ENEM digital, Educação analógica – Os desafios para a prova em tela.
Escrito por
Ana Bárbara Gomes (Ver todos os posts desta autoria)
12 de agosto de 2019
No início de julho, o Governo Federal anunciou o plano de modernização da maior prova no país. O Exame Nacional do Ensino Médio, aplicado aos jovens do Ensino Médio interessados em concorrer a uma vaga em Universidades. Já em 2020, um por cento dos inscritos farão a prova na sua versão digital em uma aplicação-piloto e, até 2026, 100% das provas serão realizadas em telas. A seguir entenderemos do que se trata essa mudança, bem como buscaremos apresentar um panorama sobre a situação do uso das Tecnologias da Informação e Comunicação nas escolas brasileiras.
A proposta de um ENEM digital
Na coletiva de imprensa onde o Ministério da Educação apresenta o projeto de modernização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), o presidente do Inep, Alexandre Lopes, ressalta as vantagens econômicas e logísticas com a digitalização do ENEM. Segundo Alexandre Lopes, o processo tende a ficar mais barato; depender de uma equipe menor; evitar a impressão de um extenso volume de papel dos cadernos de prova; propiciar o uso de recursos alternativos (como vídeos e jogos); facilitar o planejamento e deslocamento dos candidatos que fazem a prova em uma cidade diferente de onde residem; oferecer mais de uma data para a sua realização; além de facilitar a organização dos cadernos de prova segundo o itinerário formativo escolhido pelo estudante – após a consolidação da reforma do ensino médio.
O Ministro da Educação esclareceu que o órgão não comprará novas máquinas. A empresa contratada responsável pela aplicação da prova estará encarregada de mapear a estrutura de laboratórios de informática disponíveis nos espaços públicos e privados.
No projeto piloto, a ser aplicado em 2020, 50 mil alunos em 15 capitais do país farão a mesma prova que os demais participantes, porém em sua versão digital. Em 2021 a meta é que hajam duas datas de aplicação da prova digital, aumentando nos anos subsequentes até o fim do processo de transição, em 2026, quando o governo deve promover quatro aplicações da prova durante o ano. Todo o processo será, então, digitalizado, desde a identificação do candidato até a prova de redação.
Temos uma educação digital?
Em julho de 2019, o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), divulgou os dados da pesquisa mais recente sobre o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) na educação, nas escolas brasileiras e entre professores e alunos. O estudo apresenta uma série de indicadores que buscam compreender como tem acontecido a inserção das TICs nos processos de aprendizagem, bem como o acesso às TICs entre professores e alunos e disponibilidade de infraestrutura para aprendizado digital.
Entre os principais resultados apresentados há informações sobre o uso de telefones, internet, tablets e outros dispositivos e recursos aplicados às atividades administrativas e pedagógicas das instituições.
Quando perguntados sobre a disponibilidade de computadores de mesa em funcionamento para as atividades pedagógicas, observou-se que 31% das escolas particulares no meio urbano não dispõem da estrutura de laboratório de informática, entre as unidades públicas o número chega a 58%. Essa carência se concentra na região Nordeste, com 55%, enquanto que no Sul 20% das escolas não possuem essa infraestrutura.
Dentre os alunos de escolas urbanas, 52% dos alunos de escola particulares possuem computador de mesa em casa e 72%, possuem computador portátil. Enquanto que, entre os alunos de escola pública os números são 36% e 38%, respectivamente.
No contexto rural, 45% das escolas particulares têm alguma infraestrutura de computadores disponíveis para uso dos alunos, já entre as públicas, 18%. Outra informação importante disponibilizada pelo site diz que 52% dos responsáveis pelas escolas entrevistadas afirmaram que é usual que professores levem os próprios dispositivos para desenvolver atividades pedagógicas.
O exemplo “de fora”
Na coletiva de imprensa do governo, o ministro da educação Abraham Weintraub, citou o exemplo de outras provas que já são aplicadas em modelos digitais, como o exame de proficiência em inglês, TOEFL. Argumentou também que em outros países grandes provas como essa já acontecem por meio de computadores.
