Exclusão digital, cidadania e o ENEM 2020
Escrito por
Ana Bárbara Gomes (Ver todos os posts desta autoria)
18 de maio de 2020
O país e o mundo têm experienciado um momento atípico de isolamento e medidas de contenção da pandemia em curso. Neste cenário, a internet se tornou ferramenta central de comunicação, informação e trabalho. O acesso aos direitos fundamentais no Brasil, no entanto, não acontece da mesma forma para indivíduos localizados em diferentes realidades socioeconômicas. Assim também acontece com a internet, que apesar de sua natureza transfronteiriça e seu princípio de universalidade, não é acessada da mesma forma pelos indivíduos.
A experiência cidadã de acesso aos direitos tem estado diretamente relacionada à possibilidade de conexão dos sujeitos. No dia 4 de maio o MEC lançou a publicidade chamando os estudantes a se inscreverem para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e sugere que eles “reinventem” a forma de estudar, apesar das aulas suspensas. Que estudem “de qualquer forma, pela internet, por livros”, “de qualquer lugar”. A súplica da propaganda para que “a vida não pare” parece se esquecer, entretanto, as condições de “reinvenção” da maioria dos estudantes brasileiros.
O cenário da conectividade no país – quem pode estudar em casa?
Para aqueles já inseridos na dinâmica digital isso pode parecer um problema superado, afinal, tudo o que vemos são os nossos pares igualmente conectados. Mas ao lançar um olhar mais cuidadoso para os dados de conectividade e apropriação das tecnologias pelos brasileiros identificamos um longo caminho a ser percorrido para que possamos presumir que digitalizar nossas atividades será algo simples.
O acesso à internet no Brasil reflete desigualdades de ordem econômica, social e geográfica reproduzidas há décadas na sociedade brasileira. Segundo os dados das últimas pesquisas do Cetic.br, 67% dos domicílios brasileiros estão conectados à internet. Nas áreas rurais, esse número cai para 44%. Se considerarmos a diferença regional, 57% dos domicílios no nordeste têm acesso à rede, o número cresce para 73% no sudeste. Há, ainda, a variável econômica demonstrando que, quanto mais vulnerável economicamente o indivíduo é, menores são seus recursos em TICs. Entre os usuários conectados das classes D e E, 85% acessam exclusivamente pelo celular. Nas áreas rurais, a maioria (77%) também acessa somente por celular. Além disso, é comum que famílias brasileiras compartilhem o uso de uma máquina para todos os membros da casa, o que traz dificuldade mesmo para aqueles domicílios contidos na porcentagem conectada e equipada da população mas que precisam manejar o uso entre aqueles que precisam estudar e/ou trabalhar num novo regime de teletrabalho.
O acesso à internet é reconhecido como direito humano e o Marco Civil da Internet, Lei 12.965 de 2014, sustenta a sua universalização, uma vez que se trata de um serviço de alto interesse público e importante para o exercício da cidadania. Contudo, esse cenário ideal é distante da realidade observável.
Organizações da sociedade civil têm se mobilizado, desde o início da pandemia e das medidas de isolamento no Brasil, para que as empresas de telecomunicações e governo tomem medidas para assegurar a conectividade no Brasil. Em março, o Intervozes, com o endosso de parlamentares e organizações científicas, solicitou à Anatel a proibição da suspensão dos serviços de internet fixa e móvel por 90 dias. O Instituto Brasileiro de defesa do consumidor analisou o compromisso público feito pelas maiores empresas provedoras de conexão móvel e as conclusões demonstram que as ações são insuficientes e imprecisas e, apesar de algumas delas admitirem flexibilização dos pagamentos e manutenção do serviço para inadimplentes, não necessariamente garantirão a conectividade dos usuários.
O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) publicou na última semana uma nota destacando a importância da internet para atravessarmos este momento delicado e recomendando que o governo reconheça o seu caráter universal e essencial e faça uso dos fundos de financiamento para garantir a conectividade dos cidadãos, especialmente daqueles mais vulneráveis economicamente e dependentes dos serviços móveis. Há, ainda, recomendações às empresas do setor e à sociedade civil e academia de somarem esforços para buscar saídas e investir em soluções que nos permitam avançar na inclusão digital.
Uma matéria divulgada pela Folha de São Paulo revelou que menos da metade dos alunos da rede de ensino paulista haviam acessado o aplicativo criado pelo governo de São Paulo para o ensino online durante a pandemia. Apesar dos esforços de disponibilizar a plataforma sem consumo de dados da franquia dos usuários, outros problemas se manifestam, como a falta de informação. Em localidades mais periféricas, onde famílias numerosas ocupam imóveis apertados, faltam não somente computadores, mas materiais escolares básicos, como lápis e caneta.
