Do date à cena do crime: golpes em apps de relacionamento
Escrito por
Luisa Melo (Ver todos os posts desta autoria)
26 de agosto de 2024
A gente nunca sabe com quem conversa do outro lado da tela. Em aplicativos de encontros, trocas de informações e conquista de confiança têm conectado vítimas a criminosos. Então, como se relacionar de forma segura?
As notícias sobre crimes envolvendo aplicativos de relacionamento são alarmantes: o assassinato de Leonardo Rodrigues Nunes, vítima de uma emboscada em junho desse ano; a prisão de José Tiago, suspeito de ser um serial killer que matava homens gays em encontros; e o caso do estelionatário “Golpista do Tinder”, que se tornou documentário da Netflix. Esses são apenas alguns exemplos de situações em que os aplicativos de relacionamento foram utilizados para a realização de crimes no Brasil e no mundo.
Esse texto busca entender como essas práticas ocorrem, quais os crimes mais comuns e como podemos nos prevenir, tanto por meio de cuidados individuais quanto de medidas das plataformas e da aplicação do Direito.
Aplicativos de relacionamento: entre a exposição e o anonimato
Criados no início da década de 2010 (Grindr em 2009, Hornet em 2011, Tinder em 2012, Bumble e Happn em 2014), os aplicativos de relacionamento têm se popularizado como formas de encontrar parceiros românticos e sexuais com pretendida praticidade. Por um lado, a exposição de determinadas informações favorece o encontro de pessoas com interesses compatíveis: gostos em comum, aparência desejada, mesmos objetivos com o encontro e proximidade geográfica. Como explicou o bacharel em jornalismo Rian Silva em seu estudo sobre o Grindr,
A tecnologia de geolocalização permite que as pessoas encontrem parceiros potenciais que estão espacialmente próximos a elas e com quem possam interagir por meio de mensagens de texto. Para a comunidade LGBTQIA+, tais plataformas trazem uma vantagem importante: filtram os usuários por orientação sexual, visando mais precisamente os parceiros potenciais.
Outra característica dos aplicativos de relacionamento que é atrativa – sobretudo à comunidade LGBTQIA+, mas também a outros perfis de indivíduos – é a possibilidade de proteção da privacidade: perfis com pouca ou nenhuma foto e para quem deseja relações “discretas” e “sigilosas” são comuns em aplicativos de relacionamento homossexuais, como percebido também em um outro estudo sobre o uso Grindr, em Belo Horizonte. Esse desejo por interações mais livres, longe de determinadas pressões sociais, também pode ser percebido em mulheres usuárias desses aplicativos (conforme uma pesquisa sobre o uso do Tinder em Santa Maria-RS), e em quaisquer pessoas que, por timidez, interesse em relações práticas e casuais, ou outros tantos motivos, preferem o intermédio da tela em seus contatos com possíveis parceiros.
O problema é que há um outro lado da moeda: a possibilidade de discrição, anonimato ou seleção de informações que irão constar no perfil pode ser usada para mascarar identidades criminosas, protegidas do outro lado da tela. A relação entre exposição e anonimato nos aplicativos de relacionamento é complexa. Pensar em quais informações estão sendo expostas ou omitidas e na veracidade desses dados é de extrema importância para a garantia da segurança dos usuários.
Estelionato sentimental
Simon Livien era um russo, “príncipe dos diamantes”, que ostentava uma vida de luxo e estava em busca de um relacionamento no Tinder. Levava para viagens, dava presentes caros e mostrava todos os seus bens às mulheres que conhecia no aplicativo. O problema? Tudo isso era mentira. Shimon Hayut era um israelense, com perfil falso, que conquistou a confiança das vítimas para conseguir empréstimos de grandes somas de dinheiro. O “Golpista do Tinder” foi preso em 2019 e teve sua conta removida do aplicativo, no entanto, seu modus operandi segue sendo praticado.
Em 2024, um caso parecido ganha destaque na mídia brasileira: Caio Henrique da Silva Camossato foi preso no Rio de Janeiro após roubar mais de 1,8 milhões de reais com empréstimos de mulheres que conheceu no Tinder. Da mesma forma que Shimon Hayut, Caio fingia ser herdeiro e ter muitas posses para conquistar a confiança das vítimas, as quais eram convencidas pelo jeito sensível e apaixonado do golpista, e cediam aos seus pedidos de “ajuda”.
