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Indicadores de Governança da Internet e suas Possibilidades de Apropriação Retórica pelo Sul Global

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17 de julho de 2017

Considerações iniciais

Métricas e classificações por meio de índices e rankings têm influenciado o pensamento em muitos níveis de governança. O relatório Doing Business, do Banco Mundial, por exemplo, que classifica os países com base em dez sub-indicadores, há muito foi creditado por ter impulsionado a realização de diversas reformas em diversos países. nos países. Os países às vezes declaram abertamente a sua intenção de realizar reformas precisamente para alcançar um determinado lugar nos rankings que almejam. Na verdade, a capacidade percebida por esses relatórios de moldar e de encorajar reformas até levou a confrontos entre o Banco Mundial e alguns estados, que se classificam relativamente mal e gostariam de ver os rankings enfraquecidos.

Esses são apenas alguns exemplos de atores internacionais que passaram a acreditar que indicadores globais de desempenho (GPIs – global performance indicators) não apenas resultam em mudanças estratégicas em relação ao tabuleiro da política internacional, como também a possibilidade de obter novas linhas de financiamento, empréstimos, investimentos e parcerias de negócio. A tendência de uso avaliações sistemáticas do Estado – números, classificações, rankings e categorias – divulga vários aspectos do desempenho de sua governança e, consequentemente, suas falhas, deficiências e necessidades. Entes privados, organizações não governamentais, think tanks, editores, organizações intergovernamentais e Estados participam, até certo ponto, do verdadeiro frenesi que consistem as avaliações do desempenho hodiernamente.

Uma coleção estratégica de classificação, divulgação, e até mesmo marketing dessas informações sobre o desempenho de cada Estado, é algo potencialmente importante no século XXI. Esses índices devem ser pensados também como forma de governança global, já que envolvem e corroboram a criação de regras e o exercício de soft power em escala global. Alguns países, como Ruanda, até mesmo designaram burocratas para observar seu desempenho em vários GPIs.

Essa tendência social tem implicações para a governança em todo o mundo e reflete a diversidade de atores e instituições que tentam implementar políticas de influência em todos os Estados. Afinal, quais são os efeitos de se monitorar e classificar os Estados de várias maneiras? Os rankings influenciam as políticas e práticas de governança? O que faz um indicador influente? Seriam os GPIs mera perpetuação das estruturas de poder existentes?

E se esses GPIs gerados externamente servirem para alimentar uma retórica desenvolvimentista, de fomento à acessibilidade e inclusão digital no Sul Global? Se apropriar desses discursos é também uma forma de dar maiores condições de alcance para seus efeitos, na esperança de estabelecer o terreno para o futuro de uma governança global mais equânime da internet.

O que são e como deveriam ser os indicadores globais de desempenho

Indicadores globais de desempenho (GPI) podem ser definidos como uma série de parâmetros públicos, comparativos e transnacionais, que refletem determinadas características de atores governamentais, intergovernamentais e privados. Seus objetivos variam de acordo com o uso e criação, no entanto são frequentemente utilizados para atrair a atenção para o desempenho relativo dos países em uma determinada área da política e economia internacionais. Os GPIs são geralmente entendidos como uma fonte de informações sobre assuntos de maior importância, um “retrato” do que o que realmente é medido ou se torna perceptível como tendência ou fenômeno.

Ou seja, o conceito de indicadores ultrapassa a mera utilização de dados, já que, além de classificar uma ampla gama de entidades, regiões, instituições e populações, também avaliam fenômenos, políticas, qualidades e tendências. As práticas de avaliação e comparação entre diferentes atores, desde que efetivamente considerem seus contextos e realidades individuais, podem proporcionar importante subsídios para políticas de desenvolvimento, transparência pública, alterações legislativas, melhoramento de práticas sociais, combate à corrupção, entre outros objetivos.

Isso nos leva à inevitável questão: como deveriam ser os indicadores globais de desempenho? Afinal, refletir sobre sua natureza e impacto atuais é, consequentemente, pensar também sobre seu futuro e potencialidade.

Para que um indicador global de desempenho tenha relevância internacional, deve ser pública e facilmente disponível. Isso excluiria, por exemplo, indicadores privados, como aqueles de análise política formulados por agências de risco destinadas a auxiliar investidores. Indicadores também devem ser inclusivos, com o objetivo precípuo de inclusão total dentro de uma região, ou em todo o mundo, o que aumenta sua relevância. Observa-se que é difícil monitorar e comparar determinadas regiões e Estados, haja vista sua abrangência, diversidade e necessidade de uniformização de critérios avaliadores.

