CriptoAgosto: a criptografia na boca do povo
Escrito por
Wilson Guilherme (Ver todos os posts desta autoria)
31 de julho de 2023
Chegamos novamente no mês de agosto, um mês marcado por numerosas campanhas significativas para o debate público: agosto lilás, destinado à conscientização para o fim da violência contra a mulher; agosto laranja, sobre a prevenção e combate à esclerose; agosto verde-claro, sobre a prevenção e combate ao linfoma; agosto dourado, sobre o incentivo ao aleitamento materno. Além de ser o mês de visibilidade lésbica, que aqui aproveito para indicar o filme “Rafiki” dirigido por Wanuri Kahiu.
No eixo de governança da internet, temos também agosto como um período importante, articulado pela Coalizão Direitos na Rede – CDR, que desde 2020 promove a campanha CriptoAgosto. Neste texto falo um pouco sobre a CDR, a campanha e formas de se engajar no debate. Vem comigo que no caminho eu te explico um pouco mais.
Vamos lembrar alguns pontos e conhecer outros novos?
Para começar acho importante lembrar meu primeiro texto para o IRIS, denominado Crypto Wars: Uma guerra de narrativas, recomendo a leitura dele completa, mas aqui farei uma breve sinopse para que possamos compreender melhor a importância da CriptoAgosto, especialmente a forma como está desenhada a campanha neste ano.
No texto já mencionado, inicio com o questionamento da utilização de termos sempre em inglês para se referir a assuntos que podem ser traduzidos para criar conexões reais com as pessoas que não estão envolvidas nos debates sobre Governança da Internet – GI. Em seguida explico o conceito de criptografia a partir do relatório do Center for Democracy and Technology, traduzido para português pelo IRIS, como um conjunto de técnicas que tornam uma informação incompreensível para sujeitos que não tenham à “chave” de desencriptação. Assim, no início uma informação é encriptada, se tornando uma mensagem cifrada, fazendo com que nem mesmo o servidor da empresa que fornece o sistema tenha acesso à informação original. Posteriormente, a mensagem será desencriptada e, decifrada, será entregue ao destinatário.
A problemática da guerra criptografia, se centraliza especialmente no caráter privativo de informação da criptografia, assim, de um lado da disputa, temos governos alegando que tal ferramenta impede o desenvolvimento das investigações criminais, e portanto deveria ser restringida, e por outro, temos a comunidade técnica, apontando a criptografia como um direito humano básico no contexto da tecnologia. Assim, prossigo alertando que em verdade o que chamamos de guerras criptográficas são disputas discursivas, que criam lógicas argumentativas para o enfraquecimento da segurança e da privacidade.
Abro um parêntese neste ponto para explicar que hoje, alguns meses depois, e após novas leituras, tenho ainda mais convicção nesse argumento, já que, em uma sociedade mediada por dados, a privacidade pode ser percebida como um privilégio de poucas elites, e como uma disposição flexível e sem valor para grupos mais vulnerabilizados.
A pesquisadora Reichel em “Race, Class, and Privacy: A Critical Historical Review”, chega afirmar que o debate sobre privacidade é como um castelo, onde dentre dele está a realeza (brancos e de classes consideradas superiores) com seus direitos garantidos, enquanto fora, está a plebe, com o mínimo de acesso ao castelo e aos seus “senhores”. Sobre este ponto, um exemplo que elucida bem, é o fato do Twitter alguns meses atrás ter proposto a mudança de sua política de privacidade para permitir a verificação de duas etapas apenas para usuários do Twitter Blue, que é pago.
Assim, no primeiro texto que escrevo a este blog, explico como ao meu ver, as guerras criptográficas são disputas discursivas, com efeitos práticos devastadores no que concerne a privacidade e a segurança pública. Além de chamar atenção para as intersecções entre privacidade e debates como gênero, sexualidade, raça e território, e alertado que ou construímos um diálogo mais transversal sobre o tema – com diversos atores – em uma linguagem mais acessível, ou sairemos perdendo nessa disputa. E quando a criptografia é quebrada ou fragilizada, não há, na verdade, campeões, isto é: todas as pessoas saem perdendo.