O que Shimon Hayut, Caio Camossato e tantos outros fizeram tem nome e se chama Estelionato Sentimental
Estelionato Sentimental é uma modalidade criminosa na qual indivíduos se aproveitam da vulnerabilidade emocional e afetiva para enganar possíveis parceiros românticos, obtendo vantagens ilícitas. O estelionato sentimental virtual ocorre quando essa interação se dá principalmente pela internet, por meio de perfis falsos.
Como explica Luciana Oliveira,
A utilização de aplicativos de relacionamentos propicia aos estelionatários uma ampla rede de potenciais vítimas, isso permite que eles atinjam um número significativo de pessoas e alcancem um maior sucesso em suas práticas fraudulentas. Ademais, o anonimato proporcionado pelas plataformas digitais e a facilidade de criação de perfis falsos aumentam as chances de sucesso dos estelionatários sentimentais, uma vez que podem se apresentar de forma convincente e dissimulada
Apesar de haver projetos de lei para isso (PL 6.444/2019 e PL 5.197/2023), o estelionato sentimental ainda não é especificamente tipificado no artigo 171 do Código Penal, podendo ser enquadrado em dispositivos legais amplos já existentes. A inclusão de uma tipificação específica, como explica Oliveira, seria um passo de extrema importância para o combate a esse crime, garantindo uma atuação mais efetiva do Sistema de Justiça, a proteção dos direitos das vítimas e a responsabilização dos autores.
Somado às grandes perdas financeiras, as vítimas de estelionato sentimental podem sofrer com problemas emocionais, como o sentimento de humilhação e vergonha, e até serem acometidas pela depressão (como demonstra Karolina Martins). Além de danos patrimoniais e morais, os danos físicos também podem ser facilitados pelo uso de aplicativos de relacionamento.
Roubos e assassinatos: quando o encontro se torna cena de crime
Em junho desse ano, Leonardo Rodrigues Nunes morreu após ser baleado por uma dupla de assaltantes. O local do crime, no entanto, não foi coincidência: o jovem havia marcado um encontro lá por meio do aplicativo Hornet. O ocorrido, infelizmente, foi mais uma repetição de uma estratégia que já vinha sendo colocada em prática com outras vítimas: ao menos três outros homens também foram atraídos e roubados naquela rua após terem marcado ‘dates’ pelo app.
Os encontros que se tornam cenas de crime não são raros: em São Paulo, 96% dos sequestros são organizados por meio de aplicativos de namoro, segundo a Divisão Antissequestro da cidade. A maior parte das vítimas são homens solteiros, de boa condição financeira, enganados por perfis falsos de mulheres em aplicativos de relacionamento. Ao marcarem um encontro, a vítima é atraída a um local próximo do cativeiro, onde é mantida refém enquanto compras são feitas em seu nome e todo seu dinheiro é transferido, o que pode durar dias.
Fora do Brasil a prática também é comum: na Colômbia, o Ministério Público atendeu inúmeros estrangeiros vítimas de ‘roubo por meio de substância tóxica’ em 2022. Os indivíduos eram drogados principalmente em encontros, os quais frequentemente eram marcados por meio de aplicativos de relacionamento. Em 2023, a Embaixada dos Estados Unidos chegou a recomendar que seus cidadãos evitassem o uso desse tipo de aplicativo na Colômbia.
Deixar de usar os aplicativos de relacionamento pode ser uma solução para esses casos de criminalidade, mas com certeza não é a única. Meios de interação e contato entre indivíduos, os aplicativos permitem que pessoas tenham a oportunidade de se conhecer, trocar experiências e, inclusive, expressar preferências que talvez não fossem bem recebidas em outros contextos, na sociedade de uma forma geral. Sem cair na armadilha de culpabilizar as vítimas, é preciso compreender que os crimes que utilizam aplicativos de relacionamento exploram fragilidades individuais e socialmente construídas, como a expectativa de um romance, o desejo por um encontro sexual sem as amarras do conservadorismo, e o encontro de pessoas de mesma orientação sexual em um contexto heteronormativo, por exemplo.
Sendo assim, é possível pensar em outras alternativas para evitar a ocorrência de crimes que se utilizam dos aplicativos de relacionamento.
Proteção de usuários
Como mencionado anteriormente, a preocupação legislativa a respeito dos crimes que envolvem aplicativos de relacionamento é imperativa: são necessárias leis claras e específicas que tipifiquem os crimes, estabeleçam penas aos autores e garantam que as vítimas sejam amparadas. Não agindo apenas no campo jurídico, as leis são também uma forma de atrair a atenção pública e conscientizar as pessoas sobre seus direitos e quais atitudes tomar no caso de violações.