Regularidade também é importante para esse tipo de avaliação, já que proporcionam avaliação temporal de desempenho e evolução de seus objetos de análise, bem como a possibilidade de constantes melhoras e aprimoramentos. Índices esporádicos e eventuais acarretam menor impacto, reduzem pressão sociais e dificultam a antecipação de resultados. Além disso, também é importante que exista transparência na utilização de critérios comparativos e metodologias, por meio de atribuições numéricas, ou rótulos claros e o mais objetivos possíveis, de forma a revelar para seus leitores os parâmetros de medição empregados. Não há, necessariamente, uma metodologia mais clara que outra. No entanto, a transparência quanto aos critérios utilizados permite que o próprio leitor elabore suas conclusões sobre o tema. Também ressalta-se a importância de parâmetros como autoridade científica, imparcialidade, consistência e eficiência na elaboração desses indicadores.

Mecanismos de influência nacional e internacional

Indicadores podem ser formas especialmente persuasivas de indução no sentido de boas práticas de governança. No âmbito da política interna dos estados, os indicadores globais de desempenho podem influenciar tomadores de decisão locais, na medida em que questões como direitos humanos e proteção ambiental mobilizam políticas domésticas e sensibilizam a opinião pública, especialmente por meio das atividades de organizações não governamentais e atores econômicos. Esses atores pressionam tomadores de decisão a realizar efetivas mudanças legislativas.

Ainda que haja melhora na capacidade de a sociedade civil responsabilizar os governos, por meio do respaldo de índices de desempenho internacionais, globalmente elaborados, é preciso refletir também sobre suas metodologias, possíveis enviesamentos e má utilizações. Participações econômicas, sanções externas e o medo de repercussões econômicas para negócios e investimentos também podem ser fortes motivos de persuasão, o que nem sempre é algo positivo para países do chamado “Sul Global”.

A mobilização pode fortalecer coalizões políticas domésticas inspiradas ou indignadas pelos rankings, de forma a exigir atenção oficial a determinadas demandas. A antecipação de publicidade e reações negativas no âmbito doméstico negativas poderia induzir verdadeira revisão política no governo, capitaneadas nem sempre por entidades democráticas, ou cujo interesse primordial é o bem comum da população em geral.

Além disso, indicadores também podem afetar a política ao ativar pressões transnacionais. A maioria dos indicadores tem a capacidade de influenciar as expectativas do mercado e fazer com que agentes econômicos respondam a eles. As agências de rating de crédito são um dos exemplos mais efetivos de como há preocupação estatal em relação à classificação internacional dos governos percepção de corrupção, entre outros critérios.

As informações desses índices também corroboram a aplicação de pressões adicionais, por meio de outros atores da comunidade internacional, sobre aspectos específicos da governança de um Estado. É um efeito multiplicador, que aumenta o risco percebido do alvo de que o comportamento indesejável possa ter consequências políticas, de reputação na política internacional, ou perdas materiais. Nesse contexto, é importante que cada índice seja direcionado à comunidade que efetivamente pode exercer essa influência entre outros atores. Mesmo quando bastante acoplado com o poder material do avaliador, o valor agregado da pressão social por meio de indicadores reside na sua capacidade de sinalizar o desagrado da comunidade ao alvo e estimular uma resposta política.

Também é importante reconhecer que avaliações positivas podem estimular ações que visam à manutenção de um status, ou esforços para manter boas classificações. O fato de que as classificações são citadas, discutidas, e às vezes criticadas, indicam seu poder de chamar a atenção e de definir os termos do debate político. Distinguir os processos domésticos e transnacionais nos ajuda a organizar nosso esses mecanismos, se apropriar deles e melhor utilizá-los.

Quais índices considerar? A governança da internet em números

No Brasil, os principais parâmetros de análise acerca da adoção das tecnologias de informação e comunicação (TIC) – especialmente o acesso e os padrões de uso de computadores, internet e dispositivos móveis – são fornecidos pela pesquisa TIC Domicílios, realizadas pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). O Cetic.br é um departamento do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (Nic.br), que implementa as decisões e projetos do Comitê Gestor da Internet no Brasil (Cgi.br).

Há anos, os estudos TIC Domicílios apontam, por exemplo, verdadeira “sombra digital” de acessibilidade nas regiões Norte e Nordeste, disparidades substanciais nos índices de inclusão digital de classes socioeconômicas menos favorecidas, bem como a concentração de acesso à internet por meio de dispositivos móveis, em detrimento de aparelhos como computadores pessoais.

