Controle do trabalho e tecnosolucionismo: controvérsias sobre o uso de dados de geolocalização como prova na Justiça do Trabalho
Escrito por
Rafaela Ferreira (Ver todos os posts desta autoria)
9 de dezembro de 2022
O controle do trabalho (e das pessoas trabalhadoras) não é fato novo. Porém, seus métodos têm mudado de acordo com as inovações tecnológicas. Diante da produção massiva de dados no ambiente digital, tornou-se possível o monitoramento de atividades humanas corriqueiras, como o rastreio da sua localização, capturada pelo seu notebook, celular ou relógio inteligente. Em vista disso, o uso de dados de geolocalização como prova em conflitos judiciais trabalhistas parece uma via acessível e promissora num cenário de escassez de elementos comprobatórios à disposição do(a) trabalhador(a). Porém, são diversos os riscos que passam despercebidos numa análise simplista. Neste texto, me dedico a lançar luz sobre essas nuances e te convido a refletir comigo.
Controle do trabalho e datificação da vida
O controle nas relações trabalhistas não é novidade e pode ser observado de maneira diversa ao longo da história. Conforme Magali Costa nos sinaliza exemplificativamente, desde grandes e prósperas civilizações antigas, como a egípcia, é possível notar interações de controle intelectual sobre trabalhadores cujas atividades eram principalmente manuais.
No Brasil, o historiador João José Reis, em seu livro e artigo sobre a greve negra de 1857 na Bahia, relata detalhadamente os resultados de uma tentativa colonialista de controle de corpos negros e de seu trabalho: os ganhadores – trabalhadores africanos e afrodescendentes, escravizados, livres e libertos, que atuavam no transporte de objetos e pessoas – paralisaram suas atividades e, consequentemente, a economia local, em um ato grevista motivado pela imposição de medidas de controle do trabalho. Em síntese, tais medidas envolviam registro em órgão público, pagamento de tributos e submissão a regras de controle policial, dentre elas, a utilização de uma placa no pescoço para sua identificação. Ao destrinchar as relações sociopolíticas por trás dessa norma, João torna nítido que o objetivo era, inclusive, o controle geográfico do trabalho preto pelas ruas da cidade e a redução da ínfima liberdade remanescente daquelas pessoas.
Com o passar dos anos, as medidas de gerenciamento do trabalho adquiriram novas formas, em consonância com as inovações tecnológicas. O controle da jornada de trabalho, por exemplo, obrigação imposta pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) desde 1943, já foi realizado apenas em papel por uma pessoa de confiança da chefia; hoje, os recursos mecânicos e eletrônicos são os mais utilizados, através de mecanismos como o ponto biométrico, por meio do qual o trabalhador é comumente identificado por sua digital, ou seja, pelo tratamento de um dado biométrico.
Assim, o fenômeno da datificação, que consiste na massiva quantificação e monitoramento dos atos sociais e do comportamento humano através de dados digitais, tem influenciado na gestão das relações de trabalho. Através desses metadados, agregados de uma forma sem precedentes diante da intensificação da conexão via internet, é possível transformar, objetivamente, os aspectos mais corriqueiros da vida humana em dados mensuráveis, desde seu humor pela manhã até a sua localização em determinado dia e horário.
Durante a pandemia da COVID-19, em face da necessidade de distanciamento social físico, a inserção de parte significativa da população em formas de trabalho remoto incrementou a datificação do trabalho, gerando-se, portanto, a densificação do seu controle por meio de dados digitais, o que pode ser ilustrado pelo monitoramento da atividade através da interação com aplicativos. É o caso do Microsoft 365, conjunto de softwares duramente criticado por permitir a criação de notas individualizadas de produtividade para os funcionários com base no rastreio de ações em tais aplicações.
Nesse cenário, diante da presumida segurança trazida pelos métodos empregados para produção de tais dados, a ideologia do “quem não deve, não teme” é constantemente legitimada, sobretudo no espaço investigativo das instâncias públicas, tal como em conflitos frente ao Poder Judiciário.