Entende-se que as leis existentes não são suficientes para embasar legalmente as discussões a respeito dos crimes ocorridos por meio de aplicativos de relacionamento. Eles complexificam o estelionato ou o roubo “comum”, bem como fogem ao padrão dos crimes cibernéticos já tipificados, centrados nas definições da Lei Geral de Proteção de dados. O que fazer quando as fronteiras do online e offline se misturam? Como lidar com o uso ilícito de dados pessoais, que não foram acessados por meio de invasões virtuais ou vazamento de informações, mas sim por confiança da própria vítima em um parceiro romântico? Esses são questionamentos que apontam para a necessidade de “um esforço contínuo de atualização das leis, investimento em capacitação das autoridades, cooperação internacional e conscientização pública para enfrentar os desafios em constante mudança do mundo digital”, como explicam Borges e Novais.
Outro ponto que merece destaque é o nível de responsabilização e cooperação das plataformas. O art.18 do Marco Civil da Internet estabelece que “O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros”. Os dizeres reproduzidos pela matéria do G1, encontrados no site da Grindr, demonstram que a empresa parece levar à risca esse distanciamento: a Grindr alega que “não controla nada do que nossos usuários fazem ou dizem. Você é o único responsável pelo uso dos serviços da grindr e pelas suas interações com outros usuários (dentro ou fora dos serviços da Grindr). A Grindr não faz declarações ou fornece garantias quanto à conduta, a identidade, as intenções, a legitimidade ou a veracidade de qualquer usuário”.
Ao contrário da postura adotada pelo app, é sim possível, e, inclusive, desejado, que as empresas tenham algum grau de responsabilidade pela segurança dos seus usuários. Em 2023, por exemplo, o Ministério Público de São Paulo firmou parceria com o Tinder para a criação de um canal de comunicação com as autoridades, viabilizando “respostas mais rápidas a requisições relativas a dados associados à localização de vítimas de crimes em andamento e de agentes criminosos responsáveis pela sua prática observados os parâmetros fixados no Marco Civil da Internet e na legislação correlata”. O aplicativo também possui verificações por foto e “identidade+foto” que atribuem um selo azul aos usuários que comprovam por reconhecimento facial e documentação a identidade de suas fotos. Pensar políticas internas dos aplicativos de relacionamento e acordos com órgãos de segurança que aliem a privacidade à segurança dos usuários é de extrema importância.
Por fim, os usuários dos aplicativos também podem tomar uma série de cuidados ao criar perfis e interagir com outras pessoas nessas redes. Se liga!
Ao encontrar um perfil
- Desconfie de perfis com fotos muito profissionais ou com poucas fotos
- Verifique informações (existência de perfil em outras redes sociais e resultados de buscas pelo nome da pessoa no Google)
- Procure conversar também por áudio e chamada de vídeo
- Esteja atento aos sinais (se a pessoa conta histórias inconsistentes ou desvia de determinadas perguntas, isso pode ser um sinal. Além disso, desconfie de histórias dramáticas e não faça transferências bancárias, é pouco provável que em uma situação de emergência só haja você para ajudar)
- Evite compartilhar informações pessoais (CPF, RG, endereço, número do cartão, informações sobre ganhos financeiros e detalhes familiares)
Vai ter date, e aí?
- Marque encontros em locais públicos e, de preferência, movimentados
- Avise amigos e familiares sobre seus planos e compartilhe sua localização em tempo real
Fui vítima de um golpe, e agora?
- Printe todas as fotos, conversas e outros recursos que possam servir como prova
- Denuncie o perfil no aplicativo
- Bloqueie cartões e altere senhas das redes sociais
- Faça um Boletim de Ocorrência
- Avise amigos e familiares para desconfiarem de qualquer contato feito no seu nome ou com sua foto
A pressão popular por avanços legislativos que acompanhem os comportamentos digitais e por plataformas que colaborem com a segurança dos usuários é essencial. Junto a isso, ter consciência sobre os padrões de crimes que ocorrem por meio de aplicativos de relacionamento e estar atento aos cuidados necessários são formas de se prevenir. Confira outras postagens do blog do IRIS para acompanhar os avanços e desafios do mundo digital!
Escrito por
Luisa Melo (Ver todos os posts desta autoria)
Estagiária de pesquisa do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS). Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Tem interesse em pesquisas na área de inclusão digital, educação midiática, segurança pública e Direitos Humanos nas redes