Faço a síntese do texto anterior não apenas para lhe conquistar para a leitura dele, mas também, e principalmente, para a compreensão do quanto estamos avançando com a criptoagosto deste ano.
Coalizão Direitos na Rede – CDR e a CriptoAgosto
De pronto, é preciso apresentar para quem ainda não conhece, a Coalizão Direitos na Rede – CDR, que é uma articulação de 55 entidades da academia e da sociedade civil brasileira, que nasce em 2016, para enfrentar o cenário político de constantes ameaças aos direitos humanos na internet no Brasil.
A Coalizão se organiza, atualmente, em diversos grupos de trabalho que tocam pautas distintas, como: acesso e conectividade; proteção de dados pessoais; liberdade de expressão; eleições; inteligência artificial; e privacidade e vigilância, este último, tenho acompanhado recentemente de forma mais próxima o debate. É vital destacar que essas frentes de trabalho não representam toda a articulação envolvida na coalizão, existindo outros grupos de trabalho temporários e/ou articulações operacionais.
Como mencionado na introdução, a CDR, tem desenvolvido, desde 2020, a campanha CriptoAgosto, um movimento articulado pelo GT de Privacidade e Vigilância, para difundir o debate sobre a importância da criptografia no contexto dos direitos humanos e digitais. Neste ano estamos na articulação da 4ª edição da campanha, com o tema “ManiFESTAção: criptografia, cuidado e território”.
Mas antes de falar especificamente sobre a proposta da campanha para este ano, vamos relembrar um pouco os temas anteriores, e conteúdos que já estão produzidos e circulando nas redes para que você possa ter acesso.
Na primeira edição em 2020, a campanha contou com o lançamento da cartilha “A importância social e econômica da criptografia”, uma parceria do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec) com o IRIS. Além disso, realizou duas lives sobre o tema, e um podcast, com a participação de Veridiana Alimonti, analista sênior de políticas para América Latina da Electronic Frontier Foundation; e Paulo Rená, professor do UniCEUB e fundador do Instituto Beta: Internet e Democracia. Ademais, as organizações que compõem a CDR também desenvolveram outras atividades, como o IRIS, que articulou live com o tema “Por que você precisa de criptografia?”.
A segunda edição, em 2021, foi denominada “A criptografia contra o tecnoautoritarismo”, a campanha foi aberta com a Pocket live “Pela porta da frente: por que defender a criptografia?” – um trocadilho para o termo backdoor, que em uma tradução livre ao português seria, porta clandestina (sobre o conceito recomendo a leitura do texto de Paulo Rená) – da live participaram Bianca Kremer – CodingRights – representante da CDR; Jamila Venturini – Derechos Digitales e Diego Canabarro – ISOC Brasil. Além disso, naquele mesmo ano foi lançado conjuntamente pelo IRIS e pelo IP.rec, com o apoio da CDR, o “Decálogo de Recomendações sobre Direitos Digitais e Produção de Provas”, também com live para garantir o amplo debate sobre a produção.
A terceira edição foi realizada em 2022, denominada de “criptografia pela segurança da democracia”, contou inclusive com a participação de outras organizações sociais da América Latina, garantindo uma maior projeção a campanha e a temática da privacidade. O evento de encerramento da campanha foi marcado pelo seminário “Por que e como defender a criptografia?” que contou com a participação de Miguel Flores, diretor digital da Derechos Digitales; Gaspar Pisanu, gerente de políticas para América Latina da Access Now; e Cristian Mesa Torre, especialista em gestão pública e tecnologia da Alianza por el Cifrado en Latinoamérica y el Caribe (AC-LAC) do Peru, enquanto debatedores. Neste campanha foi lançado também o material “Criptografia e Direitos Humanos: Como a criptografia protege os direitos das minorias?” de autoria da Aliança para a Criptografia na América Latina e Caribe (AC-LAC).
E agora chegamos a quarta edição…
ManiFESTAção – criptografia, cuidado e território.
A quarta edição é marcada pela construção dialógica do debate sobre criptografia. Com o tema “ManiFESTAção: criptografia, cuidado e território”, este ano a CriptoAgosto pretende articular nas bases o debate sobre criptografia, fortalecendo coletivos, grupos e organizações no norte, nordeste, sul e centro-oeste do país a desenvolver ações que comuniquem sobre criptografia e privacidade a partir do território.