Assim, a Justiça do Trabalho costuma ver “com bons olhos” a crescente utilização das chamadas “provas digitais”, viabilizando treinamento e incentivo para que os juízes aprendam a instrumentalizá-las. Diante dos escassos documentos e indícios técnicos aptos a provar ilícitos trabalhistas, cria-se um solo fértil para isso. A prova produzida por recursos digitais aparenta, nesse sentido, ser um substituto ou complemento às provas testemunhais, que são comumente o único meio de comprovação de certos fatos ocorridos no ambiente de trabalho.
O caso dos dados de geolocalização como prova da jornada de trabalho
Pensemos: você foi demitida(o) por justa causa, perdendo o seu direito de receber uma boa quantia em dinheiro e outros benefícios, com a justificativa (inverídica) de não cumprimento de horário de trabalho. Quais os caminhos para provar essa mentira judicialmente?
Além dos documentos sob a gestão do empregador, seus colegas de trabalho podem ser testemunhas, apesar de ser difícil encontrar alguém que se disponha a desagradar a chefia. Diante disso, uma alternativa seria usar como prova os dados de localização coletados pelo seu celular, durante o período de trabalho.
Originalmente, esses dados são coletados para fornecer serviços corriqueiros, como a pesquisa do Google sobre locais para comer, cujos resultados são, preferencialmente, restaurantes próximos à região em que você está. Contudo, eles podem ser utilizados para diversos fins, inclusive para comprovar que você estava dentro da sede da empresa em determinado dia e horário em eventual ação trabalhista.
A geolocalização é um recurso que permite localizar coisas e pessoas com base em coordenadas geográficas relativamente precisas. Essas coordenadas são coletadas por satélites, o que nos permite, por exemplo, acessar esse recurso via GPS. Assim, geram-se dados, os quais, a partir de certo acúmulo, permitem gerar um histórico detalhado de onde o objeto analisado se encontrava em determinado período.
Por isso, esse mecanismo já é utilizado por instituições para controle de suas atividades, bens e pessoas colaboradoras. As empresas de transporte de cargas, por exemplo, utilizam dados de geolocalização para rastreio da carga e do caminhão, além de, consequentemente, para controle da jornada e do espaço que percorrem os motoristas.
Sob essa linha de raciocínio, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 12ª Região, em Santa Catarina, chamou atenção nacionalmente ao permitir (ou não) o uso de tais dados em decisões sobre o direito ao pagamento de horas extras, através de requerimento feito tanto por partes trabalhadoras quanto por empregadoras. Essas decisões se deram com fundamento em normas jurídicas como o Código de Processo Civil (CPC), o Marco Civil da Internet (MCI) e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
A partir das citadas leis, é possível extrair teses para a utilização de tais dados como prova diante do Poder Judiciário, tais como: (i) o dever do juiz de determinar as provas necessárias para sua decisão, que podem ser quaisquer meios legais e legítimos (art. 369 e 370 do CPC); (ii) a possibilidade de, mediante decisão judicial fundamentada, requisitar a apresentação dos dados (inclusive os de geolocalização) para fins comprobatórios, desde que resguardado o sigilo e com restrição estrita ao período e objetivo da prova (art. 22 e 23 do MCI); (iii) a permissão do uso dos dados pessoais, inclusive os sensíveis, em processos judiciais em certas situações (art. 7º, IV e art. 11, II, “d” da LGPD).
Provas digitais e o perigo oculto no tecnosolucionismo
Apesar dos diversos argumentos favoráveis à utilização dos dados enquanto prova digitais, é preciso enxergar o “outro lado da moeda” e alinhar as expectativas à realidade.
Nesse sentido, Von Dick nos alerta que o dataísmo (essa “crença generalizada na quantificação do comportamento humano, por meio das tecnologias de mídia on-line”) faz com que enxerguemos os dados como “o santo graal do conhecimento comportamental”, cuja objetividade eleva a sua interpretação a um patamar de veracidade quase religiosa, presumidamente inquestionável.
Em texto publicado anteriormente neste blog, a pesquisadora Luiza Brandão nos alertou sobre o perigo de acreditar cegamente que as novas tecnologias nos salvarão, sobretudo considerando que essa crença simplista está aliada à “história única de que toda tecnologia é necessariamente neutra, melhor que os seres humanos para realizar determinada função ou a peça que falta no quebra-cabeça”.