Nos Estados Unidos, por exemplo, os exames equivalentes ao nosso ENEM, ACT (American College Testing) e SAT (Scholastic Aptitude Test), têm a possibilidade de serem feitos digitalmente, entretanto, uma matéria do New York Times apresenta os desafios de sua aplicação e logística, mesmo localizados em um país socioeconomicamente destacável como os EUA, ainda se esbarra em problemas como infraestrutura e queda de energia. Em um outro texto informativo do mesmo site sobre as provas online, é pontuado que a escolha entre o formato digital ou impresso é uma opção das escolas. Em 2017, o exame ACT , por exemplo, teve somente 8% do um milhão de exames aplicados em formato digital. E, segundo o vice presidente de pesquisa da ACT, Angie McAllister, os problemas recorrentemente encontrados dizem respeito à infraestrutura em quantidade suficiente para atender os candidatos, como a disponibilidade de computadores, e que a maior parte da demanda ainda é por exames em papel.
Os desafios
Se observarmos os dados sobre Inclusão Digital e a difusão das TICs no Brasil, nos deparamos com uma realidade que tem melhorado significativamente com o passar do tempo, mas ainda essencialmente desigual e marcada por recortes geográficos e de classes. É coerente tornar o ENEM uma prova digital sem que a educação digital faça parte da realidade de todos os candidatos?
É significante o número de alunos que não tem acesso à computadores nem na escola, nem em casa – sobretudo se nos atentarmos ao cenário das escolas localizadas no meio rural. Muitos dos candidatos não tem familiaridade com a interface, nem com os acessórios, há uma diferença substancial entre redigir uma redação à mão ou digitando. Quais serão as iniciativas para superar essa carência? E como garantir que o exame seja equivalente entre a sua versão digital e impressa especialmente no período de transição, considerando as diferentes competências empenhadas para a realização de cada um deles?
Ao pensarmos a segurança da informação, deve haver uma preocupação com a utilização de programas confiáveis. Renato Leite, do Data Privacy Brasil, ressalta em uma matéria para a Agência Brasil a importância do empenho em um sistema criptografado que garanta que somente o candidato acesse à sua prova. Bruno Bioni, professor e fundador do Data Privacy Brasil, também alertou sobre a necessidade de demonstrar cuidado com os dados pessoais dos candidatos, com um sistema robusto, seguro e transparente quanto ao manuseio das informações pessoais.
“Toda vez que o governo se propõe a se informatizar, a ser um governo mais eletrônico, e isso envolve quantidade significativa de processamento de dados, isso deve ser acompanhado com cuidado. Tão importante quanto avançar nessas pautas de digitalização é mostrar preocupação com os dados dos cidadãos” Bruno Bioni.
Conclusão
A proposta do Governo Federal de digitalização do maior e mais relevante exame nacional é ambiciosa. A modernização das instituições e processos nos parece mais do que uma tendência, mas um caminho natural pelo qual a sociedade altamente informatizada que partilhamos tem trilhado. Entretanto, após o lançamento desse plano pelo Governo, ficam mais perguntas do que respostas. A preocupação sobre a igualdade de condições e a promoção de uma educação digital para todos os adolescentes precisa ser prioridade, do contrário, o novo modelo será mais uma forma de reprodução da desigualdades sociais do país.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Escrito por
Ana Bárbara Gomes (Ver todos os posts desta autoria)
Diretora do Instituto de Referência Internet e Sociedade, é mestranda em Política Científica e Tecnológica na UNICAMP. É formada em Ciência Sociais pela UFMG. Foi bolsista do Programa de Ensino Tutoriado – PET Ciências Sociais, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o uso de drones em operações militares e controvérsias sociotécnicas. Fez parte do Observatório de Inovação, Cidadania e Tecnociência (InCiTe-UFMG), integrando estudos sobre sociologia da ciência e tecnologia. Tem interesse nas áreas de governança algorítmica, vigilância, governança de dados e direitos humanos na internet.