Até a proposta de tema, de brincar com os recortes possíveis da palavra manifestação, nos provoca a enxergar possibilidades outras de constituir diálogos sobre criptografia, que sejam para além do formal e academicamente complexo debate que fazemos hoje em dia na Governança da Internet. Nos chama atenção para manifestar, festas e ações.
Relembra, inclusive, as articulações de criptofestas desenhadas desde 2012 na Austrália, e com considerável articulação no Brasil, como a CriptoTrem (Belo Horizonte ); a CriptoRave (São Paulo); a CryptoFesta (Taubaté); a CriptoFesta (Recife); a nanoCRYPTOFesta (Tarrafa); o Criptobaile(Distrito Federal), a CriptoFunk (Rio de Janeiro); a CriptoJP (João Pessoa); e a CriptoBaião (Fortaleza), dentre outras que estão em articulação.
Como argumentamos no relatório “Políticas públicas e mobilizações sociais sobre criptografias no Brasil”, em nosso país a disputa sobre narrativas de criptografia é em grande parcela endereçada no polo de defesa por entidades da sociedade civil, de modo que, pensar uma campanha que articule com entidades de diversos setores diferentes, como movimento negro, LGBTQIA+, feminista, secudarista, de juventudes, dentre outros, a articulação da defesa da criptografia, se faz vital. Afinal, não defendemos a criptografia apenas para nós pesquisadores e ativistas por direitos digitais, mas como um direito humano básico de todes.
Assim, para abrir a jornada de ações no mês de agosto, no dia 03/08/2023, vai acontecer às 17h (horário oficial de Brasília), a live de lançamento da 4º edição da criptoagosto, com o título “Furando a bolha da criptografia”, e contará com a participação de representantes das entidades data_labe, IP.rec e da Criptofunk, além, do convite a participação dos 4 coletivos que foram selecionados para desenvolverem ações nos seus territórios.
Aproveito para apresentar a vocês os coletivos, para poderem se engajar, e quem sabe comparecer a uma das ações:
- Na Região Norte do país, especificamente na cidade de Belém (PA), temos a Rede Jandyras – Rede de Articuladoras Ambientais, mulheres de Belém pela justiça climática;
- No ordeste, temos o coletivo Periféricas, localizado no Ibura, região periférica de Recife (PE);
- No Centro-Oeste, em Brasília (DF), o coletivo Jovem de Expressão articulando temas como juventudes, artes, educação e empreendedorismo; e
- Por fim, no Sul, em Porto Alegre (RS), coletivo Turmalina, um quilombo digital, que investe no fortalecimento da cena musical artística negra.
Considerações finais e convites
Para finalizar é elementar relembrar sempre, que as guerras criptográficas são disputas ainda presentes na nossa realidade, e que exige um compromisso epistêmico e político de defesa, de modo que, se engajar na simplificação da linguagem do debate para ampliar o número de pessoas conectadas nesta causa é vital.
Neste mês (agosto), especificamente, existem várias formas de engajar, desde a participação nas ações desenvolvidas pela CDR e pelos coletivos anteriormente mencionados, até mesmo sua articulação de atividades, que pode entrar no mapa de ações da CriptoAgosto, então te convido a se mobilizar e a participar desse movimento em defesa da criptografia forte.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Escrito por
Wilson Guilherme (Ver todos os posts desta autoria)
Mestrande em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça, pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR; Graduado em Direito pela Faculdade Interamericana de Porto Velho; Pesquisadore Bolsista do Instituto de Referência em Internet e Sociedade – IRIS; Mentore e ex-embaixador do Programa Cidadão Digital – Safernet Brasil; Ex-Coordenador de Práticas, Pesquisas e Extensões Jurídicas da Faculdade Católica de Rondônia – FCR (2022); Bolsista do programa sobre saúde mental para crianças e adolescentes da ASEC; Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa e Ativista Audre Lorde. Tem como área de interesse: direitos humanos, infâncias e juventudes, sexualidade, raça e gênero, intersecionalização entre tecnologia e educação para direitos humanos.