Acreditar nesse “tecnosolucionismo” é esquecer da possibilidade de falhas técnicas, de imprecisões, além de negligenciar possíveis violações de direitos fundamentais, como o direito à proteção de dados, à liberdade e à privacidade.
Em um exercício hipotético, questiono: e se você tem o costume de deixar o seu celular com o seu filho ou primo durante seu horário de trabalho, ou se a sua localização fora do expediente também é exposta e te causa prejuízo, ou se o sinal do seu provedor de internet está instável e a atualização do seu histórico de localização teve alguma interferência não identificada?
São inúmeras as possibilidade de erro e de ilícitos pelo uso descuidado desse meio de prova, principalmente quando requisitado pelo empregador, que não sabe das condições reais do uso do dispositivo que gerou os dados de localização.
Por isso, a tese de que o exercício do direito de defesa do patrão serve para romper o direito à proteção de dados pessoais do trabalhador é bastante discutível, levando em conta o aumento da probabilidade de imprecisão da prova e dos danos a direitos constitucionais do empregado.
Além disso, há significativo risco para o incremento do vigilantismo, que exorbita os fins do contrato de trabalho e pode ressoar na pessoa trabalhadora, que é a titular dos dados analisados. Tendo isso em vista, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) afirmou que “será considerado de alto risco o tratamento de dados pessoais que possa afetar significativamente interesses e direitos fundamentais dos titulares, bem como que impliquem em vigilância”.
Nessa linha tênue, é imprescindível lembrar que o direito do trabalho é um ramo jurídico que busca a pacificação e o controle das massas. O seu desenvolvimento foi capitaneado pela tentativa de suprimir revoltas e controlar a exploração de corpos para obtenção de valor. Por isso, as conquistas históricas de direitos, como o princípio da primazia da realidade e da proteção da pessoa trabalhadora, precisam ser defendidas, como forma de mitigar os danos suportados pelo ser humano que é, não raramente, reduzido a sua força de trabalho.
Proteção de dados e devido processo legal: cautela e caminhos na seara trabalhista
Dessa forma, o uso de provas oriundas de dados digitais deve ser visto com cautela. A discussão sobre a viabilidade, licitude e confiabilidade dessa via comprobatória deve ser feita com “os pés no chão” e olhos atentos ao cenário sociopolítico, além de levar em conta garantias fundamentais construídas a duras penas ao longo da história. Na seara trabalhista, esse debate perpassa, também, a consciência da existência de uma relação política complexa entre a classe empregadora e a trabalhadora.
Nesse sentido, os princípios de proteção de dados pessoais nos ajudam na missão de proibir excessos e refletir sobre o emprego desses recursos: ilustrativamente, a utilização de dados digitais como prova (dentro e fora do processo do trabalho) deve ser utilizada restritamente para os fins propostos, sob segurança reforçada contra vazamentos e com a garantia de sua qualidade para a finalidade pretendida (neste caso, a de comprovar a ocorrência de fatos específicos).
Considerando o alto risco da utilização de dados de geolocalização para comprovação da jornada de trabalho, algumas vias foram propostas nas várias decisões do TRT 12, dentre as quais temos: a tramitação do processo sob segredo de justiça; a permissão do seu uso apenas quando inexistente outra via comprobatória capaz de provar o fato discutido; e a utilização de uma análise de proporcionalidade para servir-se (ou não) de tais registros para fins de prova.
São muitas as discussões em torno do tema e, sem pretensão de esgotá-lo e com respeito ao tempo de maturação jurídica desses conflitos, essa publicação busca lançar luz sobre os contornos (positivos e negativos) desse instrumento comprobatório no mundo do trabalho e sobre a relevância do direito à proteção de dados pessoais no Brasil.
Caso você tenha interesse sobre esse assunto, convido a seguir o IRIS através do seu blog e de suas redes sociais, além de me colocar à disposição para refletir e dialogar sobre essas temáticas e suas várias implicações.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seu autor e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
Escrito por
Rafaela Ferreira (Ver todos os posts desta autoria)
Pesquisadora e líder de projetos de Moderação de Conteúdo no IRIS. Mestranda em Direito da Regulação na FGV Rio e graduada em Direito pela UFBA. É advogada e se interessa por temas regulatórios que envolvam regulação de plataformas digitais, inteligência artificial e discussões sobre neurodireitos.