Para além do acesso
Um estudo realizado pelo IRIS “Políticas públicas de Inclusão Digital: Brasil e América Latina em perspectiva” (a ser divulgado nesta semana), investigou como se deu historicamente o esforço institucional brasileiro de incluir digitalmente os cidadãos. As conclusões apontam para um cenário de políticas descontinuadas ou insuficientes, os relatórios e auditorias sobre os planos implementados demonstram desconexão entre as ações e os órgãos governamentais envolvidos, gerando sobretrabalho e ineficiência. A maior parte das medidas são voltadas ao provimento de infraestrutura, contudo, não necessariamente fazem com que o serviço chegue à população – a exemplo, o programa Amazônia Conectada, que instalou a infraestrutura de base (backbone), mas não conectou os órgãos públicos e escolas da região.
Ainda, o descompasso entre os níveis de conexão e as habilidades apresentadas pelos usuários para interagir na rede apontam uma grande lacuna de letramento digital, uma vez que a posse de um equipamento tecnológico não implica no seu uso adequado. Existem uma série de competências que precisam ser apreendidas pelo sujeito para que ele esteja apto a usar adequadamente a rede, escolher as suas fontes, pesquisar e buscar informações, interpretar textos e mídias, ser capaz de compreender, criar e interagir online de forma plena e responsável. Adaptar a educação para um formato digital traz, portanto, desafios de ordem estrutural, educacional, cultural, que se sobrepõem às nossas desigualdades socioeconômicas. Em agosto de 2019, o Ministério da Educação havia anunciado um plano de digitalização progressiva do Enem, para que o exame passe a ser em tela, esse texto aqui no blog discutiu os desafios dessa mudança para a realidade da educação brasileira.
Vários estados estão implementando atividades à distância disponíveis em plataformas online e/ou TV aberta. O Consed criou um site para reunir as ações e regulações criadas por cada estado à respeito dos calendários escolares, atividades e merendas. No entanto, professores, pais e estudantes relatam diariamente a dificuldade de se adaptar ao modelo de forma efetiva.
#AdiaENEM
As inscrições para o exame começaram na segunda feira, dia 11 e vão até o dia 22 de maio. Nas últimas semanas uma série de educadores, alunos, escolas e instituições se posicionaram pedindo que o Enem seja adiado. O Instituto Unibanco analisou 18 países com provas equivalentes ao Enem e concluiu que em 16 deles as provas foram adiadas ou adaptadas em sua forma ou conteúdo, reduzindo a matéria analisada, cancelando os testes, adiando ou tornando a atividade online.
A última semana foi marcada por pressão na Câmara dos Deputados para que o executivo tomasse medida para o adiamento. O Ministério Público Federal emitiu, na última sexta feira, uma nota técnica assinada por 12 procuradores sustentando que manter o ENEM no contexto atual viola a constituição, isso porque as atividades de educação à distância em curso tem fortes marcas “de precariedade, diversidade de situações e, principalmente, desigualdade”. O Tribunal de Contas da União (TCU) por meio de um parecer técnico da Secretaria de Controle Externo da Educação se manifestou na segunda feira indicando o adiamento da prova, dado os danos causados pela epidemia do coronavírus. O TCU deu cinco dias para que o Inep (Instituto nacional de estudos e pesquisas educacionais) se manifeste sobre o cronograma do ENEM 2020.
Conclusão
A maior parte das universidades brasileiras estão com as aulas paralisadas, assim como as escolas públicas estaduais e municipais do país. A possibilidade de mobilizar recurso e infraestrutura para viabilizar um plano de adaptação pelos meios digitais é uma realidade minoritária de escolas privadas e, mesmo o ensino a distância oferecido pelas escolas privadas é controverso.
A digitalização de serviços essenciais que possibilitam o acesso a direitos fundamentais tais como a educação, o auxílio emergencial, dentre outros serviços públicos; coloca em cheque a cidadania daqueles que estão digitalmente excluídos e, portanto, às margens dessas ações governamentais. O cenário de pandemia coloca em evidência o quanto a internet se tornou um serviço essencial e, ainda mais, como os serviços essenciais são acessados de forma assimétrica pela população.
O próximo café & chat, organizado pelo IRIS para o fim desse mês, acontecerá online e terá como tema “O que falta para a educação online no Brasil?”, com a presença de Alcione Caetano (Smed- PBH), Melissa Mascarenhas (CAAP- UFMG) e Paloma Rocillo, pesquisadora do IRIS.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Ilustração por Freepik Stories
Escrito por
Ana Bárbara Gomes (Ver todos os posts desta autoria)
Diretora do Instituto de Referência Internet e Sociedade, é mestranda em Política Científica e Tecnológica na UNICAMP. É formada em Ciência Sociais pela UFMG. Foi bolsista do Programa de Ensino Tutoriado – PET Ciências Sociais, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o uso de drones em operações militares e controvérsias sociotécnicas. Fez parte do Observatório de Inovação, Cidadania e Tecnociência (InCiTe-UFMG), integrando estudos sobre sociologia da ciência e tecnologia. Tem interesse nas áreas de governança algorítmica, vigilância, governança de dados e direitos humanos na internet.