Blog

Iniciativas isoladas para desafios globais: uma conta que não fecha

Escrito por

9 de setembro de 2020

Como a lógica do “cada um que resolva seus problemas” pode ter impactos indesejados em um cenário global – e representar mais problemas do que soluções.

Os problemas existem

Não é de hoje que a sociedade enfrenta questões potencializadas pelos serviços que têm como base a internet. Há décadas, condutas indesejadas, ilícitas e também criminosas que resultam dos (maus) usos da internet precisam ser enfrentadas, investigadas e punidas por autoridades estatais. Também há algum tempo, diversos esforços são empreendidos para que as estruturas e funcionalidades dos Estados acompanhem a dinâmica, os serviços e as aplicações da internet. 

As questões de soberania e jurisdição fazem parte de uma equação com cada vez mais variáveis e que busca ser resolvida de formas distintas pelo mundo todo. A Rede de Políticas Internet e Jurisdição (tradução livre de “Internet & Jurisdiction Policy Network”), por exemplo, mapeia periodicamente tendências e iniciativas. Além disso, compila as principais questões e propostas de forma multissetorial e com grande representatividade entre os países em seu relatório global. É nítida a percepção de que inúmeras condutas viabilizadas ou potencializadas pela internet precisam ser coibidas a partir da atuação do poder estatal. Assim, não é possível negar que problemas existem e precisam ser coibidos, ou que existem dificuldades relativas à dinâmica da era digital nos campos da investigação, acusação, julgamento e cumprimento de sentenças. 

Por exemplo, chama a atenção o diagnóstico sobre os desafios relativos a dados transnacionais e seu acesso por autoridades, que evidencia a necessidade de aprimoramento na coordenação de esforços. Em alguns casos, ainda falta o passo inicial para que as estruturas de enfrentamento dos problemas característicos de uma era – a digital – fiquem na mesma página.

Por que a coordenação é importante? 

É possível pensar a cooperação até mesmo como um ideal de um mundo compartilhado. Não raramente encontramos nas referências do direito internacional (tanto público quanto privado) passagens inspiradoras da cooperação ou colaboração entre os povos como um princípio, ideal – até uma esperança – a serem nutridos pelas gerações dedicadas aos fenômenos transfronteiriços

O cenário internacional ganhou outras dimensões com a globalização, a expansão da internet e de seus distintos usos. Novas, mais intrincadas e detalhadas engrenagens são adicionadas ao funcionamento de uma estrutura delicada, justamente por ser compartilhada entre tantos e tão diversos atores.

Até agora, a cooperação é o que mantém as engrenagens girando, talvez não no ritmo desejável, mas de forma que, pelo menos, as peças não se desfaçam.

Do ponto de vista prático, os regimes institucionais para acesso a provas eletrônicas, dados telemáticos, registros ou conteúdos de mensagens precisam ser repensados para uma realidade em que a extra/transterritorialidade deixa de ser exceção. A insuficiência de estruturas baseadas em ideias de território, fronteiras fixas e bens tangíveis para o cenário contemporâneo demonstram que insistir em abordagens tradicionais, que meramente reproduzem arranjos para uma realidade distinta, não cria soluções duradouras ou efetivas. Tratamos um pouco dessas questões no painel “Privacidade e Cooperação Jurídica Internacional” da quarta edição do Congresso “Direitos Fundamentais e Processo Penal na Era Digital”

A busca por soluções é legítima no âmbito de cada país. Ao mesmo tempo, é preciso levar em consideração que abordagens internas podem ter efeitos externos. Por quê? Diferente de um contexto em que se poderia fechar as portas do país para qualquer outro, a atualidade demonstra intensas interações internacionais – em distintos campos. Por isso, precisamos considerar a regra de ouro da reciprocidade: amanhã ou depois seremos nós a sofrer os efeitos da ação interna e isolada de outro estado. E não acredito que estamos dispostos a pagar esse preço. Não mais.

Prejuízos de medidas isoladas – um exemplo

A discussão sobre evitar medidas isoladas ou buscar aprimorar – mas não romper – com arranjos de cooperação internacional no geral converge para uma preocupação com a fragmentação da internet. Além disso, também são apontados o rompimento com a natureza global, os prejuízos para as atividades, inovação tecnológica, acesso ao conhecimento e à informação, entre outros. Essas preocupações mais amplas são exaustivamente abordadas pela literatura especializada, por exemplo, e também em fóruns, relatórios e declarações internacionais. 

