão moral, como se a punição de indivíduos mal-intencionados fizesse alguma diferença objetiva no combate à desinformação. Ademais, a excepcionalidade que o caracteriza e o apoio dado por entidades ligadas à área jurídica apenas contribui para a tese de que “vale tudo” na guerra às “fake news”.
Se interessou pelo tema? Aprenda mais sobre a desinformação e como o Poder Legislativo tem abordado o assunto em nosso post sobre o assunto.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
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Gustavo Rodrigues (Ver todos os posts desta autoria)
É diretor do Instituto de Referência em Internet e Sociedade. Mestrando em Divulgação Científica e Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e bacharel em Antropologia, com habilitação em Antropologia Social, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro do núcleo de coordenação da Rede de Pesquisa em Governança da Internet e alumni da Escola de Governança da Internet no Brasil (EGI). Seus interesses temáticos são antropologia do Estado, privacidade e proteção de dados pessoais, sociologia da ciência e da tecnologia, governança de plataformas e políticas de criptografia e cibersegurança.