No país, algumas pesquisas são também desenvolvidas pela Teleco, o principal portal sobre telecomunicações no Brasil. Sediada em São José dos Campos, a Teleco conta com quatro vértices principais de atividade: portais públicos de informação, consultoria, treinamento e outsourcing estratégico. São oferecidos também white papers sobre o uso da banda larga no país, palestras, workshops, informações sobre o mercado móvel por área local (DDD), entre outros. O principal de seus portais é o Panorama do Setor de Telecomunicações, que subsidia a análise dos dados brasileiros no setor de TIC, inclusive por pesquisas e elaboradores de índices estrangeiros, como o Freedom on the Net Report.

O Freedom on the Net Report é um estudo anual sobre liberdade de expressão online, elaborado pela Freedom House. Ele subsidia grande parte das análises da advocacia popular internacional e capacitação de estudiosos da área de jornalismo, direito internacional, liberdade de expressão e ciências políticas e relações internacionais, entre outros.

Seu ranking de liberdade de expressão pode ser visualizado em quadros e gráficos comparativos entre Estados, bem como por meio dos detalhes de cada país analisado. Percebem-se tendências de recrudescimento da repressão, censura, deficiências legislativas, violações de direitos humanos, entre outros indicadores que podem subsidiar a atuação de ativistas, governos, acadêmicos, jornalistas e entes privados em busca de mudanças efetivas.

A Internet Society também desenvolve indicadores globais de desempenho na área de segurança da internet, políticas públicas, tecnologia e desenvolvimento, o Global Internet Report.  Seus objetivos são fornecer subsídios para “convencer governos a tomar decisões que são mais corretas para seus cidadãos e o futuro de cada nação, por meio de um desenvolvimento sustentável da internet, disponível para todos”.

A organização tem ainda, como objetivos de suas análises, favorecer políticas públicas de acesso aberto à internet e às informações online, facilitar o desenvolvimento de padrões, protocolos, administração e infraestrutura técnica da internet, organizar eventos, workshops e programas de multiplicação de conhecimento em diversos países, bem como conceder bolsas a iniciativas humanitárias, educacionais e sociais no contexto da conectividade.

Assim como esses indicadores, diversos estudos e rankings demonstram a diversidade e multiplicidade possível de recortes de análise nos estudos sobre governança da internet. A relevância internacional do tema tem inspirado estudos mais direcionados, como: o Geneva Internet Governance Index, elaborado pela Geneva Internet Platform; e o Global Cybersecurity Index, da International Telecommunication Union (ITU).

Considerações finais

A era da informação global nos convida a pensar sobre novas formas de influência e de poder. O objetivo deste estudo preliminar é centrar-se, particularmente, na ampliação dos conceitos de poder social nas relações internacionais, especialmente no que diz respeito à utilização de índices globais de desempenho no âmbito da governança da internet. Para além das retóricas tradicionais de justificação para coerção militar e econômica, é preciso considerar também as formas e maneiras em que o ambiente informacional também influencia Estados e demais atores internacionais na adoção de medidas políticas e comportamentos específicos.

O exercício de poder por meio desse tipo de pressão social tem grandes potencialidades nas relações internacionais, especialmente quando explorada não para constranger e coagir, mas para para definir, entender e medir as políticas estatais de forma a ganhar atenção, aceitação social e transformação efetiva. Quando apropriados pelo Sul Global, e devidamente contextualizados de acordo com suas limitações de infraestrutura, tecnologia e capacidade econômica, esses GPIs podem fazer parte da resposta contemporânea ao mapeamento de demandas, subsidiando políticas públicas de expansão da acessibilidade digital e mitigação das “sombras de conexão”.

Para além dos salões suntuosos de encontro da ONU e do G20, esses são mecanismos que subsidiam atividades de pressão por meio de política popular, mobilização, constrangimentos transnacionais, sensibilização do setor privado, advocacia internacional, entre outros. Vale a pena considerar o efeito dessa recente proliferação de indicadores, inclusive no que diz respeito aos índices de governança da internet, já que os mesmos podem impulsionar transformações e atrair atenção para questões de maior urgência. Desde que observando parâmetros mínimos de regularidade, disponibilidade e transparência, é possível desenvolver medidas de sucesso e examinar a sua possível eficácia por meio de estudos de caso, métodos quantitativos e uma agenda internacional de maior influência sobre normas e padrões globais.

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Fundador e membro do Conselho Científico do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, é Doutorando, Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, em regime de cotutela com a Université libre de Bruxelles, na Bélgica. É também Professor de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Especialista em Direito Internacional pelo CEDIN (Centro de Direito Internacional). Foi estagiário docente dos cursos Relações Econômicas Internacionais, Ciências do Estado e Direito, da Universidade Federal de Minas Gerais. Advogado, é também membro da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI).

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