As demandas da vida diária, contudo, podem tornar mais complicadas a visualização de desdobramentos a longo prazo. Por isso, um exemplo recente oferece uma situação concreta sobre os efeitos de ações isoladas – em teoria, no exercício de uma soberania absoluta – em campos muitos mais amplos:

O caso Schrems II

A recente decisão do Tribunal Europeu (Caso Schrems e “Escudo de Privacidade”) sobre a inadequação do nível de proteção de dados oferecido pelos Estados Unidos implica em dificuldades para as operações de transferência de dados pessoais da Europa para os EUA. O resultado do caso está ligado ao sistema de vigilância massiva dos Estados Unidos, estruturado, inclusive, em suas leis internas e francamente denunciado desde 2013 por Edward Snowden. 

A avaliação das medidas internas dos EUA levou ao rompimento de uma das hipóteses – a de adequação – para transferência internacional de dados entre o país e a União Europeia, que representa, naturalmente, uma região importante na economia de dados. Dessa forma, a estrutura desenhada para “resolver os problemas de investigação sobre cidadãos, independente de quem sejam ou onde estejam”, que serve exclusivamente aos EUA, contou contra o próprio país em suas relações internacionais

Sem entrar nas questões de juízo de adequação ou das hipóteses de transferência de dados pessoais (você pode encontrar a discussão sobre esses aspectos aqui), a decisão dá sinais importantes para o Brasil. Isso porque definiu que um país pode ter dificuldades para o acesso a dados por suas leis não oferecerem garantias de proteção. Assim, estabelecer exceções à proteção de dados pessoais, estruturas invasivas sobre os dados da população ou ainda enfraquecer o devido processo legal para o acesso a provas e outros procedimentos da persecução criminal pode ter resultados bem mais amplos do que aqueles inicialmente previstos

Influência sobre o Brasil

Naturalmente, o Brasil se insere nos esforços de aprimorar a cooperação jurídica internacional e buscar soluções mais coerentes com os fenômenos da era digital. As discussões sobre o alcance da autoridade brasileira, do direito interno e da competência dos tribunais são cada vez mais frequentes. Por um lado, isso sinaliza positivamente o amadurecimento dessas questões no país e reflete o papel central que o Brasil tem no cenário internacional. Por outro, intensifica iniciativas que, em alguns casos, abordam de forma isolada e pouco profunda os problemas. 

O debate sobre os Acordos de Cooperação Jurídica Internacional Mútua (MLATs) é um exemplo de como propostas que não consideram a dimensão compartilhada da soberania dos países podem, no fim do dia, prejudicar o Brasil na economia digital. O acesso ao conteúdo de mensagens via MLAT Brasil-EUA é questionado no Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Constitucionalidade 51. Mais uma vez, nesse post não entrarei no caso, que foi abordado pelo IRIS e está disponível aqui. No entanto, gostaria de ilustrar como decisões isoladas que desconsideram as estruturas institucionais ou simplesmente elegem alternativas que não dialogam com a experiência internacional podem levar a um sistema pouco coerente com as garantias, valores e princípios com os quais o Estado Brasileiro já se comprometeu

Em simplicada ilustração, procuro demonstrar a ligação entre a preocupação com posturas de rompimento com as ferramentas de que já dispomos, sua relação com a economia digital e os possíveis empecilhos, inclusive para o aprimoramento das atividades estatais, nas operações envolvendo acesso a dados pessoais.

Um caminho longo ainda precisa ser percorrido para que todas as variáveis dessa equação complexa que é o exercício jurisdicional sobre a internet seja resolvida. No entanto, episódios como esse servem como fonte de aprendizado e oferecem perspectivas a serem consideradas em tomadas de decisão. Apresentei aqui apenas alguns elementos, como forma de incentivar outros olhares sobre os problemas que já conhecemos. Além disso, deixo o convite para a discussão sobre transferência internacional de dados de que participo no dia 10/09/2020 e pode ser encontrada aqui.

As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.

Ilustração por Freepik Stories

Escrito por

Fundadora e Diretora  do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, é mestre e bacharel  em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Fundadora do Grupo de Estudos em Internet, Inovação e Propriedade Intelectual – GNet (2015). Fellow da Escola de Verão em Direito e Internet da Universidade de Genebra (2017), da ISOC – Internet and Society (2019) e da EuroSSIG – Escola Europeia em Governança da Internet (2019). Interessa-se pelas áreas de Direito Internacional Privado, Governança da Internet, Jurisdição e direitos fundamentais.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *